A publicação médica inglesa The Lancet desmentiu cabalmente o presidente dos EUA, Donald Trump, que, ao acusar a Organização Mundial da Saúde (OMS) de “ignorar os primeiros avisos” da Covid-19, atribuiu-os à revista. Não houve tal publicação, esclareceu o editor-chefe da Lancet.
“Caro Presidente Trump, você cita a Lancet em seu ataque à OMS. Por favor, deixe-me corrigir o registro”, escreveu o Dr. Richard Horton, editor-chefe do jornal médico britânico, no Twitter na segunda-feira.
A menção está na carta-ultimato dirigida ao diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em que ameaça cortar permanentemente a verba para a organização – e até retirar os EUA – se a OMS não se comprometer “com grandes melhorias substantivas nos próximos 30 dias”. (Isto é, se não se enquadrar como bode expiatório para a incompetência e obscurantismo de Trump no combate à pandemia nos EUA, ajudando-o a se reeleger).
Na carta, Trump particularmente atacou a OMS por seu suposto contínuo desrespeito a “relatórios confiáveis” sobre a disseminação do novo coronavírus em dezembro de 2019, incluindo os supostamente publicados na Lancet.
A serenidade do desmentido contrasta com a fúria com que Trump vem investindo contra a OMS e a China, em que chegou a dizer que o “ataque do vírus” foi “pior do que o ataque de Pearl Harbor” e o do “11 de Setembro”.
“A Lancet não publicou nenhum relatório no início de dezembro de 2019, sobre um vírus que se espalhou em Wuhan. Os primeiros relatórios que publicamos foram de cientistas chineses em 24 de janeiro de 2020”.
“Esta declaração é factualmente incorreta”, disse a Lancet em um comunicado referindo-se às alegações de Trump, que a revista descreveu como “prejudiciais aos esforços para fortalecer a cooperação internacional para controlar a pandemia”.
No fecho, vem o nocaute, tudo pelo Twitter, que Trump tanto aprecia:
“@richardhorton1
Pr Trump afirma que publicamos relatórios em dezembro de 2019 alegando que um vírus estava se espalhando em Wuhan. Falso. O primeiro artigo descrevendo 41 pacientes com COVID-19 foi publicado em 24 de janeiro. Esse artigo identificou o início dos sintomas do primeiro paciente de Wuhan como 1º de dezembro. Sem encobrimento. Transparência total”.
Enquanto Trump tenta desviar para a OMS e a China a culpa pelo tempo que seu governo desperdiçou, depois que a OMS decretou emergência de saúde mundial em 30 de janeiro, enquanto nos comícios ele dizia que era como “uma gripe comum” que ia passar “com o calor da primavera”, e festejava em fevereiro a desvairada escalada da Bolsa de Wall Street e a derrota do impeachment.
Quando a OMS decretou a “emergência mundial de saúde”, a maioria dos casos – em torno de 7.700 – estava concentrada na China e eram menos de 100 os casos em outros países, sem nenhuma morte.
O sumário sobre as notificações e o fracasso horrendo de Trump: em 31 de dezembro de 2019, a China avisa a OMS sobre uma ‘pneumonia estranha’ em Wuchan. Em 3 de janeiro, os chineses falam diretamente com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA. Em 23 de janeiro, Wuhan é trancada, após confirmação do contágio humano para humano.
No dia 30, a OMS decreta a “emergência mundial de saúde pública”. Nesse dia, ainda não havia uma única morte de Covid-19 nos EUA. Agora há mais de 90 mil mortos. Com menos de 5% da população mundial, os EUA têm quase um terço do total de contágios e 29% dos mortos.
Foi também em fevereiro que o orçamento enviado por Trump ao Congresso estabelecia corte de 16% na verba para a contenção de epidemias e, no geral, reduzia em 10% os recursos para a Saúde. No ano anterior, Trump havia simplesmente dissolvido, no Conselho de Segurança Nacional, a equipe responsável por resposta a epidemias.
Deve ser por isso que, segundo o Washington Post, 49 dos 50 governadores são mais bem avaliados nas pesquisas no quesito enfrentamento da Covid-19 do que Trump.
Como se sabe, não foi apenas a China que controlou a pandemia, apesar de lá ter sido a situação mais difícil ; isso também aconteceu na Coreia do Sul, Nova Zelândia e Vietnã, onde a antecipação das medidas de controle, testagem e distanciamento social teve um papel decisivo.
A exacerbação do contágio e das mortes na Europa primeiro e depois nos EUA foi consequência da resistência de variados governos a adotarem o distanciamento social, popularmente conhecido como quarentena, que visa quebrar a cadeia de transmissão, isolar e tratar os doentes e achatar a curva de contágio para evitar o colapso do sistema de saúde. Não foi por falta de exemplo da China, cujas medidas de contenção foram consideradas internacionalmente “sem precedentes”.