Somente o tenente que chefiava a patrulha disparou 77 tiros de fuzil e 11 tiros de pistola 9 mm
A ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM), na complementação de seu voto – proferido uma semana antes – contra soltar os atiradores que assassinaram Evaldo Rosa e Luciano Macedo, em Guadalupe, no Rio, apontou que os acusados falsificaram provas, ao apresentar fotos de viaturas com marcas de tiro, que não foram usadas por eles.
“Durante o auto de prisão em flagrante, ao utilizarem-se da mentira, que inclusive comprometeu o Comando Militar do Leste, comprometeu a própria credibilidade do Exército, eles influíram para que viessem aos autos três fotos de viaturas atingidas”, disse a ministra.
Exibindo as fotos, ela mostrou que a viatura usada pela patrulha, um transporte Agrale Marruá, não tinha uma só bala, como, aliás, fora constatado pela perícia.
No entanto, foram anexadas, no processo, fotos de outras viaturas, com marcas de balas.
“Tais viaturas de fato possuem marca de tiro, no entanto, em tais fotografias, que são parte de veículos, se percebe nitidamente que se tratam de automóveis completamente diferentes daquele que estava sendo utilizado na ação. Os militares que engendraram esse esquema ardiloso para enganar o Comando do Leste apresentaram fotos de blindados que foram de fato alvejados por tiros.
“Só que os militares não trafegavam nesses blindados. Eles trafegavam numa viatura em que não se constatou tiro algum. Os militares forjaram em três fotografias inidôneas que haviam sido alvejados durante a ação quando, na verdade, o veículo que dirigiam era outro e que a perícia não constatou nenhum disparo ou nenhum tiro.
Ressalvando que, em sua opinião, um réu tem direito a ampla defesa, “tem até o direito de mentir”, mas “não pode prejudicar a instrução processual”, prosseguiu a ministra:
“Neste caso, em concerto múltiplo, os réus apresentaram 3 fotografias de veículos blindados alvejados por alguma razão como se fossem os veículos que eles estavam dirigindo no momento. Sendo que o veículo que eles dirigiam no momento da ação não foi atingido por disparo algum.”
“Destarte, de fato, foi engendrado um esquema para escamotear a verdade. Daí o perigo de colocar em liberdade os envolvidos e estes novamente buscarem manipular as investigações.”
A ministra Maria Elizabeth mostrou que todos os tiros foram disparados contra o carro em que Evaldo Rosa conduzia a família para um chá de bebê. Não houve nenhum tiro disparado contra a viatura dos militares.
Somente o tenente Italo da Silva Nunes, chefe da patrulha, disparou 77 tiros de fuzil e 11 tiros de pistola 9 mm, lembrou a ministra, lendo a perícia. Ao todo foram disparados 257 tiros.
“Ainda que os supostos assaltantes estivessem no carro branco suspeito, não poderiam os militares supor que ali pararam, munidos de duas pistolas, com intuito de enfrentar uma tropa armada”, disse a ministra.
“Como pontuaram as testemunhas, [os acusados] já chegaram ao local atirando, sendo que ninguém viu ou ouviu qualquer tiro ser disparado em direção à tropa, ao contrário do que alegaram.
“Não houve troca de tiros, porque os disparos e os cartuchos encontrados foram todos localizados numa direção e não houve, então, direções opostas que pudessem, então, de alguma maneira ensejar que houve uma troca de tiros, como esses militares que participaram da ação alegaram.
“Das condutas dos réus, eles se valeram de um excesso injustificável. Pré-julgaram as vítimas com base em suas características étnicas-sociais.
“Um fato desses ocorreu num subúrbio do Rio de Janeiro com um hipossuficiente [pobre] negro.
“Talvez este fato não tivesse ocorrido em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro.”
Essa observação da ministra provocou desconforto em alguns outros ministros. Um deles, o ministro Odilson Sampaio Benzi, protestou, dizendo que falar naquele tema “contaminava” a discussão do habeas corpus para os atiradores de Guadalupe.
A ministra Maria Elizabeth continuou:
“Lamentavelmente no nosso país a discriminação racial ainda é levada em conta, os estereótipos ainda são levados em conta para se ferir dignidades, ou seja, para se verificar pelo menos presumivelmente quem pode ou quem não pode ser bandido.
“Quando um negro, pobre, no subúrbio do Rio de Janeiro é confundido com um assaltante, eu tenho dúvida se isso ocorreria com um loiro de olho azul em Ipanema, vestindo uma camisa Hugo Boss.
“Acho que existe, sim, ainda, um determinante racial, um determinante socioeconômico que confere identidades equivocadas no nosso País a determinados indivíduos. Isso, lamentavelmente, interpretei eu, aconteceu nessa tragédia em Guadalupe.”
RESULTADO
No dia 7 de abril, uma patrulha, composta por 12 militares, disparou contra o carro do músico Evaldo Rosa, um Ford Ka branco, na Estrada do Camboatá, quase esquina com a Avenida Brasil, no Rio de Janeiro.
Atingido por nove balas de fuzil, Evaldo Rosa morreu na hora. Seu sogro, Sérgio Araújo, apesar de ferido, conseguiu parar o carro.
Auxiliados por Luciano Macedo – trabalhador desempregado que, com a esposa, Daiana Horrara, grávida de cinco meses, catava materiais no local – a esposa de Evaldo, Luciana Nogueira, o filho de Evaldo, Davi, e uma amiga da família, Michele Neves, conseguiram sair do carro.
Luciano Macedo foi atingido por três balas nas costas – e faleceu no dia 18 de abril, no Hospital Carlos Chagas, para onde fora levado após a chacina.
Depois de inicialmente divulgar a versão de que a fuzilaria fora resposta a um assalto, o Comando Militar Leste, quando a família protestou, mandou prender os integrantes da patrulha (v. Presos 10 militares que despejaram 80 tiros em uma família no Rio de Janeiro).
Posteriormente, a juíza Mariana Queiroz Aquino Campos, da 1ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro, decretou a prisão preventiva dos nove membros da patrulha que atiraram em Guadalupe.
O julgamento no STM, que findou na quinta-feira (23/05), foi de um habeas corpus para que os atiradores de Guadalupe respondessem ao processo em liberdade.
Somente a ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha votou pela manutenção da prisão preventiva.
O ministro José Barroso Filho votou por manter a prisão preventiva apenas do tenente Italo da Silva Nunes e pelo recolhimento cautelar noturno dos demais.
A maioria dos ministros do STM, no entanto, votou pela soltura dos réus de Guadalupe, sem medidas cautelares.
C.L.
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