Em texto especial para o suplemento Cash [do jornal Página 12], o ex-ministro de Economia do governo de Cristina Kirchner, Axel Kicillof, explica que a atual instabilidade financeira é o resultado inexorável do programa econômico que vem se aplicando desde a primeira semana do governo de Macri. O economista afirma que as políticas neoliberais conduzem fatalmente à desindustrialização, à exclusão social e ao superendividamento. Seguem trechos do artigo.
AXEL KICILLOF
A esta altura dos acontecimentos, a ninguém escapa que tanto a grave situação que a economia real sofre – emprego, produção e salários em queda livre – como a enorme instabilidade financeira, são o resultado inexorável do programa econômico que Macri vem aplicando desde a primeira semana de seu governo.
Isso é grave desde o ponto de vista econômico e social. Mas não há que perder de vista que o plano que o governo executa se encontra em aberta contradição com tudo o que prometeu na campanha eleitoral para chegar ao poder. Macri e Vidal serão lembrados como os protagonistas da mais escandalosa fraude eleitoral de que se tem memória.
Como chegamos até aqui? Como caracterizar o plano econômico de Macri? Apesar do bombardeio da mídia, das manobras de distração e das opiniões dos “especialistas”, é impossível não advertir de que se trata, em realidade, de um programa de puro corte neoliberal, inspirado no chamado “Consenso de Washington”. Em resumo, as medidas são as de sempre: 1. redução salarial; 2. abertura às importações; 3. desregulamentação financeira; 4. dolarização das tarifas; 5. taxa de juros elevada; 6. ‘ajuste’ fiscal; 7. rebaixamento de impostos para os setores onde se concentra a maior renda; e 8. endividamento externo.
As políticas neoliberais conduzem fatalmente à desindustrialização, à exclusão social e ao superendividamento. Para a produção nacional o coquetel é fatal. A política de contração salarial e o ajuste fiscal reduzem a demanda interna e, portanto, o faturamento e as vendas. Os tarifaços, por sua parte, elevam os custos, e a elevada taxa de juros encarece o crédito até fazê-lo inacessível. Deste modo, as receitas baixam e os custos aumentam, comprimindo os lucros. Mas, além disso, o aluvião de importações tira mercado à produção nacional.
Para a indústria é, com efeito, uma tormenta perfeita, mas não se trata de um fenômeno casual da natureza, senão que a tormenta está integralmente gerada pelas políticas que Macri adotou. Nada disto tem a ver com uma suposta “pesada herança”, porque nada do que acontecia em 2015 obrigava o governo de Macri a abrir indiscriminadamente as importações ou a habilitar uma porta giratória com enorme rentabilidade para os capitais especulativos.
É um mal plano porque se trata do pacote neoliberal que tantas vezes se impôs no país, na região e no mundo e que invariavelmente fracassou. Mas, além disso, Macri o está aplicando em um momento muito ruim, fora de tempo. Nos anos noventa, o mercado mundial experimentava uma etapa de auge do livre comércio. E ainda, pelo menos durante um tempo, houve muitos capitais dispostos a entrar em países “emergentes”. Não é por isso que o neoliberalismo foi bem sucedido ou adequado para o país mas, ao menos durante um tempo, assim se manteve essa aparência.
Nas atuais circunstâncias da economia mundial, ao contrário, as decisões de Macri estão indiscutivelmente fora de época. Tenta-se com desespero atingir acordos de livre comércio quando os países centrais adotam políticas claramente protecionistas. E se buscam investimentos financeiros quando o fluxo de capitais se dirige para os países centrais e não para a periferia.
MARKETING ECONÔMICO
Durante 2016, os primeiros efeitos das políticas neoliberais fizeram-se sentir com crueldade. A economia contraiu 2,3%, a inflação atingiu 41%, o salário real caiu 7,2% e as aposentadorias 6,6%. Mas 2017 era um ano de eleições e Macri necessitava a todo custo ganhá-las. Com esses resultados desastrosos, as promessas de um “segundo semestre”, os “brotos verdes”, a “luz no final do túnel” e a “chuva de investimentos” continuavam sem aparecer. Por isso, o governo resolveu utilizar “anabolizantes” para reanimar a economia. Aplicaram-se quatro medidas, encaminhadas a impulsionar transitoriamente a demanda: 1. suspendeu-se o cronograma dos ‘tarifaços’ (incluídas os combustíveis e até o programa Futebol para Todos); 2. puseram-se em marcha numerosas obras superficiais; 3. repartiram-se cinco milhões de créditos a aposentados e beneficiários do programa Subsídio Universal por Filho; e 4. se instrumentalizou a cláusula gatilho nos acordos coletivos. Desta maneira, a demanda reavivou-se levemente, impulsionando a atividade econômica e produzindo um alívio durante alguns meses.
Porém, logo que terminou a votação, Macri retomou o caminho do ajuste. Nessa mesma noite anunciou-se o aumento da gasolina e se cancelaram todas as medidas de estímulo. Poucos dias depois, Macri reuniu governadores, empresários, “opositores” e sindicalistas e anunciou um pacote de reformas (fiscal, trabalhista e previdenciário) que, como de costume, nunca tinha mencionado na campanha.
O governo e sua mídia pretendiam interpretar o resultado da eleição como um cheque em branco. Mas a reação da sociedade não foi a esperada por eles. A reforma trabalhista teve que ser suspensa e a reforma previdenciária, que não era outra coisa que uma redução das aposentadorias, acabou em um massivo panelaço, que foi violentamente reprimido.
FRAGILIDADE FINANCEIRA
Enquanto isso, por trás da cena, a situação financeira do país ia ficando cada vez mais precária e instável. Como sempre aconteceu, a política neoliberal de taxas de juros elevadas e livre entrada e saída de capitais, tem como resultado a conhecida “bicicleta financeira”. Os capitais especulativos entram ao país para lucrar com essa rentabilidade extraordinária, e depois recolhem seus ganhos e vão embora. Uma vez que começa o processo, o Estado se converte em refém do mecanismo. Deve contrair cada vez mais dívida para sustentar a saída de capitais e deve manter a taxa elevada para evitar a fuga massiva. O endividamento externo não é provocado pelo déficit fiscal –como assegura o governo–, mas pela necessidade crescente de dólares, o que, por sua vez, obriga o Estado a se endividar cada vez mais, a manter a taxa alta e a cortar o orçamento para poder cobrir os juros crescentes da dívida que contrai. Para ocultar este processo o governo não parou nunca de mentir: afirma que se endivida para não fazer o ajuste quando é justamente ao contrário. Deve ajustar cada vez mais por ter se endividado tanto.
A instabilidade financeira é outro resultado inexorável da política neoliberal de Macri. E qualquer faísca pode acender o paiol.
MARATONA CAMBIAL
A partir de dezembro de 2017, tudo foi de mal a pior. A agenda de “reformas” estava retida. A atividade econômica começava a ressentir-se novamente, já sem o peso das medidas eleitorais. O ministro de Finanças viajou então a Nova Iorque para conseguir o financiamento necessário para o ano –30 bilhões de dólares– e lá ficou sabendo que o crédito para a Argentina estava esgotado, antes do previsto. Em seus primeiros anos de governo tinha contraído uma dívida recorde por quase 100 bilhões de dólares e tinha duplicado a dívida em moeda estrangeira. A metade tinha sido drenada já como fuga de capitais. Ao mesmo tempo, o déficit comercial havia atingido em 2017 o recorde de 8,5 bilhões de dólares. Sob as regras impostas por Macri a necessidade de divisas é irrefreável.
Finalmente, em abril, desencadeou-se a corrida cambial. Nos dois meses seguintes o dólar passou de 20 a 28 pesos. Diante da pressão cambial o governo pode reagir de três maneiras: pode convalidar a desvalorização, pode subir a taxa de juros ou pode sacrificar reservas para sustentar o tipo de câmbio. Todas as alternativas têm custos elevados. A imperícia do governo foi tal que fez as três coisas de uma vez: perdeu quase 20 bilhões de dólares, subiu a taxa a 47% e permitiu uma imensa desvalorização.
Sem fontes privadas de financiamento e depois da forte perda de reservas, em 8 de maio, Macri anunciou o maior acordo da história com o FMI, por 50 bilhões de dólares. Esse acordo implicava um duríssimo ajuste fiscal para 2019, próximo aos 300 bilhões de pesos. Durante os primeiros dias, Macri tentou fazer com que os que lucravam com o modelo neoliberal contribuíssem com o ajuste. Passou o chapéu. Mas recebeu a negativa de seus sócios (complexo agroexportador, financistas e petroleiras). Então, nestes últimos dias, o governo tentou instalar, com pouco sucesso, que o ajuste seja realizado pelas Províncias, Municípios, trabalhadores, aposentados e os setores mais relegados. Provavelmente, a corrida que se desatou com maior violência estes últimos dias tenha como um de seus fatores explicativos o fato de que as vítimas que Macri novamente escolheu não estão dispostas a aceitar tão docilmente tal destino. A solução não é ajustar e se endividar para desindustrializar e muito menos fugir. A solução é abandonar o desastroso programa neoliberal.