Nem a Anvisa embarcou na irresponsabilidade de assinar um protocolo recomendando cloroquina sem base em pesquisas clínicas
A insistência de Jair Bolsonaro em impor um novo “protocolo” do Ministério da Saúde orientando o uso ampliado da cloroquina no tratamento da Covid-19 derrubou dois ministros da Saúde e, mesmo assim, o desfecho não saiu como o presidente queria.
Se dependesse de Bolsonaro e seu “terraplanismo” médico-cientifico, os comprimidos de cloroquina seriam distribuídos nas estações de ônibus e metrô e, aos primeiros espirros, deveriam ser ingeridos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que a cloroquina e a hidroxicloroquina sejam usadas apenas em estudos clínicos.
Nem o chefe da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres, que Bolsonaro andou arrastando para aglomerações em pleno isolamento social, concordou com a versão pretendida pelo presidente. Para haver um protocolo recomendando o uso de uma droga, ela tem que ter comprovação científica.
Não é este o caso da cloroquina para o tratamento da Covid-19. O ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, chegou a denunciar que Bolsonaro tentou até adulterar a bula da medicação para acrescentar seu uso na Covid-19, mas não conseguiu.
A alternativa encontrada, tanto pelo diretor da Anvisa, como pelo ministro da Saúde interino, o general Eduardo Pazuello, foi a edição, não de um protocolo, mas de um “documento” sem assinatura e fora dos padrões, com efeito bem menor do que um protocolo, que, para ser criado, tem que ser antecedido pela aprovação de um Protocolo Clínico de Diretriz Terapêutica (PCDT), medida que tem rito próprio. Conforme gestores do SUS, ao divulgar apenas uma orientação, o ministério contornou a dificuldade de criar um protocolo.
O infectologista do Hospital Universitário da USP, Gerson Salvador, afirmou ao HP que a atitude de Bolsonaro em relação à cloroquina é uma forma de fugir de sua responsabilidade pelas mortes que estão ocorrendo no país. “O Brasil está com uma das piores respostas do mundo em relação à pandemia de Covid-19, com um número crescente de casos e de óbitos, com uma curva acelerada e descontrolada”, avaliou Salvador.
CLOROQUINA SÓ FUNCIONA EM LABORATÓRIO
“A cloroquina é um medicamento que só funcionou em laboratório. Quando foi testada em população humana até o presente momento não funcionou, inclusive tem potenciais efeitos graves como arritmias cardíacas que podem levar as pessoas à morte. Jair Bolsonaro está usando a cloroquina como uma cortina de fumaça para desviar o foco do debate. A história vai julgar Bolsonaro e eu espero que a sociedade brasileira o faça antes disso. De fato ele tem praticado uma política de extermínio”, apontou o especialista.
No episódio da bula, Mandetta fez questão de afirmar que o chefe da Anvisa havia se recusado a alterar a bula da cloroquina como queria o alucinado. “O presidente se assessorava ou se cercava de outros profissionais médicos. Eu me lembro de quando, no final de um dia de reunião de conselho ministerial, me pediram para entrar numa sala e estavam lá um médico anestesista e uma médica imunologista, que estavam com a redação de um provável ou futuro, ou alguma coisa do gênero, um decreto presidencial… E a ideia que eles tinham era de alterar a bula do medicamento na Anvisa, colocando na bula indicação para Covid-19”, afirmou Mandetta.
“O próprio presidente da Anvisa – que atualmente se infectou com o coronavírus – se assustou com aquele caminho, disse que não poderia concordar. Eu simplesmente disse que aquilo não era uma coisa séria e que eu não iria continuar naquilo dali, que o palco daquela discussão tem que ser no Conselho Federal de Medicina”, contou Mandetta.
ENSAIOS CLÍNICOS NÃO CONFIRMARAM EFICÁCIA
As restrições ao uso indiscriminado da cloroquina foram ainda mais reforçados com a divulgação dos últimos trabalhos científicos. Eles não foram favoráveis ao uso da cloroquina da forma que Bolsonaro queria. Os médicos no mundo todo aguardavam ansiosamente os resultados desses ensaios clínicos amplos para saber se a cloroquina tinha alguma eficácia no combate in vivo do novo coronavírus.
Em editorial, a revista New England Journal of Medicine (NEJM), uma das mais conceituadas revistas médicas do mundo, afirmou que, depois de analisar o uso da cloroquina em mais de 1.300 pacientes, concluiu que, além de não ser eficaz contra o coronavírus, a droga, usada indiscriminadamente, pode provocar graves complicações cardíacas.
Para chegarem nesta conclusão, os médicos contaram com dados de pacientes que foram hospitalizados em decorrência da Covid-19. Ao todo, foram avaliadas 1.376 pessoas. Dessas, 811 receberam hidroxicloroquina e 565 não. Conforme revelaram os autores, dos 811 que usaram hidroxicloroquina, 262 tiveram como desfecho a entubação ou morte. No outro grupo, 84 evoluíram para entubação ou morte.
“Nosso estudo não deve ser tomado como regra de benefício ou prejuízo do tratamento com hidroxicloroquina. No entanto, nossos achados não apoiam o uso de hidroxicloroquina atualmente, fora de ensaios clínicos randomizados que testam sua eficácia”, concluíram os médicos que assinaram o artigo do NEJM. Segundo a análise, os pacientes que tomaram a hidroxicloroquina tiveram mais chances de ter insuficiências respiratórias do que aqueles que não a tomaram.
Segundo a pesquisa, o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina, combinando ou não com a azitromicina, é baseado apenas em relatos de médicos e não foram comprovados, até o momento, cientificamente. O principal estudo que ganhou relevância internacional, mesmo sem validação científica, foi conduzido na França, mas tinha uma amostragem pequena de pacientes e não houve grupo de controle, ou seja, uma parcela dos pacientes avaliados que não recebeu os medicamentos.
EFEITOS COLATERAIS
Sobre os efeitos colaterais, chamou a atenção arritmia muito frequente com o uso desse medicamento que é chamada Torsades de pointes (do francês “torções das pontas”) que pode levar à parada cardíaca. Outros dois estudos publicados na revista científica British Medical Journal também apontaram a ineficácia da hidroxicloroquina no combate à Covid-19. Ambos foram publicados quase simultaneamente: um deles desenvolvido por pesquisadores franceses, e o outro por cientistas chineses.
O estudo francês analisou 181 pacientes. Eles foram divididos entre 84 que receberam a hidroxicloroquina nas primeiras 48 horas de internação e 97 que não receberam e serviram como grupo de controle. Durante o período de internação, os pesquisadores não perceberam nenhuma diferença significativa no número de pacientes que precisaram de transferência para UTI, que morreram após 7 dias, ou que desenvolveram Síndrome Respiratória Aguda Grave em 10 dias.
Enquanto isso, na pesquisa da China, o foco foi outro. Eles visaram entender principalmente o impacto da hidroxicloroquina em pacientes com sintomas leves e moderados da Covid-19. Foram 150 adultos divididos aleatoriamente em dois grupos: os que receberam a hidroxicloroquina e tratamento padrão e os que receberam só o tratamento padrão. O estudo é classificado como “open label”, o que significa que os pacientes sabem a qual grupo pertencem, possibilitando a criação de vieses no processo. Por isso, ele também não se enquadra no “padrão-ouro”.
Os pacientes do grupo da hidroxicloroquina receberam uma dosagem admitidamente alta do medicamento: 1.200 miligramas diários pelos três primeiros dias, seguidos de 800 mg ao dia pelo restante do tratamento.
Ao fim do dia 28 de testes, os pesquisadores não perceberam diferenças significativas entre os dois grupos. Entre os 150 pacientes, a maioria estavam curados do vírus muito antes do prazo. Foram 109 conversões negativas, sendo 56 do grupo padrão e 53 do grupo com hidroxicloroquina, e os 41 restantes não conseguiram a conversão antes do prazo e foram censurados.
Os pesquisadores também observaram um aumento no número de eventos adversos no grupo que usou a hidroxicloroquina. Enquanto no grupo de controle houve eventos adversos em 9% dos casos, essa proporção subiu para 30% entre os que receberam o medicamento, com dois pacientes enfrentando efeitos mais graves. Os pesquisadores dizem que eventos similares também foram observados em outros estudos que envolveram altas dosagens da droga.
Outro estudo, feito em Nova Iorque, também com mais de 1.300 pacientes, chegou a conclusões parecidas com o ensaio publicado na revista New England. O anti-inflamatório usado no combate à malária e nas doenças autoimunes, tipo Lupus Eritematoso Sistêmico e Artrite Reumatoide tem algum efeito antiviral em laboratório, mas não possui eficácia contra o coronavírus.
TRABALHO COM 96 MIL PACIENTES NÃO RECOMENDA O USO
O trabalho mais contundente foi publicado pela revista médica “The Lancet” na sexta-feira (22/05). Uma pesquisa multicêntrica, envolvendo 671 hospitais de seis continentes e 96 mil pacientes, apontando que a hidroxicloroquina e a cloroquina não apresentam benefícios contra a Covid-19. Os resultados mostram que também não há melhora na recuperação dos infectados e que existe um risco maior de morte e piora cardíaca durante a hospitalização pela infecção.
Este é o maior estudo feito com pacientes infectados e internados com a Covid-19 e o prescrição de cloroquina e hidroxicloroquina. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia afirmado na quarta-feira (20) que as substâncias podem causar efeitos colaterais e não têm eficiência contra doença. Marcos Espinal, diretor do departamento de doenças comunicáveis da Opas, também disse que “não há evidências para recomendar cloroquina e hidroxicloroquina”.
Segundo o resultado da pesquisa publicada na Lancet, os pacientes medicados com as substâncias, incluindo em combinações com outros medicamentos aprovados, apresentaram um risco maior de morte hospitalar e de desenvolvimento de arritmia cardíaca.
Esta parte da pesquisa, que aponta a gravidade dos efeitos colaterais, deixa mais evidente a quais riscos a população brasileira está sendo exposta pelas autoridades brasileiras ao promoverem as modificações no protocolo sobre o uso desta droga. Jair Bolsonaro impôs ao Ministério da Saúde uma orientação para que a cloroquina seja usada de forma ampla pela população afetada pela Covid-19.
“Este é mais um estudo em larga escala a encontrar evidências robustas estatisticamente de que o tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina não traz benefícios a pacientes com Covid-19”, disse o autor Mandeep Mehra, líder da pesquisa e diretor do Brigham and Women’s Hospital Center for Advanced Heart Desease, em Boston, nos Estados Unidos.
O professor Eduardo Costa (acima), pesquisador da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), afirmou à nossa reportagem que não concorda com o uso indiscriminado da cloroquina, como quer Bolsonaro, porque “não houve comprovação científica de sua eficácia no tratamento da Covid-19”. Para o especialista, “esta é uma atitude simplista que não se sustenta nos trabalhos que foram recentemente divulgados sobre a eficácia da cloroquina. Segundo Costa, “esta droga apresentou algum resultado em laboratório, mas, na população, não confirmou esses resultados, e ainda trouxe efeitos colaterais graves que colocam em risco a voda das pessoas”.
A pesquisadora da USP, Natália Pasternak, também criticou o uso indiscriminado da cloroquina na Covid-19. “A leitura das mais importantes revistas científicas indica que não há, no momento, qualquer evidência confiável de eficácia da hidroxicloroquina ou cloroquina no combate à Covid-19”, disse ela.
“Em nossas atividades de divulgação científica, temos insistido que o que a torna útil para a sociedade é o processo, o método pelo qual buscamos as respostas aos desafios da natureza. É preocupante que indivíduos com credenciais científicas venham defender em público que os métodos da ciência (como ensaios clínicos controlados) sejam abandonados e que protocolos de uso amplo de hidroxicloroquina sejam universalizados desde os estágios iniciais dos sintomas. Ao fazerem isso, estão renegando as próprias credenciais”, enfatizou.
SÉRGIO CRUZ
Aconselhando a população usar a cloroquina, Bolsonaro lhe convida chegar mais rápido a selputura é tanto que o paciente tem que assinar a sua sentença. Isto se chama desgoverno.