João Goulart faria 100 anos no dia 1º de março.
Em novembro de 1963, o presidente concedeu uma longa entrevista à revista Manchete, em que expõe seus pontos de vista sobre o Brasil.
Nela, está Jango, pensando sobre o país, identificando-se com o seu povo, propondo a superação daquela situação angustiante.
Apenas alguns meses depois, ocorreria o golpe de Estado de 1º de abril.
Abaixo, transcrevemos a entrevista de Jango à Manchete na íntegra.
Apenas, redividimos os parágrafos.
Há muito, nesta entrevista, que pode ser discutido.
Mas o que é evidente, é a grandeza do homem.
Assim, preferimos, ao invés de estendermo-nos sobre nossos pontos de vista, somente apresentar o homem por ele mesmo.
E remeter o leitor, por enquanto, a alguns dos trabalhos que já publicamos de e sobre Jango:
O discurso da Central do Brasil e a verdade histórica
João Goulart em 1963: a agenda de um presidente de verdade
João Goulart: “Ninguém impedirá o povo de construir o desenvolvimento”
Jango e a Eletrobrás: uma homenagem a um brasileiro
Com a publicação da entrevista à Manchete, em homenagem ao seu centenário, iniciamos o nosso mês João Goulart.
C.L.
Entrevista do Presidente João Goulart à Manchete
(novembro/1963)
“Estamos vivendo, neste momento, a mais grave crise por que já passou o Brasil em toda a sua história republicana. Caminhamos aceleradamente para um desfecho que, se não for evitado a tempo, virá abalar, em termos definitivos e imprevisíveis, a própria estrutura da Nação, comprometendo todas as suas atuais conquistas e arruinando as suas imensas potencialidades futuras”.
Em resposta a uma pergunta sobre o grau de sua responsabilidade pessoal no desdobramento dos últimos acontecimentos, tendo em conta sua condição de chefe do Governo, Jango foi enfático:
“O Presidente não governa sozinho. Se o Governo, na plenitude de seus poderes, estivesse enfeixado apenas em suas mãos (e digo apenas a título de ilustração) ninguém duvidaria de que as reformas já estariam feitas.
“Governo não é apenas a Presidência da República. Na complexidade da vida social e política de nossa época, o poder não se concentra na pessoa do Presidente, mas se dispersa e se distribui por numerosos setores.
“Este fenômeno é, de resto, até mesmo uma resultante do regime democrático. Todos aqueles que detêm uma parcela de responsabilidade pelo destino do país também são do Governo. O Congresso Nacional, os executivos estaduais, os dirigentes industriais – para só citar algumas das forças que agem sobre a vida da Nação – também são do Governo.
“O que não nos parece justo nem razoável é que tais forças continuem lutando umas contra as outras, numa estéril dispersão de esforços, ou que descarreguem toda sorte de acusações apenas e, principalmente, sobre o Presidente da República.
“Tal expediente, estou certo, já não passa despercebido à opinião pública esclarecida e implica uma explicação cômoda, que falsifica a análise da crise e procura exonerar de responsabilidades certos setores que a ela estão diretamente ligados. Não tenho a menor dúvida de que, a continuar como vamos, o caos poderá sobrevir – e a todos atingirá, indistintamente. A todos compete, por isso, um esforço no sentido de evitá-lo”.
SITUAÇÃO ECONÔMICA
“A guerra, com efeito, adiou a explosão da crise cambial, uma vez que o Brasil, nesse período, ficou impossibilitado de importar.
“Acumulamos saldos no exterior. Impossibilitado de vender divisas e obrigado a pagar aos exportadores, o Governo viu-se compelido a emitir.
“Daí resultou a falsa suposição de que as divisas seriam inflacionárias. De 1945 a 47, consumimos rapidamente os saldos que havíamos acumulado no exterior – e a importação de todo o tipo de mercadorias foi incrementada ao máximo. Compramos do automóvel ao mais simples aparelho eletrodoméstico, da geladeira ao plástico.
“A crise cambial teria então de explodir, como explodiu.
“Para controlar as exportações foi criada a CEXIM, em 1947. Iniciou-se o déficit cambial. Os atrasados comerciais passaram a crescer de ano para ano. Entramos no sistema de déficit crescente.
“Uma única solução teria de impor-se: produzir, aqui mesmo, as matérias-primas de transformação e manufatura, os veículos, o combustível, tudo enfim, que era posto ao nosso alcance por via da importação”.
AS REFORMAS DE GETÚLIO
“A primeira reforma de base realizada no Brasil foi a criação de Volta Redonda, em 1939.
“Foi este, com efeito, o primeiro passo que abriu caminho ao pujante desenvolvimento industrial brasileiro: fabricação de aço, de metais não-ferrosos e de produtos químicos.
“No mesmo sentido de nossa emancipação, coube a Getúlio suscitar e sancionar a Lei 2.004, que criou a Petrobrás, visando à autossuficiência em matéria de combustível. É graças à Petrobrás que, hoje, nossos veículos podem rodar com o nosso próprio combustível.
“Depois de pouco mais de um decênio podemos ostentar, com orgulho, uma indústria nacional que é, a essa altura, mais diversificada do que a da União Soviética.
“Todos os grandes grupos industriais encontram-se, hoje, aqui representados.
“O surto industrial é um esplêndido resultado da capacidade criadora de nosso povo, favorecido pelas circunstâncias históricas que permitiram a instauração de um processo de desenvolvimento que não pode ser estacionado ou mesmo estrangulado sem gravíssimos riscos para toda a estabilidade em que repousa a Nação.
“Foi graças à industrialização que deixou de haver déficit na balança comercial. Nossas exportações passaram a pagar as importações. Não podíamos, porém, por outro lado, pagar o financiamento que levantamos para custear essa autêntica reforma de base a que submetemos a estrutura nacional.
“As amortizações e os juros daquele financiamento vieram a pesar de maneira insuportável sobre nossa economia. A capacidade demonstrada e provada pelo Brasil deveria dar-nos, porém, o inalienável direito ao crédito de que necessitamos. O mérito de nossas realizações não mais poderia ser omitido ou escamoteado.
“A dívida total do Brasil é de cerca de 3 bilhões e 800 milhões de dólares, pagáveis num período superior a cem anos. Quer isto dizer que devemos uma soma de dólares equivalente à receita cambial da Nação em apenas dois anos.
“O problema existe e está exatamente no seguinte: cerca de mais de metade daquele total de 3,8 bilhões vence até 1965. É um prazo excessivamente curto, mas é tudo que as fontes internacionais de crédito nos puderam oferecer quando lhes foi colocada a oportunidade de socorrer-nos com a sua ajuda, nestes últimos 15 anos”.
PREÇOS INTERNACIONAIS
“É preciso levar em conta um fator negativo que, sobre ser um dado incontestável de nossa realidade, não pode ser debitado a uma suposta e inexistente incapacidade brasileira.
“Trata-se de reconhecer que, nesse período de quinze anos, ou seja, logo após a Segunda Guerra Mundial até nossos dias, os preços de todas as matérias-primas e dos gêneros alimentícios que exportamos caíram vertiginosamente nas bolsas mundiais.
“Basta dizer que o café e o cacau – e este, o cacau, foi até 1960 o segundo produto em nossa pauta de exportação – sofreram quedas superiores a 50%, no período de 1954 a 1963.
“Para dar uma ideia do que isto significa e nos custa, é suficiente observar que, se prevalecessem os preços vigentes em 1956, nossa receita cambial estaria proporcionando ao país, hoje, nada menos de 2,5 bilhões de dólares.
“Em 1954 exportamos 4,3 milhões de toneladas de mercadorias e obtivemos uma receita de um bilhão e 562 milhões de dólares.
“Em 1962, exportamos 12,4 milhões de toneladas de mercadorias e a receita alcançou apenas a ordem de um bilhão e 214 milhões de dólares.
“Exportamos três vezes mais e baixou, todavia, a nossa receita cambial. Sem essa malfadada deterioração, o Brasil já não teria dívida internacional a pagar.
“As grandes potências do Ocidente têm de tomar em consideração esse dado fundamental à análise e ao entendimento de nossa crise atual.
“Em nossas relações comerciais com essas potências, elas precisam considerar que a sua posição forte vem sendo mantida, do ponto de vista econômico, à custa de nossos enormes sacrifícios, importando em fazer-nos cada vez mais fracos, enquanto elas mais e mais se fortalecem.
“Não é justa, pois, a situação de dificuldades em que hoje nos encontramos. Triplicamos os nossos fornecimentos, equilibramos nossa balança comercial, realizamos esforços extraordinários dentro do regime democrático. Convivemos e dialogamos, sem interrupção, com essas potências a que destinamos o fruto de nosso trabalho e, apesar de tudo, sofremos as consequências iníquas do fenômeno da deterioração dos preços, o qual nos é imposto, sem alternativa até agora, pelo mecanismo de relações internacionais.
“A meu ver, não se pode falar apenas em intercâmbio, no caso, dentro da área estritamente comercial, de simples troca. Há, na hipótese, outras e graves implicações.
“As potências estrangeiras, nossas amigas tradicionais, que nos compram um volume cada vez maior de mercadorias e nos pagam com uma soma cada vez menor de divisas não podem esquivar-se à responsabilidade que lhes cabe, e que efetivamente têm, em nossa crise.
“Não pedimos apenas compreensão. Merecemos o reconhecimento expresso de que a responsabilidade, no caso, está muito mais fora de nosso alcance do que propriamente dentro de nossas fronteiras.
“Não posso omitir aqui uma palavra a respeito dos investimentos externos que se incorporam à nossa economia.
“Os investimentos estrangeiros, que vieram colaborar com o nosso surto de desenvolvimento e que aqui encontraram os atrativos de um mercado em expansão e de uma ordem jurídico-social que lhes proporciona o clima de segurança e de paz para o trabalho, precisam compreender agora as nossas dificuldades e devem cooperar conosco na solução que nos permita salvaguardar essa ordem jurídico-social e assegurar a continuidade do crescimento da economia nacional.
“Depois do investimento financeiro, patrimonial e técnico, chegou a hora de ser feito um investimento de confiança e sacrifício.
“Nesse sentido, podemos afirmar que os nossos interesses hoje são comuns e solidários.
“A reforma industrial de base constitui a maior vitória da civilização brasileira, nos últimos anos. Do ponto de vista econômico, a estrutura da produção foi sensivelmente modificada.
“Do ponto de vista social, procurou-se e obteve-se, até certo ponto, uma distribuição mais equitativa dos bens produzidos. Criou-se a solidariedade entre o trabalho e o capital”.
A QUESTÃO DA TERRA
“Ao assumir o Governo tomei consciência de que essa grande vitória estava ameaçada.
“Para tanto, bastaria observar que a maioria da população rural não tem poder aquisitivo e cresce em ritmo mais veloz do que a população urbana.
“A produção industrial sofre o risco de parar, por insuficiência de uma estrutura agrícola.
“Não é outra a razão que me leva a pregar uma urgente reforma de base, no âmbito da agricultura, comparável à que Getúlio Vargas empreendeu no campo da indústria.
“Os benefícios do surto industrial estão sendo amesquinhados por uma estrutura agrícola que encarece os custos de nossa produção e não oferece a necessária expansão do mercado interno.
“Apesar de trabalhadora, a população rural está impedida de colaborar com os centros urbanos, em favor do progresso comum.
“Imensa massa de camponeses encontra-se marginalizada, sem existência econômica que lhe permita adquirir as manufaturas produzidas no país.
“Essa massa carece, ao mesmo tempo, de um sistema de defesa de seus direitos trabalhistas, segundo os preceitos da justiça social.
“A continuar esse panorama melancólico, a indústria nacional terá de conformar-se com níveis de produção abaixo de sua capacidade. E de fato chegamos, paradoxalmente, à necessidade de produzir menos veículos, menos tecidos, menos materiais de construção, à espera de que a infraestrutura econômica do Brasil venha a modificar-se, para então permitir aos brasileiros a superação da miséria.
“Compreendi que só nos resta uma alternativa: a reforma de base no campo, nos mesmos moldes da reforma encetada por Getúlio Vargas nos centros urbanos.
“É imperativa a necessidade de reorganizar a economia agrícola, assim como se impõem, com urgência, aquelas medidas capazes de estender ao camponês os benefícios que a justiça social pode e lhe deve assegurar.
“Este é o caminho para que cada camponês, cada fazendeiro, produtor ou trabalhador, possa transformar-se em consumidor dos produtos nacionais.
“Apenas 2,2% do número de propriedades (ou seja, 73.737 propriedades) ocupam 58% da área total de hectares.
“Quanto aos restantes 42%, são ocupados por 3.268.360 propriedades.
“A conclusão que se impõe é que um reduzidíssimo número de latifundiários ocupa mais de metade da área total de propriedades privadas do país.
“Impossível ignorar, assim, que a má distribuição de terras é responsável pelo baixíssimo índice de seu aproveitamento na lavoura.
“Entre os 70 milhões de brasileiros, apenas 3 milhões 350 mil têm o privilégio de serem proprietários rurais”.
REFORMA TRIBUTÁRIA
“A velha máquina estatal que nos foi legada montou-se com o simples objetivo de despachar processos burocráticos.
“É universalmente sabido que o sistema tributário é o grande instrumento de distribuição de renda.
“Nosso sistema fiscal tornou-se obsoleto em face da modificação da estrutura industrial.
“Já agora, porém, não basta melhorar a arrecadação e rever os critérios e os métodos tradicionais do aparelho fiscal.
“Impõe-se reformar esse mesmo aparelho, tendo em vista também e, sobretudo, o aspecto social.
“O imposto só pode ser entendido como instrumento de justa distribuição de renda nacional, entre rendimentos do capital e salários.
“Da mesma forma, é preciso que opere como elemento de equilíbrio entre as classes, entre as diversas regiões do país e entre as unidades administrativas”.
CRÉDITO
“Temos de partir do princípio de que o Estado não dispõe, hoje, de uma política nacional de crédito.
“O Banco do Brasil funciona como caixa geral da Nação, mas continua a ser, do ponto de vista de seu funcionamento e de sua estrutura administrativa, uma verdadeira colcha de retalhos. Diversas carteiras, com atribuições e atividades diversas, agem de uma forma interdependente e utilizam a mesma caixa. A ação só pode ser, como é, descoordenada.
“O Banco do Brasil tem sob sua responsabilidade recursos oficiais que ultrapassam a casa de um trilhão de cruzeiros. Para tamanhos recursos, a taxa de juros varia, sem o menor critério, entre 2 e 12%.
“A caixa de nosso principal estabelecimento de crédito é utilizada para todas as compras de divisas da Carteira de Câmbio, que vende ou compra divisas, assim como recebe ou despende cruzeiros, mediante entradas ou saídas de caixa”.
NORDESTE ESPOLIADO
“O orçamento brasileiro reflete a divisão do país em três autênticos países: Centro-Sul, Nordeste e Oeste amazônico.
“O Centro-Sul produz 95% da receita, o que quer dizer que, praticamente, financia a despesa nacional.
“Ninguém nega, porém, que o Nordeste já tem vida ativa, e o que ocorria, até há bem pouco tempo, é que vinha sendo sistematicamente espoliado. Os investimentos não se orientavam em seu benefício, nem lá permaneciam, ao mesmo tempo em que as divisas, originariamente “nordestinas”, se destinavam a pagar o desenvolvimento do Sul.
“A economia nacional funcionava, assim, como autêntica bomba de sucção, em favor de uma região e em detrimento de outra, de maneira a, classicamente, enriquecer os ricos e empobrecer cada vez mais os pobres”.
“Diante desse quadro, se impunha uma única solução: desenvolver o Nordeste e o Oeste amazônico.
“Por isso, em 1962, a Sudene investiu um bilhão e meio de cruzeiros mensais no Nordeste, e, em 1963, o investimento passou a ser da ordem de quatro bilhões de cruzeiros por mês.
“Nestes três anos – acrescentou Jango –, 206 bilhões de cruzeiros serão aplicados pela Sudene naquela região, conforme acentuei na mensagem que tive a honra de remeter ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa do corrente ano.
“E o Nordeste tem reagido imediatamente aos estímulos desenvolvidos em seu favor. A renda per capita cresce ali mais rapidamente do que em qualquer outro ponto do país.
“Convém não esquecer, por outro lado, que os nordestinos empreendem uma obra pioneira e heroica de colonização neste momento mesmo.
“Anualmente, com efeito, mais de 100 mil nordestinos penetram na região Oeste amazônica. Segundo os dados do censo de 1960, o aumento da população naquela região foi o maior de todo o Brasil, tendo sido da ordem de 60%.
“Temos de investir no Nordeste e continuar investindo no Sul, ao mesmo tempo que esboçamos investimentos no Oeste.
“É preciso não perder de vista que o Estado, além de custear pessoal e máquina administrativa, se vê na contingência de investir diretamente, assim como de financiar as empresas particulares.
“Ora, aqui é que se impõe, nítida e insofismavelmente a necessidade de uma reforma orçamentária.
“O orçamento é elaborado apenas para o custeio da máquina administrativa. Sua previsão está sempre e cada vez mais fora da realidade nacional. Os grandes investimentos e os principais financiamentos são realizados à margem do orçamento, que os ignora. Não há coordenação global. Daí, sendo a caixa uma só, a do Banco do Brasil, tudo nela se reflete.
“Será necessário considerar, ao mesmo tempo, que o orçamento é feito de tal modo que concentra as pressões sobre a caixa do Banco do Brasil a partir do segundo semestre do exercício financeiro.
“Nesse período, a caixa do Banco do Brasil está recebendo pressões decorrentes do financiamento da safra do café, do imposto sobre a renda, do pagamento das reivindicações salariais, do 13º salário e da corrida às verbas para que não caiam em exercício findo.
“Resultado: no primeiro semestre, praticamente não é preciso emitir.
“Já no segundo semestre, a emissão assume caráter compulsório e se faz em tal escala que só em dezembro de 1962, por exemplo, foram emitidos 45% do ano.
“É por isso, em face de uma realidade tão gritante e anômala, que se impõe a pregação das reformas, reclamadas pela própria consciência nacional”.
REFORMA ELEITORAL
“Cumpre reformar o nosso sistema eleitoral, de maneira a garantir a verdade da manifestação popular.
“Nesse sentido, impõem-se medidas que se tornem verdadeiramente eficazes no combate às influências espúrias sobre o processo eleitoral.
“Ainda no último pleito, vimos o papel nefasto que desempenha um organismo a serviço da manutenção de privilégios intoleráveis, manipulando recursos que a própria Comissão Parlamentar de Inquérito, criada para examinar as suas contas, considerou inequivocamente ilícitos.
[N.HP: Trata-se de uma referência ao IBAD, organização de fachada da CIA, que, segundo apurou a CPI, bancou a campanha de 150 parlamentares nas eleições de 1962 (v. Figuras e figurinhas em 1964: antes e depois do golpe contra o Brasil (parte 1)).]
“O poder econômico não pode interferir na manifestação da vontade do povo e a este, em todas as suas camadas, há de garantir-se o livre pronunciamento das urnas, sem o qual não é legítimo falar em democracia.
“Todo o povo deve ser chamado a opinar e é, nesse sentido, que considero inadiável a extensão do direito de voto aos analfabetos e a todas as classes hoje afastadas iniquamente do processo eleitoral”.
DIREITOS SOCIAIS
“Todos, sem exceção, precisam ter acesso à educação.
“A todos é preciso oferecer um mínimo de garantias à saúde, assim como se impõe que a todos, igualmente, se proporcione o direito a habitações condignas e alimentação suficiente.
“O povo exige, muito justamente, um mínimo de bem-estar, sem o qual é impossível o progresso intelectual e até mesmo o exercício das mais comezinhas virtudes morais.
“Não é possível que continuemos indiferentes a viver lado a lado com a miséria.
“O Brasil deve deixar de ser o país dos contrastes, onde basta abrir a janela de um apartamento para contemplar a mais negra miséria, oferecida aos olhos de todos nas ultrajantes condições em que se vive nas favelas.
“Temos hoje a sétima indústria automobilística do mundo. Não é admissível que continuemos a sofrer o vexame de sabermos que, em nossa terra, crianças morrem de fome, mergulhadas na miséria que desce aos mais baixos índices do mundo.
“O nível de vida do nordestino é ainda inferior e coloca-se no plano mais baixo do mundo.
“No entanto, ninguém poderia dizer que os nossos irmãos do Nordeste não são brasileiros, tanto quanto nós, e que não contribuem, na medida de suas possibilidades, para o engrandecimento nacional.
“Estão, porém, condenados à subnutrição e à marginalidade econômica”.
TRABALHADORES
“Sem desmerecer o trabalho intelectual e de direção econômica, devemos reconhecer que é flagrante a injustiça reinante na situação do operário de nossos centros urbanos.
“Ele sai às vezes de casa de madrugada, para só voltar de madrugada, e leva consigo, para o trabalho duro e mal remunerado, a angústia de deixar os filhos sem garantia de sobrevivência.
“E quando regressar ao lar – quase sempre um pobre casebre miserável – traz a perspectiva amarga de novas necessidades que não pode atender por meio de um salário desvalorizado.
“Será preciso lembrar que esse operário, que todos conhecemos, é um homem como nós, com os mesmos direitos à vida digna e proveitosa?
“São milhões e milhões os nossos concidadãos que vivem marginalizados.
“São, porém, nossos companheiros que estão ajudando a construir o Brasil, e aos quais o Brasil ainda não retribuiu elevando-lhes a vida a um mínimo de justiça compatível com a própria dignidade humana”.
SUBVERSÃO
“Tenho uma mensagem a transmitir em nome da consciência nacional: a necessidade das reformas.
“Não se pode esperar que, do enriquecimento de alguns e do empobrecimento de muitos, surja a solução, como não podemos pensar que as grandes nações nos ajudem quando trabalhamos mais para nos tornarmos cada vez mais pobres e menos remunerados.
“O que desejo evitar é que a crise caminhe para um desfecho caótico e subversivo. Daí, o alerta permanente que venho transmitindo à Nação em favor das reformas de base, única saída para a complexidade de nossa atual crise.
“O povo, através de todas as classes, decidiu manifestar seus pontos de vista sobre os problemas brasileiros e sugerir soluções. Quer estar presente nas decisões, das quais já não é possível afastá-lo.
“Assim entendo as manifestações dos líderes sindicais quando intervêm em setores não estritamente sindicais.
“É que eles, os operários, não são apenas assalariados. São brasileiros.
“Compreendo que isso choque a alguns reacionários empedernidos. Os operários falam linguagem contundente e emocionada, por vezes sujeitas a certos excessos, impostos pela condição de pessoas que sentem na própria carne o drama do país.
“Há que considerar, por outro lado, que data de agora a intervenção dos trabalhadores na vida pública. Falta-lhes tradição cultural e certamente lhes faltam certos pendores aristocráticos que constituem o privilégio de uns poucos antigos donos do Brasil.
“O espantoso, porém, a meu ver, é que líderes conservadores, senhores de velhas e nobres tradições, tragam para o debate um tom emocional injustificável, quando se trata de combater o direito de intervenção na vida pública pelas classes populares.
“Considero uma vitória do Brasil, humano e cristão, vermos os nossos operários desejando o diálogo em vez de caminharem para a revolução.
“O diálogo poderá ser veemente, mas é, antes de tudo, um debate necessário à democracia. O rádio ampliou de tal forma a rede de informações, que a própria condição de analfabeto, hoje, já não pode ser arguida para impedir o direito de discutir e de opinar.
“Trabalhadores da cidade e do campo são os nossos companheiros de vida e de luta e com eles constituímos a oitava população do mundo, numa extensão territorial que é a quarta da terra.
“Não se constrói sufocando a personalidade da grande maioria de nosso povo. Num país que se orgulha de não ter restrições sociais e de não alimentar preconceitos de casta ou de classe, não podemos aceitar distinções sibilinas e ultrapassadas para afastar do debate a grande maioria de nossas populações.
“Em 1962, lutamos pelo restabelecimento do regime. Em 1963, procuramos contornar as dificuldades econômico-sociais através do Plano Trienal, mas frisei, sempre, em várias oportunidades, assim como no próprio texto do Plano, na mensagem de sua apresentação ao Congresso, que sem as reformas não chegaríamos a qualquer resultado positivo.
“O governo pôs-se a trabalhar no cumprimento de seus deveres constitucionais e segundo o imperativo democrático da promoção do bem comum.
“As forças reacionárias se uniram na campanha contra as reformas e passaram a sustentar que, com tais reformas, o que se pretende é a destruição da ordem jurídica, econômica e social.
“Tive de ir pessoalmente lutar na praça pública, a fim de afirmar os verdadeiros propósitos da campanha reformista.
“Tenho dito e reiterado, em numerosas oportunidades, que as reformas não pretendem atingir, anular ou de qualquer maneira comprometer a ordem nacional.
“Trata-se, antes, de ampliá-la até abrir espaço verdadeiro ao progresso ordenado do país, que precisa garantir a todos iguais oportunidades e igual acesso ao bem-estar social e econômico.
“Enfrentamos a conspiração de agosto e, de crise em crise, chegamos ao momento que agora estamos vivendo, quando a inflação nos ameaça a todos e as estruturas arcaicas impedem o processo pacífico de desenvolvimento nacional.
“Se não atendemos aos apelos da consciência popular, promovendo medidas de que me considero simples intérprete, não tenho dúvidas de que marcharemos inexoravelmente para o caos.
“Não adianta combater as reformas pura e simplesmente, ou combater, por mero espírito de oposição destrutiva, a figura do Presidente da República.
“As reformas não são a expressão de um capricho, nem o Presidente poderia estar à mercê de caprichos pessoais.
As reformas serão feitas – ninguém pode ter dúvidas.
Apesar de toda a paciência que vem orientando a minha ação na chefia do governo, e de que são testemunhas todos os brasileiros, desejo reiterar que é desnecessário esperar que eu venha a compactuar com a traição ao povo e aos imperativos da consciência nacional.
“Vou lutar e continuarei lutando sem esmorecimento.
“Não desejo suprimir vantagens legitimamente auferidas por parcelas do povo, nem tampouco me move o desejo insano de atingir o patrimônio de quem quer que seja.
“O que me anima é o trabalho em prol da justiça.
“O que desejo é dar condições para que todos tenham vantagens num futuro próximo, e todos possam um dia igualmente defender o patrimônio que possuem.
“A essência do trabalhismo, para mim, reside em dar a cada um o respeito que se tem a si próprio.
“É dentro dessa perspectiva democrática e cristã, genuinamente brasileira, que atende às nossas melhores tradições culturais, que se coloca a minha pregação.
“Faço um apelo à inteligência brasileira para que se volte para a nossa realidade e procure convergir todos os esforços no sentido de elaborar, formular e tornar imediatamente viáveis as reformas de base de que necessitamos.
“O papel do Congresso é dos mais relevantes, e os congressistas, que receberam das fontes populares os seus mandatos, não podem ausentar-se do problema que agora nos ameaça em termos inapeláveis.
“Com espírito realista, procurei apontar as diretrizes dentro das quais é possível reformar o país e abrir caminho ao Brasil futuro que pede impacientemente para nascer: um Brasil próspero, humano e justo.
“Só nesse Brasil, o regime democrático e as instituições que todos prezamos poderão estar a salvo.
“Vivemos, hoje, sob uma expectativa de acontecimentos incontroláveis
“A palavra revolução deixou de ser um fantasma abstrato e passou a atingir os próprios fundamentos da confiança indispensável ao trabalho profícuo e à ordem social.
“A revolução já não é uma simples bandeira de ameaça demagógica porque se transformou, de fato, num temor real da Nação, e temor que cresce à medida que se acelera o ritmo inflacionário.
“Já ultrapassamos os limites do suportável.
“Urge, agora, ajustar medidas de emergência no âmbito das finanças internas e internacionais, para resguardar o mínimo de tranquilidade social, indispensável ao encaminhamento pacífico das modificações estruturais que irão possibilitar a realização do destino histórico que aguarda o Brasil como Nação civilizada e democrática”.
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