A entrevista do prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), à Rádio Gaúcha, no último dia 17, trouxe novos elementos ao estranho evento – quase tão estranho quanto aqueles eventos sobrenaturais ou extraterrestres de alguns filmes e séries – que antecedeu o primeiro turno das eleições na capital do Rio Grande do Sul.
“A desistência do Fortunati foi algo mais ou menos assim: matou, foi no velório, comemorou com a família. É algo de máfia italiana”, diz o prefeito aos entrevistadores da Rádio Gaúcha.
“É um cenário surreal, não é?”, diz Marchezan. “Um candidato articula para impugnar a candidatura do outro, e depois a família do outro candidato – ou seja, o partido – apoia, e depois o próprio candidato apoia”.
O prefeito de Porto Alegre conta que o advogado da campanha de Sebastião Melo (MDB) ofereceu à sua campanha o mesmo processo que depois redundaria na cassação da candidatura de Fortunati (PTB). Porém, Marchezan recusou a oferta.
O plano inicial, portanto, era fazer Marchezan entrar contra Fortunati, para esconder a origem da ação – o esquema de Melo e dos bolsonaristas.
Com a recusa de Marchezan, não restou alternativa a Melo, e ao esquema que o apoia, senão entrar com o processo contra a chapa de Fortunati, no TRE, através de um apoiador de Melo.
O gato, assim, ficava com o rabo de fora – ou até mais que o rabo. Mas não havia outro jeito, depois que Marchezan recusou servir de marionete para que o esquema de Melo eliminasse Fortunati da eleição.
Abaixo, condensamos a entrevista de Marchezan. Antes, resumiremos, para que os leitores de outros municípios possam avaliar as suas declarações, o que houve de anômalo – ou de extraordinário – nas eleições de Porto Alegre.
EM CIMA DA HORA
Apenas seis dias antes do primeiro turno, no último dia 9, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS) impugnou uma das principais candidaturas à Prefeitura da capital, a do ex-prefeito José Fortunati (PTB). Essa impugnação beneficiou o candidato Sebastião Melo (MDB), apoiado pelos bolsonaristas – com destaque para Onyx Lorenzoni, ministro da Cidadania (e ex-chefe da Casa Civil de Bolsonaro), e Osmar Terra, antecessor de Lorenzoni no mesmo Ministério.
Tanto Lorenzoni quanto Terra são conhecidos por sua intimidade na copa e cozinha de Bolsonaro. O vice da chapa de Melo foi uma indicação de Onyx Lorenzoni, que domina o DEM do Rio Grande do Sul.
No caso de Porto Alegre, havia um elemento a mais para excitar esses cortesãos bolsonaristas. Não era (nem é) qualquer elemento: o ódio de Bolsonaro e seus rebentos a Manuela D’Ávila (PCdoB), candidata à Prefeitura em primeiro lugar nas pesquisas para o primeiro turno – ódio expresso pelo próprio Bolsonaro alguns dias antes, e por Eduardo Bolsonaro, de uma maneira concentradamente nojenta.
Portanto, Melo passou a ser o candidato preferido e favorecido do bolsonarismo, que não economizou – nem está economizando – no jogo sujo contra Manuela D’Ávila.
A impugnação da candidatura de Fortunati, promovida por um candidato a vereador, um certo Luiz Armando Silva de Oliveira (PRTB), que apoiava Sebastião Melo, é um dos elementos – talvez o principal – desse jogo sujo.
Esse candidato da chapa de Melo entrou com processo no TRE, pretextando a ilegalidade no prazo de filiação partidária do candidato a vice-prefeito de Fortunati, André Cecchini, do Patriota.
O assunto, como diz em sua entrevista o prefeito Marchezan, era uma “filigrana”, indigna da atenção de outro candidato – pois, como implicitamente aduziu Marchezan, candidatos existem para concorrer uns com os outros nas eleições, não para tentar ganhar no tapetão…
Além disso, como disse a esposa de Fortunati, Regina Becker Fortunati, havia “certidão emitida pela própria Justiça Eleitoral e aceita pela Receita Federal sobre André Cecchini ser membro da Executiva de seu partido”.
Apesar disso, o TRE concedeu o pedido do candidato da chapa de Melo e impugnou a candidatura do vice de Fortunati – o que anulou a própria candidatura de Fortunati a prefeito, pois não havia tempo legal para a substituição do vice.
Essa impugnação, a seis dias da eleição, de um dos principais candidatos à Prefeitura de Porto Alegre, já era algo com todas as aparências de aberração – ao modo daquele animal que tinha cauda de leão, juba de leão, pata de leão, etc., portanto, era um leão.
Pior ainda quando o beneficiado era o próprio candidato Melo, apoiado pelo autor da ação.
Mas é evidente que essa ação não partiu do candidato a vereador pelo PRTB.
É exatamente isso o que mostra a entrevista do prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB).
COISA DE MÁFIA
Foi na manhã, como já mencionamos, do último dia 17.
Derrotado no primeiro turno das eleições municipais – chegou em terceiro lugar, com 21,07% dos votos válidos -, o atual prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), concedeu entrevista, na Rádio Gaúcha, a Rosane de Oliveira e Daniel Scola, que apresentam o programa “Gaúcha Atualidade”.
Depois de expor sua visão da administração – e discordâncias em relação aos seus concorrentes para a Prefeitura -, Marchezan respondeu à seguinte pergunta (as respostas do prefeito estão condensadas, mas colocamos o áudio à disposição dos leitores, abaixo):
ROSANE DE OLIVEIRA – O que o senhor acha que pesou mais na sua desclassificação para o segundo turno? Foi o processo de impeachment, que eu particularmente sempre achei que não parava em pé, e não foi votado até agora, ou foi a renúncia do ex-prefeito José Fortunati às vésperas da campanha? Ou foi, como dizem os seus adversários, ‘o Marchezan perdeu para ele mesmo, porque brigou com todo mundo’?
PREFEITO NELSON MARCHEZAN JÚNIOR – Claro que a desistência do Fortunati foi algo mais ou menos assim: matou, foi no velório, comemorou com a família. É algo de máfia italiana. Só faltou ser italiano, porque o resto foi inacreditável.
DANIEL SCOLA – Essa figura que o senhor usou aí, do matou, foi ao velório e abraçou a família, quem é o italiano? Quem é que matou? Quem são as figuras? Vamos dar nome aos bois…
MARCHEZAN – É um cenário surreal, não é? Um candidato articula para impugnar a candidatura do outro, e depois a família do outro candidato – ou seja, o partido – apoia, e depois o próprio candidato apoia.
DANIEL SCOLA – O senhor está falando do PRTB, de um candidato do PRTB que está na chapa do candidato Sebastião Melo, que foi quem moveu a ação contra o Fortunati, depois o Fortunati apoiou o Melo, é isso?
MARCHEZAN – É, é um cenário meio que surreal, mas de qualquer maneira, eu não acho que foi só isso, e hoje, também, depois que passou, tentar justificar…
DANIEL SCOLA – … claro, tendo o PTB como protagonista, que era o partido do Fortunati, não é?
ROSANE DE OLIVEIRA – Eu queria voltar na questão da renúncia do Fortunati, porque eu sei que o senhor recebeu uma sugestão para contestar a candidatura do vice, a filiação do vice do Fortunati, André Cecchini, e o senhor rejeitou essa sugestão de entrar na Justiça. Por que o senhor não entrou?
MARCHEZAN – Porque não era um formato adequado, era uma filigrana em relação à filiação do vice, e eu não acho que seja um papel que eu [devia]ter feito, que um candidato [deveria]ter feito, talvez o Ministério Público, talvez o Judiciário, mesmo assim…
DANIEL SCOLA – O senhor recebeu a proposta?
MARCHEZAN – Sim, nós recebemos todo o material, todos os dados, todos os argumentos jurídicos para que a gente ingressasse no mesmo dia…
DANIEL SCOLA – E aí, quem ofereceu?
MARCHEZAN – Foi o advogado, que inclusive já foi do PSDB há muitos anos atrás, e que é o advogado da candidatura do Sebastião Melo. Ofereceu ao meu [departamento] jurídico, pedindo para que ele repassasse para a nossa coligação – e nós decidimos por não fazer. (…) a própria esposa do Fortunati também já revelou a situação desconfortável. Enfim, mas eu acho que o Fortunati está no PTB, seguiu a orientação do partido que ele escolheu para tocar a sua carreira política adiante.
APOIO
O PTB, partido no qual está Fortunati, é dominado por Roberto Jefferson, hoje no entorno da camarilha de Bolsonaro, como, aliás, esteve no entorno de todas as camarilhas, desde o governo Collor.
No primeiro momento, Fortunati anunciou sua resistência à impugnação de André Cecchini e o recurso ao Tribunal Superior Eleitoral (v. HP 10/11/2020, TRE-RS impugna vice, mas Fortunati diz que campanha continua e vai recorrer).
Foi então que a esposa de Fortunati, Regina Becker Fortunati, escreveu:
“A denúncia da COLIGAÇÃO MELO para impugnar a candidatura do Fortunati foi julgada hoje pelo Tribunal Regional Eleitoral. Estranhamente, acolhida, apesar de certidão emitida pela própria Justiça Eleitoral e aceita pela Receita Federal sobre André Cecchini ser membro da Executiva de seu partido.
“Importante ressaltar que a legislação brasileira assegura recursos sobre decisões regionais justamente para minimizar os riscos de que injustiças sejam cometidas e, tão logo publicado o acórdão, a Coligação Porto Alegre Somos Todos Nós ajuizará recurso junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mantendo a candidatura do Dr. André Cecchini como candidato a vice-prefeito na chapa de José Fortunati.
“Sim, a campanha continua! E a força que nos move na reta final, com o evidente crescimento que permitirá que Fortunati esteja no 2º turno, nos une ainda mais! É por todos nós!”
Entretanto, no dia seguinte, Fortunati desistiu de sua candidatura a prefeito de Porto Alegre – em seguida, o seu partido, o PTB, apoiou Melo.
Por que o PTB apoiou o mesmo esquema que lhe deixou sem candidato e sem possibilidades – que eram reais – de ganhar a Prefeitura de Porto Alegre?
A resposta óbvia – isto é, a resposta lógica – seria a existência de alguma compensação em troca desse apoio. Ou alguém acredita que o partido de Roberto Jefferson apoiou Sebastião Melo – depois que este impugnou a candidatura petebista – por acreditar na pureza dos ideais e valores do candidato dos bolsonaristas Terra e Lorenzoni?
Mas o fato é que o PTB foi seguido pelo próprio Fortunati, no apoio a Melo (v. HP 11/11/2020, Fortunati renuncia à candidatura a prefeito de Porto Alegre e HP 11/11/2020, Manuela lamenta saída de Fortunati e destaca trajetória do adversário).
É isso o que o prefeito Marchezan chama de “um cenário surreal (…). Um candidato articula para impugnar a candidatura do outro, e depois a família do outro candidato – ou seja, o partido – apoia, e depois o próprio candidato apoia”.
UMA SÍNTESE
Em sua coluna no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, Rosane de Oliveira, que foi entrevistadora do prefeito Marchezan no programa da Rádio Gaúcha, sintetizou os acontecimentos:
“No dia 22 de outubro, um dos advogados que trabalham para o prefeito Nelson Marchezan (PSDB) recebeu de colega ligado à campanha de Sebastião Melo (MDB) uma curiosa proposta: que questionasse na Justiça a filiação do candidato a vice de José Fortunati (PTB), André Cecchini (Patriota).
“O emissário da coligação encabeçada pelo MDB disse que ‘ficaria feio’ Melo entrar na Justiça contra Fortunati, de quem foi vice de 2013 e 2016, mas que seria uma forma de Marchezan revidar, já que estava sendo ‘ferrado’ pelo PTB no processo de impeachment.
“O prefeito foi consultado e proibiu assessores de levarem a ideia adiante. Disse que preferia enfrentar Fortunati no voto e que se recusava a ir para o ‘tapetão’.
“Dois dias depois, numa noite de sábado, Luiz Armando Oliveira protocolou o recurso contra o registro da candidatura de Cecchini, aceito pelo TRE-RS, por unanimidade, na tarde de segunda-feira (9/11).
“Melo disse à coluna que não sabia de nada e que não autoriza esse tipo de iniciativa.”
MARCHEZAN
Resta acrescentar o que não está dito nesta coluna, mas é implícito: a ameaça de que, se Marchezan não levasse à frente a ação contra Fortunati, seu impeachment seria votado na Câmara Municipal de Porto Alegre.
A ameaça – não sabemos se feita de modo explícito – não impressionou o prefeito.
Da mesma forma, segundo algumas fontes bastante seguras, ameaça semelhante foi aventada, se Marchezan não apoiasse Melo contra Manuela D’Ávila.
Mas isso não fez com que o prefeito mudasse sua posição (v. HP 18/11/2020, Porto Alegre: Marchezan não apoia Melo e declara neutralidade).
C.L.
Íntegra da entrevista do prefeito Nelson Marchezan Júnior, de Porto Alegre, à Rádio Gaúcha