Movimento foi épico interna e externamente. No país, foram libertados os presos políticos da ditadura salazarista, permitiu a volta de exilados e nacionalizou bancos e empresas. E ainda em meio às turbulências, a revolução marcou a independência de todas as colônias na África
O ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, está em Lisboa para representar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos eventos de comemoração dos 50 anos da Revolução dos Cravos, ocorrida em 25 de abril de 1974.
Mauro Vieira, lendo mensagem de Lula no evento da celebração, afirmou que “esta data marca não apenas o início da redemocratização de Portugal, mas também o momento em que o país derrotou o fascismo, reconheceu o direito à autodeterminação de todos os povos e deu início à jornada para enfrentar seu passado colonial”.
Também, por meio de nota, o Itamaraty, comenta a importância deste “período em que o país derrotou o fascismo”.
“Os eventos de 25 de abril de 1974 marcaram o início da redemocratização de Portugal, período em que o país derrotou o fascismo e reconheceu o direito à autodeterminação de todos os povos.”
E acrescentou: “A Revolução dos Cravos legou a Portugal um sistema político plural e inclusivo, voltado à construção de uma sociedade livre, justa e democrática”, está escrito na declaração de Lula, lida pelo chanceler.
CONVERSAS BILATERAIS
Durante a visita, Vieira vai se encontrar com o ministro do Estado e dos Negócios de Portugal, Paulo Rangel. Na conversa, vão repassar temas da agenda bilateral, regional e multilateral, de acordo com a agenda oficial.
Segundo o Itamaraty, Portugal é importante parceiro comercial do Brasil na Europa, com fluxo de comércio de US$ 4,7 bilhões em 2023, com superávit de US$ 2,7 bilhões para o Brasil.
Atualmente, mais de 400 mil brasileiros residem em Portugal. “As relações Brasil-Portugal têm natureza única, pela história compartilhada pelos dois povos”, afirmou.
MENSAGEM DE LULA
“Os ideais democráticos e humanistas da Revolução dos Cravos serviram de inspiração a outros países. A própria Constituição brasileira de 1988, conhecida como a ‘Constituição Cidadã’, inspirou-se no modelo prospectivo e transformador da Constituição Portuguesa de 1976”, congratulou Lula, respectivamente, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, Luís Montenegro, de Portugal.
“Nos últimos cinquenta anos, Portugal firmou seu lugar no mundo: um país ao mesmo tempo atlântico e europeu, pacífico e seguro, próspero e confiante, sem jamais renunciar à âncora da lusofonia”, acrescentou.
HISTÓRIA
Naquela madrugada de 25 de abril de 1974, há 50 anos, eclodiu a Revolução dos Cravos, que pôs fim ao regime autoritário mais longo da Europa Ocidental no século 20 — começara com a Ditadura Nacional, em 1926, e prosseguira com o Estado Novo de António Salazar, a partir de 1933.
O nome da movimentação que derrubou a autocracia lusitana veio dos cravos usados pelos rebeldes na lapela de seus trajes, para se identificar. Liderados por grupo de 200 capitães e majores, os amotinados foram recebidos com festa da população nas ruas das grandes cidades lusitanas.
OPOSIÇÃO À GUERRA NAS COLÔNIAS
Uma das principais motivações para a insurgência foi a oposição à guerra nas colônias africanas. Na época, Portugal ainda mantinha fortes vínculos com seus domínios no continente negro.
Moçambique, Angola, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe eram, ao mesmo tempo, fonte de matéria-prima e mercado consumidor para produtos manufaturados lusitanos.
No início dos anos 1960, começaram a brotar movimentos de independência na forma de guerrilhas armadas naqueles países. O governo fascista de Salazar, por sua vez, esforçava-se para reprimir as mobilizações a todo custo.
A manutenção das colônias era parte da ideologia do Estado Novo. O regime autocrata e corporativista vigorou durante 41 anos sem interrupção, desde a aprovação da Constituição de 1933. O pensamento era inspirado no fascismo italiano e no integralismo lusitano.
REVOLUÇÃO
A Revolução dos Cravos libertou presos políticos, permitiu a volta de exilados e nacionalizou bancos e empresas, provocando êxodo de empresários reacionários para Brasil e África.
O próprio Marcello Caetano — último presidente do Conselho do Estado Novo —, buscou abrigo político no Brasil, que na época ainda estava longe de se livrar da ditadura de 1964. Ele se tornou professor de Direito Comparado na Universidade Gama Filho, no Rio, e morreu em 1980.
À Revolução dos Cravos se seguiu período de intenso confronto político batizado de Prec (Processo Revolucionário em Curso).
No auge das turbulências, o verão de 1975 foi apelidado de Verão Quente, no qual o país esteve perto de guerra civil, com ataques a sedes de partidos de esquerda.
Absorvido com questões internas, tentando restabelecer a democracia, Portugal acaba por concordar com a independência à todas as suas colônias na África.
Leia o comunicado do Itamaraty:
O Ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, visita Lisboa, em 25 e 26 de abril, para representar o Presidente da República nos eventos de comemoração dos 50 anos da Revolução dos Cravos, ocorrida em 25 de abril de 1974.
Os eventos de 25 de abril de 1974 marcaram o início da redemocratização de Portugal, período em que o país derrotou o fascismo e reconheceu o direito à autodeterminação de todos os povos. A Revolução dos Cravos legou a Portugal um sistema político plural e inclusivo, voltado à construção de uma sociedade livre, justa e democrática.
Durante a visita, o Ministro Mauro Vieira manterá encontro com seu homólogo, Paulo Rangel. No encontro, os chanceleres repassarão temas da agenda bilateral, regional e multilateral.
As relações Brasil-Portugal têm natureza única, pela história compartilhada pelos dois povos. O país é importante parceiro comercial do Brasil na Europa, com fluxo de comércio de US$ 4,7 bilhões em 2023, com superávit de US$ 2,7 bilhões para o Brasil. Atualmente, mais de 400 mil brasileiros residem em Portugal.
Mensagem do Presidente Lula lida pelo Ministro Mauro Vieira na cerimônia de celebração dos 50 anos da Revolução dos Cravos-Lisboa, 25 de abril de 2024
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa,
Excelentíssimo Senhor Primeiro Ministro da República Portuguesa, Luís Montenegro, em nome de quem saúdo os demais Chefes de Estado e Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa,
Meu colega, Ministro Paulo Rangel,
Senhoras e senhores, amigos e amigas,
É antes de mais nada uma enorme honra representar o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que por força de compromissos assumidos no Brasil, não pôde estar conosco hoje, e proferir, em seu nome, algumas palavras que refletem seu sentimento sobre um movimento que transformou profundamente Portugal e impactou o mundo lusófono.
Agradeço, primeiramente, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa – um conhecido amigo do povo brasileiro – pelo honroso convite para que o Brasil se fizesse representar nessa solenidade histórica em que se comemoram os cinquenta anos da Revolução dos Cravos.
Tomo a liberdade de começar citando artigo altamente emocional da lavra do escritor brasileiro Ruy Castro – um homem que sempre travou suas batalhas na trincheira da democracia –, publicado na edição do último domingo de um dos maiores jornais brasileiros. Nele, rememora sua experiência pessoal naquela Lisboa de 25 de abril de 1974:
Cito:
“Entre os jornalistas brasileiros, eu era o único a estar lá – por acaso, mas estava. E não só naquele dia. (…) Só n[o] dia 28 chegaram os repórteres, alguns, da imprensa internacional, tão famosos quanto seus jornais ou revistas. Mas nenhum tinha mais condições de avaliar aquele momento do que os brasileiros (…), também porque o Brasil vivia a pior época de sua própria ditadura, a dos anos Médici. Pois ali estávamos nós, vendo ruir uma ditadura com trilha sonora em português.
A diferença entre as duas ditaduras estava no grau de censura. Tivesse a Revolução dos Cravos acontecido no Brasil, a imprensa portuguesa seria obrigada a escondê-la nas páginas internas e minimizar sua importância. Já a nossa imprensa, amordaçada sobre outros assuntos, pôde celebrar a libertação portuguesa com estardalhaço”.
O renomado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que, muito jovem, ao lado de sua esposa Lélia, tinha-se exilado da ditadura brasileira em Paris, conta que, com a Revolução, o casal decidira viajar de carro a Lisboa, onde faria sua primeira grande reportagem fotojornalística. Seu registro é igualmente poderoso e ilustrativo:
“Foi uma coisa maravilhosa, porque não fomos só nós. Todo mundo que tinha uma ideia libertária, que tinha o sonho do socialismo de verdade, de uma verdadeira democracia, foi para Portugal: uma espécie de Revolução Espanhola, só que sem violência.”
Impressiona o grau de unanimidade que a Revolução amealhou na sociedade portuguesa à época, tendo contagiado outros países do universo espiritual lusófono.
A Revolução dos Cravos legou a Portugal um sistema político plural e inclusivo, voltado à promoção da dignidade humana e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Os ideais democráticos e humanistas da Revolução dos Cravos serviram de inspiração a outros países. A própria Constituição Brasileira de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, inspirou-se no modelo prospectivo e transformador da Constituição Portuguesa de 1976.
Esta data marca não apenas o início da redemocratização de Portugal, mas também o momento em que o país derrotou o fascismo, reconheceu o direito à autodeterminação de todos os povos e deu início à jornada para enfrentar seu passado colonial.
Nos últimos cinquenta anos, Portugal firmou seu lugar no mundo: um país ao mesmo tempo atlântico e europeu, pacífico e seguro, próspero e confiante, sem jamais renunciar à âncora da lusofonia.
A sensível melhoria dos indicadores sociais, o salto qualitativo da infraestrutura, a inserção na União Europeia, tudo isso representa avanço inegável em relação à realidade pré-revolucionária.
Nossa Comunidade de Países da Língua Portuguesa é uma grande fraternidade unida pelo idioma, pelos laços históricos e culturais compartilhados e pelo espírito de concórdia. Hoje, compartilhamos uma visão mais homogênea de nosso passado comum.
Senhor Presidente,
Vivemos em um contexto internacional cada vez mais desafiador e complexo. Segundo algumas estimativas, há mais de 150 conflitos em curso no mundo, enquanto as tensões geopolíticas se agravam, e os embates entre as potências tornam-se a cada dia mais agudos.
Recorre-se ao uso da força militar em ritmo semelhante ao abandono das regras e normas multisseculares que regem o Direito Internacional.
Nesse momento crítico para as relações internacionais, Portugal tem-se destacado como um exemplo de estabilidade e comprometimento com o diálogo e a cooperação. O país mantém firme compromisso com o multilateralismo, com o Direito Internacional e com a solução pacífica de controvérsias. Assim como o Brasil, Portugal não aceita um mundo em que as diferenças são resolvidas com base na lei do mais forte.
Dentro de nossos países, a influência crescente das redes sociais tornou nossas sociedades vulneráveis a campanhas de desinformação e manipulação, que deslegitimam a política e a ação coletiva e colocam em risco a própria democracia. O aumento da desigualdade cria uma casta de poucas pessoas extremamente poderosas que podem empregar seus vastos recursos para desestabilizar governos.
Senhor Presidente,
Neste ano em que comemoramos os cinquenta anos do 25 de Abril, o Brasil ocupa a presidência do G20, um fórum internacional de grande relevância para a coordenação macroeconômica entre seus membros e ainda maior potencial para transformar a governança global.
É, antes de tudo, o fórum político e econômico com maior capacidade de influenciar positivamente a agenda internacional na atualidade.
Como já declarado pelo próprio Presidente Lula, não convém a ninguém um mundo marcado pelo recrudescimento dos conflitos, pela crescente fragmentação, pela formação de blocos protecionistas e pela destruição ambiental.
Na presidência do G20, portanto, o Brasil buscará promover uma nova globalização que promova a paz e combata as disparidades, com base na promoção do desenvolvimento sustentável em suas dimensões social, econômica e ambiental.
Temos muito orgulho de contar com Portugal durante nossa presidência do G20. Ao lado dos demais países-irmãos da CPLP, é um parceiro indispensável em nosso esforço de renovar as instituições políticas internacionais e recolocar as pessoas no centro das políticas públicas.
Senhor Presidente,
O cinquentenário do 25 de Abril nos lembra o quanto um povo pode alcançar quando está determinado a construir instituições democráticas.
Este momento é também uma oportunidade de refletirmos sobre o futuro.
A capacidade dos portugueses de reinventar seu país é uma fonte de inspiração a todos aqueles que desejam um mundo mais livre, mais humano, mais justo e mais próspero.
Esses são também os objetivos do terceiro mandato do Presidente Lula à frente da Presidência da República no Brasil. Não é coincidência: os ventos da Revolução dos Cravos atravessaram o Atlântico Sul e apraiaram no Brasil, inspirando gerações de brasileiros e brasileiras a lutar pela democracia, pela civilidade e pela dignidade humana. Essa luta não terminou.
Os ataques à política e à cultura, que tristemente dominaram o Brasil nos últimos anos, impediram que o genial Chico Buarque recebesse o Prêmio Camões em 2019. Somente no ano passado essa injustiça foi reparada, com a entrega do prêmio, aqui em Lisboa, na presença do Presidente Lula e do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Como canta Chico na segunda versão de “Tanto Mar”:
“Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim”
Feliz 25 de Abril. Viva Portugal! Viva a democracia!
Muito obrigado.