Há já algum tempo, veio-nos a ideia de organizar uma antologia da luta do povo brasileiro sob a ditadura – em seus vários campos de batalha, inclusive a trincheira parlamentar.
Porém, não é fácil abrir uma clareira no tempo presente, para realizar certos projetos. A situação atual do Brasil é tão aflitiva, que sobra pouco tempo – e pouco espaço na mente – para realizar a maioria dos projetos que as pessoas, inclusive nós, concebem.
Assim, nos resta a solução de levar a cabo essa realização “em pílulas”, aos poucos, com intervalos.
O que fez com que voltássemos a esse projeto foram as lembranças de Alencar Furtado, que comentamos em breve nota aqui no HP (v. nossa edição de 21 de dezembro passado, “Alencar Furtado, o homem e a história em suas reminiscências”).
Lá, o líder do então único partido legal de oposição, o MDB (que, naturalmente, nada tem a ver com esse esgoto onde se despejaram os Temer, Jucás, Geddeis e Cunhas), conta que o primeiro embate do “grupo autêntico” com a ditadura foi na questão das multinacionais. Especificamente, a CPI das Multinacionais, em 1976, presidida por Alencar Furtado, tornou-se um entrevero acirrado – e arriscado, pois, na época, perder o mandato, às vezes a cabeça, não era uma questão abstrata.
O discurso abaixo, do próprio Alencar, é um exemplo dessa luta. Foi proferido a 3 de dezembro de 1974, no plenário da Câmara dos Deputados.
Menos de um mês antes desse discurso, pela primeira vez, o MDB vencera as eleições em 16 Estados, inclusive os maiores, eleitoralmente, e mais importantes, economicamente – mas também nos principais Estados do Nordeste.
Foram eleitos, pela oposição, os senadores Itamar Franco (Minas Gerais), Orestes Quércia (São Paulo), Marcos Freire (Pernambuco), Paulo Brossard (Rio Grande do Sul), Danton Jobim (Guanabara), Roberto Saturnino (Rio de Janeiro), Mauro Benevides (Ceará), Lázaro Barbosa (Goiás), Dirceu Cardoso (Espírito Santo), Adalberto Sena (Acre), Gilvan Rocha (Sergipe), Evandro Carreira (Amazonas), Evelásio Vieira (Santa Catarina) Agenor Maria (Rio Grande do Norte), Ruy Carneiro (Paraíba) e Leite Chaves (Paraná).
A eleição para senador, na época, indicava a vitória ou derrota dos partidos, porque não havia outra eleição majoritária, ou seja, a eleição popular para governador permanecia proibida. Nem mesmo o Estado tradicionalmente oposicionista, a Guanabara, pudera eleger, dessa vez, ainda que de forma indireta, um governador do MDB, porque estava, na prática, sob intervenção, para ser extinto, no ano seguinte, pela fusão com o antigo Estado do Rio de Janeiro.
O governo Geisel, afetado pela crise do “milagre”, lançara, no mesmo ano, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), propondo uma alteração radical na política econômica da ditadura. Porém, do ponto de vista político, caminhava para o “Pacote de Abril”, editado em 13 de abril de 1977, uma série de medidas (a mais famosa foi estabelecer que um terço dos senadores seriam nomeados pelo presidente da República, os célebres “senadores biônicos”) para impedir que a oposição chegasse ao poder – ou seja, para impedir que a ditadura acabasse, o que somente aconteceu 10 anos depois.
Essas são as referências necessárias para se entender o discurso de Alencar Furtado em dezembro de 1974.
Há uma última, que é mais uma observação que uma referência: a menção a estudantes “quatro-sete-seteados” é devida ao decreto 477, publicado pela ditadura em fevereiro de 1969, pelo qual um aluno podia, sumariamente, ser expulso da sua escola – seja lá qual fosse – por razões políticas e proibido de se rematricular em qualquer outro estabelecimento de ensino.
Lembro-me que perdi algumas noites, na década de 70, temendo que o “477” desabasse sobre a minha cabeça.
Mas essas são outras reminiscências. Vamos, agora, ao discurso de Alencar Furtado, no dia 3 de dezembro de 1974, portanto, há mais de 40 anos. Não é apenas uma peça histórica, mas alguma coisa perfeitamente atual.
C.L.
ALENCAR FURTADO
O SR. ALENCAR FURTADO (como líder, pronuncia o seguinte discurso): Sr. Presidente, Srs. Deputados, as comportas do civismo nacional se abriram nesse 15 de novembro que passou. Na manifestação das urnas há um complexo de reações populares merecedoras de profundas reflexões.
O Brasil precisa de todos nós. O instante nacional requer, sobretudo, patriotismo. O patriota civil e o patriota fardado são homens comuns, e o patriotismo de um não difere do patriotismo de outro.
Urge uma ação comum para alcançarmos os objetivos nacionais, simbolizados pela autodeterminação, justiça social, liberdade, democracia e desenvolvimento.
A nacionalidade não se constrói na grandeza dos sonhos dos seus filhos, com o país crescendo para o desenvolvimento estrangeiro. Um enriquecimento setorial não é brasílico, quando vemos, de um lado, milhões desempregados, esfaimados e doentes, constituindo-se em legiões imensas de desesperados, e, de outro, o enriquecimento do Estado, de braços com o progresso econômico de minorias agraciadas.
Agrava-se ainda o quadro bosquejado quando se vê a liberdade arrebatada, como fórmula profícua e eficaz de ação permanente para manutenção de bastardos privilégios.
Ontem, em nome da liberdade se negava o pão; hoje, em nome do pão se nega a liberdade. Mas a História ensina que os que prometem pão para só depois conceder a liberdade, têm negado ao povo liberdade e pão.
Não se prestigia a Nação, conduzindo-a por teses condenadas. Assim é que o estímulo irracional ao capital estrangeiro torna-se nocivo, e de tal forma tem sido abrangente que, se não for barrado, afetará até mesmo, a Segurança Nacional.
A cumplicidade dos interesses dominantes com o capitalismo alimenta um controle político cada vez mais autoritário para que o desenvolvimento seja excludente, grupal e antirracional, no que diz respeito à forma de organização econômica.
Esquecem, no seu fisiologismo absorvente e exclusivista, a figura do homem e o peso das estruturas sociais, que jamais suportarão os encargos totais do desenvolvimento, nem se submeterão à tutela permanente dos seus insaciáveis manipuladores.
A nossa ação política investe contra a divisão internacional do trabalho, condena as ditaduras envilecedoras, bem como as suas distorções que imoralizam. Combate o paternalismo do livre-cambismo, o subdesenvolvimento econômico, o imperialismo apátrida e prepotente e a rapinagem dos trustes que se erigem em superpotências dentro dos países, dominando-os política, econômica e militarmente.
O crescimento do PNB [Produto Nacional Bruto] não retrata o desenvolvimento do povo quando este se apresenta paupérrimo em várias regiões e com verticais desníveis de renda; quando a política oferece uma falsa imagem de estabilidade, vez que permanentemente intimidada por atos excepcionais que teriam de ser provisórios por serem eventuais; quando a justiça social não tem império, para que a convivência entre o capital e o trabalho seja exaltada, não apenas no aumento da produtividade, mas no banimento da espoliação do homem que emprega as suas energias criando a riqueza nacional.
O Brasil é fadado a ter uma liderança plasmada em bases mais justas, pela sua posição geográfica, pelas suas potencialidade ou pelo seu crescimento, mas, principalmente, se o Homem, “medida de todas as coisas” , for o objeto principal do Governo, inspirado numa filosofia nacionalista de constante alcance social, sem repúdio à Democracia e aos princípios éticos da vida.
Nacionalismo é razão, símbolo, mística e filosofia que oferece a coesão política mais sã. É a mística da lealdade nacional e a filosofia de um Governo que, se tem a Nação simbolizada na maior projeção da vida, tem no homem a razão de ser da Pátria.
Ser nacionalista é sobrepor os interesses do Brasil acima de quaisquer outros, mesmo os de caráter sentimentais, ideológicos ou materiais. Traduz-se num ideário de sólido lastro para a consecução dos objetivos nacionais permanentes.
RESULTADOS
Os resultados do pleito de novembro pedem análise e meditação. Constituiu-se no episódio cívico mais edificante em termos de manifestação popular e numa grande lição ao Governo, para que, ao invés de reprimir as aspirações populares, as convoque sempre para as tarefas de construção nacional.
O povo, represados nos anseios mais legítimos, sempre apoia os que com ele se identificam.
O MDB foi porta-voz do trabalhador que, desenvolvendo o Brasil, vive desintegrado do desenvolvimento; do estudante que, oferecendo idealismo e cultura, vive quatro-sete-seteado; do mutuário agiotado pelo BNH, abandonando a casa dos seus sonhos ou sendo dela despejado; da pequena e média empresas, absorvidas ou esmagadas na jungle da competitividade; do assalariado que carrega nas costas este País e, num clamor surdo de injustiçado, vive enriquecendo quem já é rico, embora permaneça doente e subnutrido e dessindicalizado, não podendo nem reivindicar; do comércio e da indústria, recordistas em concordatas e falências; dos que percebem salários, vencimentos e soldos erodidos pela inflação que importamos, que exportamos e que fabricamos; do lavrador flagelado pelas pragas e fatores climáticos, e pela ação ministerial comprometedora que avilta o preço da sua produção e favorece grupos econômicos que ganharam bilhões à sua custa; dos que desfizeram orçamentos familiares investindo na Bolsa de Valores sob estímulos do Governo. E ainda: a correção monetária galopando com a desvalorização da moeda que, este ano, em onze meses, foi dez vezes desvalorizada. A corrupção, campeando fagueira, numa sem-cerimônia sem tamanho e implantada em organismos oficiais, em compras no exterior, em pontes famosas, em trechos pavimentados ou em operações diversas malbaratadoras do dinheiro público. O descompasso no desenvolvimento entre o Norte e o Sul do País, acentuando progressivamente os desníveis regionais. A censura desenformando o povo, para que a inverdade não seja conhecida; a repressão desvairada empolgando setores de responsabilidade pública, afrontando a intangibilidade dos direitos da pessoa humana, erguendo desnecessárias barreiras de ódio, numa Pátria que só tem irmãos. A necessidade transformando virgens em prostitutas e a miséria virando criminalidade. A liberdade, vigiada demais, e o arbítrio, plenipotenciário. Homens públicos gangrenando de servidão e desamor às instituições, e os magnatas do poder, impondo e dispondo, contrapondo-se e sobrepondo-se às lideranças legítimas e à vontade do povo, num repasto autocrático e egoístico abominável.
E aos açoites dessa tormenta social, econômica e política, o povo compareceu às urnas, lavrando a sentença condenatória inapelável que o voto transformou no grande veredictum.