O escritor nicaraguense Sergio Ramírez, laureado com o Prêmio Cervantes, considerado o mais importante da literatura em língua espanhola, vice-presidente de seu país de 1984 a 1990, publicou, na segunda-feira, 11, um contundente artigo em que denuncia a política negacionista do governo presidido por Daniel Ortega sobre a pandemia do coronavírus, que leva o país à beira do desastre.
“Na Nicarágua não existe nenhuma epidemia causada pela Covid-19, porque as fronteiras do país têm sido blindadas, graças ao imaginário oficial, pela proteção divina. Todo o resto é fruto da conspiração de cérebros deformados e doentes, que só buscam caluniar e difamar. E desestabilizar o país, prejudicar a economia e atrasar o progresso”, diz o escritor, advogado, jornalista e político nicaraguense, caricaturando a posição esdrúxula de Daniel Ortega e seu governo.
A seguir, a íntegra do artigo publicado inicialmente no jornal espanhol El País:
PROIBIDO FICAR EM CASA
SERGIO RAMÍREZ*
Para demonstrar que moramos no país mais saudável do mundo e estamos obrigados a ser felizes por decreto. A Nicarágua é uma bomba de contágio
Quando no início do século XX um dos tantos vulcões da Guatemala entrou em erupção, o ditador Manuel Estrada Cabrera, desde seu confinamento no palácio presidencial, mandou ler pelas ruas um decreto, onde se estabelecia a falsidade da suposta erupção, fruto mentiroso de uma conspiração política para desestabilizar o país, danar a economia e atrasar o progresso. A mentira oficial pretendia, assim, substituir a realidade.
Porém, a chuva de cinza ardente esparzida pelo vulcão, que escurecia o sol, impedia o funcionário público encarregado de divulgar o decreto cumprir com a sua missão, e à falta de claridade precisava auxiliar-se com uma lâmpada de acetileno; além de que, ante a violência dos tremores, ninguém ficava para ouvir seu pregão.
Na Nicarágua não existe nenhuma epidemia causada pela Covid-19, porque as fronteiras do país têm sido blindadas, graças ao imaginário oficial, pela proteção divina. Todo o resto é fruto da conspiração de cérebros deformados e doentes, que só buscam caluniar e difamar. E desestabilizar o país, prejudicar a economia e atrasar o progresso
Os propagandistas oficiais começaram dizendo que a Covid-19 era uma doença de ricos ociosos, que não tinha por que tocar as portas dos pobres, de forma que isso de ficar em casa era uma aberração da propaganda imperialista. A pandemia, no mundo, não é mais que um castigo divino contra a exploração capitalista.
Vivemos algo assim como uma luta de classes sanitária, com a qual o vírus tornou-se uma questão ideológica. Negar que exista na Nicarágua, um dever revolucionário; prevenir contra sua disseminação, uma maquinação da direita.
Nos centros de saúde se chegou a proibir que os médicos e enfermeiras usassem louvas e máscaras para atender os pacientes, porque isso significava criar alarmes desnecessários. E também se advertiu aos funcionários que não dessem nenhuma informação sobre a doença, para não criar um estado de histeria coletiva.
Para demonstrar que moramos no país mais saudável do mundo, e estamos obrigados a ser felizes por decreto, a propaganda oficial se espalhou com grande alarde para induzir as pessoas a amontoar-se nas praias, e se mantêm os portos abertos aos cruzeiros, com o inconveniente de que estes deixaram de chegar por si mesmos; se inventam feiras gastronômicas, se convocam festas patronais. O país é uma bomba de contágio.
E além de que se mantêm abertas as escolas e as universidades, se atraem os incautos para os estádios; se montam noites de boxe, que a rede internacional ESPN transmite, como se fossem funções de circo pobre, raridades “atípicas” do pitoresco terceiro mundo em tempos de pandemia.
Os resultados das poucas provas que se realizam não são fatos de conhecimento dos pacientes, e os hospitais e clínicas do Estado têm ordens de registrar os casos como “doenças respiratórias atípicas”. As estatísticas oficiais não têm, portanto, nenhuma classe de crédito.
Mas, enquanto o mal é declarado inexistente, os hospitais se encontram lotados de pacientes que quando morrem não podem ser velados, e devem ser enterrados sem acompanhamento familiar, sob vigilância da polícia. E o medo à repressão se estende, porque falar do vírus pode se transformar em um ato subversivo. Os parentes dos mortos preferem calar.
O mecanismo de falsificação da verdade torna-se o mesmo que foi utilizado na repressão que deixou centenas de mortos nas ruas há dois anos. Os assassinados por disparos de fuzis AKA e por balaços certeiros de franco-atiradores, equipados com fuzis Dragunov russos, e Catatumbo venezuelanos, nunca existiram. As vítimas, listadas pelos organismos de direitos humanos, teriam morrido em consequência de rixas por drogas, brigas nas ruas, ou acidentes de trânsito. O cinismo em toda a sua majestade, como agora, outra vez.
As autoridades sanitárias reconhecem somente 16 casos, com 5 falecidos, o que, por um paradoxo sinistro, transforma a Nicarágua no país de mais alta mortalidade no mundo por causa da pandemia. Porém, entrou-se já na fase de transmissão comunitária do vírus, e o Observatório Cidadão, um organismo da sociedade civil dedicado a reunir informação, registra já cerca de 800 casos de infecção no país. Infecção clandestina.
Há poucos dias, 645 profissionais da saúde, todos especialistas reconhecidos, assinaram um documento público, com o respaldo de todos os sindicatos médicos. Neste pronunciamento sem precedentes, se exige ao regime a adoção de medidas que são de senso comum, adotadas em outros países.
É tarde, dizem os médicos, mas, “no momento de início da ascensão da curva de casos graves, ainda é possível realizar ações de mitigação que reduzam o catastrófico impacto na taxa de letalidade e no sistema de saúde”.
É um documento corajoso, porque muitos dos assinantes se expõem a ser demitidos dos hospitais por quebrantar a imagem do Estado perpétuo de felicidade em que vivem os nicaraguenses, presos dentro desta incrível e fatal miragem em que os porta-vozes oficiais te dizem que ficar em casa não é mais que um vício burguês.
*Sergio Ramírez nasceu na Nicarágua em 1942. Publicou seu primeiro livro Cuentos, aos vinte anos. Participou na luta contra a ditadura de Somoza e integrou o governo revolucionário, do qual foi vice-presidente em 1985. Em sua obra literária figuram, entre mais de trinta livros, Castigo divino (1988), Prêmio Internacional Dashiel Hammett de Novela; Un baile de máscaras (1995), Prêmio Laure Bataillon à melhor novela estrangeira na França em 1998; Margarita está linda la mar, Prêmio Alfaguara de Novela 1998, e Prêmio Latino-americano José María Arguedas em 2000. Ganhou o Prêmio Cervantes em 2017. Sua página oficial é: http://www.sergioramirez.com