27 menores desacompanhados, que estão entre os 507 náufragos tirados das águas do Mediterrâneo nas duas últimas semanas, e há 16 dias vivendo uma agonia em busca de um porto seguro, puderam desembarcar do navio humanitário Open Arms no sábado em Lampedusa, Itália, após recuo a contragosto do vice-primeiro-ministro e ministro do Interior, Matteo Salvini, por pressão do primeiro-ministro Giuseppe Conte.
Os menores chegaram a terra à tarde em dois barcos da Guarda de Finanças e da Guarda Costeira e foram levados para um centro de acolhida. Previamente, a justiça italiana havia nomeado guardiões para as crianças. Um menor continuou no navio, por estar acompanhado de um adulto.
Conforme Francesco Piobbichi, da ong Mediterranean Hope, o desembarque dos menores foi “tranquilo”, eles são procedentes de “diferentes partes do continente africano: Egito, Chade, os países do Chifre da África”. Ele acrescentou que os menores não apresentam sinais de doenças, mas estão psicologicamente abalados pelos dias no mar.
“COM MUITO PESAR”, DIZ XENÓFOBO
A autorização de desembarque dos menores foi dada por Salvini “com muito pesar”, como fez questão de sublinhar. “A escolha é exclusiva do primeiro-ministro e supõe um precedente perigoso”, assinalou, também caracterizando os 27 náufragos como “menores presumidos”.
Disse depois que “outros cedem, mas eu não mudo” e que se reserva o direito de ir aos tribunais para manter sua política – isto é, a xenofobia.
Pela lei italiana que ficou conhecida como ‘Decreto Salvini’, apenas o ministro do Interior, ou seja, ele próprio, é que pode decidir para liberar ou proibir o trânsito ou a detenção de navios em mar territorial por razões de segurança pública ou por suposto favorecimento da imigração clandestina.
Nos termos do decreto, o Open Arms está sujeito a confisco e multa de 1 milhão de euros por entrar em águas territoriais italianas com os náufragos, além da prisão de seu capitão.
Na prática, Salvini, que empurrou o governo para a dissolução e antecipação de eleições, que espera vencer apelando para a xenofobia e o racismo, vem fazendo dos náufragos seus reféns na crise política em curso na Itália.
Na carta que levou Salvini a ceder, o primeiro-ministro reiterou “que é necessário o desembarque imediato de menores de 18 anos presentes a bordo do navio”. E acrescentou que a Comissão Europeia “confirmou a disponibilidade de uma pluralidade de países europeus (França, Alemanha, Luxemburgo, Portugal, Romênia e Espanha) para partilhar os custos de hospitalidade para todas as pessoas com quem estamos lidando, incluindo independer da sua idade”.
Poucos dias antes do resgate feito pelo Open Arms, dezenas de migrantes morreram no pior naufrágio no ano no Mediterrâneo.
REFÉNS
Como denunciou pelo Twitter o líder da entidade espanhola que opera o Open Arms, Oscar Camps, “segue o abuso dos que pretendem tapar um fracasso político provocando o sofrimento desnecessário aos mais vulneráveis”. E acrescentou: “107 pessoas mais 19 tripulantes seguem sofrendo a bordo”.
O fracasso se refere à tentativa de Salvini de uma moção de desconfiança contra Conte, para se livrar da coalizão com o Cinco Estrelas, antecipar eleições e partir para nova aliança, com os fascistas do Fratelli d’ Itália e, quem sabe, Berlusconi.
Antes dos 27 menores, foram retirados dos navios 13 doentes que, para Salvini, são “doentes imaginários”.
A médica Katia Valeria Di Natale, do Corpo Italiano de Resgate da Ordem de Malta, que visitou o Open Arms, afirmou que a situação é de “condições de higiene péssimas”. “Os náufragos vivem amontoados uns sobre os outros, há apenas dois banheiros químicos e, muitas vezes, os náufragos são obrigados a fazerem suas necessidades fisiológicas onde dormem e comem”, ressaltou em comunicado ao qual a ANSA teve acesso.
Na segunda-feira, o tribunal administrativo de Lazio, que autorizou o ingresso do Open Arms em águas territoriais italianas, contra a decisão de Salvini, poderá julgar recurso do ministro.
Como advertiu o capitão do Open Arms, Mark Reig, há uma situação “desumana e insustentável” a bordo e os náufragos não entendem porque não podem desembarcar e alguns querem se lançar nas águas, para ingressar em Lampedusa, a apenas centenas de metros do navio. “Corremos o risco de viver uma tragédia”, alertou o psicólogo a bordo do navio humanitário, diante do cansaço e exasperação dos náufragos.
O Open Arms se dirigiu para águas territoriais italianas em decorrência de risco, com o navio enfrentando vagas de dois metros e meio. O tribunal reconheceu abuso de poder por parte de Salvini e a violação da lei internacional sobre resgate no mar.
PROMOTORIA INVESTIGA ‘SEQUESTRO’
Na sexta-feira, a Procuradoria de Agrigento abriu uma investigação por delito de sequestro contra desconhecidos para determinar por quê razão os migrantes são impedidos de desembarcar, depois que a Guarda Costeira italiana, em documento enviado ao Ministério do Interior, pediu “urgentemente” uma solução para o caso e assegurou que “não vê nenhum tipo de impedimento” ao desembarque.
Uma das opções que o Ministério Público italiano está considerando é a apreensão do navio para levá-lo ao porto e forçar o desembarque, como já fez em casos anteriores de bloqueio de navios humanitários.
Após o desembarque dos menores no sábado, policiais judiciais e médicos entraram no Open Arms para uma inspeção solicitada pelos promotores com o objetivo de verificar as condições higiênico-sanitárias a bordo, para que seja confirmado o “estado de necessidade” do navio humanitário.
Há um mês, a Justiça da província de Agrigento havia determinado a libertação da capitã do navio humanitário Sea-Watch, a alemã Carola Rackete, detida por ter desembarcado 40 imigrantes no porto de Lampedusa, após atracar sem autorização. Os resgatados estavam à deriva há 17 dias sem ter respeitado seu direito a um porto seguro.
OCEAN VIKING
Os refugiados a bordo do Open Arms são parte de um grupo de 507 imigrantes resgatados desde o dia 1º de agosto no Mediterrâneo, em operações em que também participou o navio humanitário Ocean Viking, fretado pela SOS Mediterranean e o Médicos Sem Fronteiras. 365 resgatados – um terço deles, menores – estão a o bordo do Viking, entre Malta e a Itália, também sem autorização de desembarque.
A decisão da Comissão Europeia, embora demorada, de tomar uma atitude para abrigar os 507 náufragos veio após insistentes apelos da agência da ONU para refugiados (ACNUR), do Papa Francisco e de outras personalidades.
Entre elas, o ator Antonio Banderas, segundo o qual a situação com o Open Arms “tem muito a ver com o que está acontecendo no mundo”, onde, por exemplo, à frente dos EUA, “há um senhor que quer construir um muro na fronteira com o México”.
A determinação dos seis países europeus em acolherem os refugiados torna ainda mais cruel e aberrante a insistência de Salvini de negar a eles o desembarque em porto seguro, como determina a lei internacional do mar e o senso mais elementar de humanidade.
BODES EXPIATÓRIOS
Na sexta-feira, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) informou que este ano pelo menos 844 migrantes e refugiados morreram ou desapareceram no Mar Mediterrâneo ao tentarem chegar à Europa. A maioria veio de países da África, Ásia e Oriente Médio, fugindo da fome e da guerra.
Não é por acaso que a principal rota de imigrantes com rumo à Europa parte da Líbia – o país foi destruído pela guerra da Otan em 2011 e desde então está submetido ao caos. Os que são capturados pelas milícias no poder fantasiadas de ‘Guarda Costeira’ acabam em campos de concentração ou escravizados. Aquele um milhão de pessoas que inundou a Europa em 2015 era o ‘dano colateral’ da guerra dos EUA contra a Síria.
O que empurra aos magotes os imigrantes é o desastre neoliberal que lhes é enfiado goela abaixo pelo FMI e pelos bancos, a herança colonial e as guerras do Pentágono.
Nos países centrais, os imigrantes vêm servindo de bodes expiatórios para a década de arrocho e corte de direitos, imposta para resgatar bancos que quebraram fraudando e especulando no crash de 2008, à custa de todos os demais.
O cemitério em que o Mediterrâneo se tornou, e que causa tanto furor a Salvini, é a outra face da moeda do muro anti-mexicanos do biliardário Trump. Como expressou uma manifestação do outro lado do Atlântico contra a perseguição aos imigrantes pelo governo Trump, “se não quer que venham, pare de criá-los”.
A.P.