O economista Nilson Araújo de Souza, em entrevista ao HP, afirma que “o governo claudica e resiste a adotar medidas que, ao reforçar o investimento público, preparem a economia para seguir funcionando durante a crise e para retomar o crescimento no pós-pandemia”.
Segundo Nilson, Bolsonaro teve a chance de fazer isso “quando o general Braga Netto apresentou o esboço de Plano Pró-Brasil, mas optou por dar ouvidos ao discurso escrachado desse cidadão que ocupa o Ministério da Economia para servir aos interesses estrangeiros e que, inclusive, com sua charlatanice e ironias durante a fatídica reunião de 22 de abril, desrespeitou os militares no governo”.
“Dizer, como faz Guedes, que não tem dinheiro, que dinheiro não cai do céu, não passa de uma mentira deslavada. Só no caixa único do Tesouro existe R$ 1,350 trilhão, que pode ser destravado com decisão já tomada no STF e a aprovação pelo Congresso da lei de calamidade pública”, afirma o professor.
HORA DO POVO: Guedes disse, ao responder ao ministro Rogério Marinho, na reunião ministerial do dia 22 de abril, que o país quebrou e que só o capital privado estrangeiro pode tirar o Brasil da crise. Qual sua opinião sobre isso?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA: Apesar das políticas econômicas irresponsáveis e submissas aos interesses externos que vêm sendo praticadas no país, agravadas pela pandemia que assola o mundo, e que levaram à maior, mais ampla, mais profunda e mais prolongada crise da nossa história, o Brasil não está quebrado. Temos recursos naturais, capacidade produtiva, capacidade de trabalho, capacidade tecnológica e recursos financeiros mais do que suficientes para sairmos dessa enrascada e retomar o caminho do desenvolvimento que trilhamos de 1930 a 1980, quando fomos a economia que mais cresceu no mundo capitalista. Poucos países no mundo contam com essas condições.
E não vai ser o capital estrangeiro que nos ajudará a retomar essa trajetória. Primeiro porque, em lugar de atender aos desejos do filo-pinochetista Paulo Guedes e realizar a invasão do país, ele está se retraindo. O chamado investimento em carteira, que, na verdade, é o apelido do capital puramente especulativo e que se aplica no mercado financeiro (sobretudo bolsas de valores e títulos do governo), está indo embora em grande quantidade. Saíram das bolsas US$ 44,5 bilhões no ano passado e, neste ano, já se evadiram US$ 65,5 bilhões até 26 de abril. E quanto ao investimento direto estrangeiro, que, na verdade, não é investimento efetivo, aumento de capacidade produtiva, mas apenas aquisição de empresas brasileiras? Diminuiu violentamente seu ingresso no país. A previsão, baseada no andar da carruagem até agora, é que haja um tombo de 40% neste ano em relação ao ano passado.
HP: E por que o capital estrangeiro está se retraindo?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA: Destaquei, em entrevistas anteriores ao HP, que essa retração do capital estrangeiro se deve à crise que atravessa o país, já que não costuma arriscar seu rico dinheirinho em economias que estão paralisadas. Deve-se também ao comportamento das transações correntes do balanço de pagamento, que, no ano passado, foram negativas em US 50,7 bilhões. Isso diminui as chances de retorno do capital e de seus rendimentos (juros, lucros) à sua origem. Por fim, mas não menos importante, à insegurança diante do governo tresloucado do fascista Bolsonaro. Não é que os donos do capital estrangeiro não concordem com a combinação entre uma política econômica ultraneoliberal (que pretende vender até a Casa da Moeda) e uma política autoritária que ameaça a cada momento golpear as instituições democráticas e implantar uma ditadura no país. É que não acreditam que, aventureiros e irresponsáveis como são, sejam capazes de entregar o ouro prometido ao bandido.
HP – Mas, supondo que viesse, conforme prometido por Guedes, o capital estrangeiro poderia nos tirar da crise?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA: Não há lugar do mundo cujo desenvolvimento tenha dependido do capital estrangeiro. Como dizia Barbosa Lima Sobrinho, o capital se faz em casa. O capital estrangeiro, ao contrário, mais carrega, sob as formas de lucros, juros e royalties, intercâmbio desigual, do que traz sob as mais distintas modalidades. Foi exatamente a invasão do capital estrangeiro durante a ditadura de 1964 que atropelou o processo de desenvolvimento que vinha desde 1930 e provocou uma estagnação econômica que teve início em 1981, com a chamada crise da dívida, e persiste até hoje. Além disso, se pudesse e quisesse nos tirar da crise, já nos teria tirado porque a economia brasileira já está entupida de capital estrangeiro; está saindo pelo ladrão. E, quando vem, não é para investimento produtivo, que aumenta a capacidade produtiva e gera crescimento da economia. Vem para especular no mercado financeiro e para comprar, na bacia das almas, empresas brasileiras, sejam estatais ou privadas. E o lucro, que antes ficava para ser investido aqui, é drenado para o exterior. As famosas transferências internacionais, como dizia o Brizola velho de guerra.
HP: Vários economistas, inclusive neoliberais, como manifestou Marinho, por exemplo, defendem aumento dos investimentos públicos para enfrentar a crise. Como avalia essa discussão?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA: Isso está ocorrendo no mundo inteiro. Todos os países que se industrializaram e se desenvolveram usaram o Estado como alavanca do desenvolvimento. Desde a origem dos Estados nacionais na transição do feudalismo para o capitalismo, na fase mercantilista, o Estado agiu protegendo a indústria nascente da concorrência predatória de grupos estrangeiros, promovendo o investimento público e garantindo financiamento público e compras governamentais para as empresas nacionais.
Esse movimento foi fortalecido depois da grande crise estrutural de 1914 a 1945, com duas guerras mundiais, mediadas pela Grande Depressão. O mundo inteiro experimentou um prolongado e intenso processo de desenvolvimento no pós-guerra devido, sobretudo, à ação do Estado na economia. Isso ocorreu nos países socialistas, particularmente na União Soviética, nos países capitalistas desenvolvidos por meio do welfare state, em vários países subdesenvolvidos que se industrializaram (sobretudo na América Latina) e nos países que nasceram com a descolonização na África e na Ásia e implantaram uma sorte de capitalismo de Estado.
Mas, como resposta à nova crise estrutural, nascida nos EUA no começo dos anos 1970, renasceu o neoliberalismo por meio do famigerado Consenso de Washington que pregava exatamente o contrário – a saída do Estado da economia – com a cantilena de que a concorrência do mercado modernizaria a economia e a tiraria da crise. Na verdade, a saída do Estado da economia não possibilita concorrência alguma, neste mundo em que predominam os monopólios privados. Além disso, o resultado foi reforçar mais ainda os mecanismos que deflagraram a crise e mantiveram a economia mundial capitalista estagnada, intermediada por várias recessões, até os dias de hoje.
Mas, neste momento de pandemia, com o agravamento espetacular da crise mundial (só nos EUA, 36 milhões de trabalhadores perderam o emprego nas primeiras oito semanas), o Estado, que, na maioria dos países, já havia entrando em cena na crise retomada em 2007 para salvar os monopólios deles mesmos, agora, além disso, dada a gravidade da crise, está apoiando fortemente a economia real e colocando dinheiro nas mãos da população.
HP: E aqui no Brasil como está essa questão do investimento público?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA: Aqui, no Brasil, o governo claudica e resiste a adotar medidas que, ao reforçar o investimento público, preparem a economia para seguir funcionando durante a crise e para retomar o crescimento no pós-pandemia. Ele teve a chance de fazer isso quando o general Braga Neto apresentou o esboço de Plano Pró-Brasil, mas optou por dar ouvidos ao discurso escrachado desse cidadão que ocupa o ministério da Economia para servir aos interesses estrangeiros e que, inclusive, com sua charlatanice e ironias durante a fatídica reunião de 22 de abril, desrespeitou os militares no governo.
Dizer, como faz Guedes, que não tem dinheiro, que dinheiro não cai do céu, não passa de uma mentira deslavada. Só no caixa único do Tesouro existe R$ 1,350 trilhão, que pode ser destravado com decisão já tomada no STF e a aprovação pelo Congresso da lei de calamidade pública. Além disso, já vimos demonstrando há bastante tempo que, em momentos de crise, quando a economia opera com capacidade ociosa, o governo pode financiar seus investimentos e demais gastos com emissão monetária. O mundo inteiro já fez isso no passado e está fazendo novamente agora. Até os EUA de Trump.
Alegam os neoliberais que isso aumenta a demanda e joga os preços para cima, alimentando a inflação, mas, na verdade, estimula o aumento da produção usando capacidade ociosa. Sem falar que estamos tendo deflação. Aqui, no Brasil, quem emite moeda é o Banco Central, mas quem realiza o gasto público é o Tesouro. Mas isso é facilmente solucionável: o Banco Central pode emitir moeda e comprar títulos do Tesouro, a juro nominal zero. É como se fosse uma dívida do marido com a mulher: fica tudo em casa. Teria que editar uma PEC para isso.
E, para completar, ainda poderia ser feita uma reforma tributária progressiva que taxe mais fortemente os mais ricos e que taxe as grandes fortunas, a distribuição de dividendos e as remessas para o exterior de juros e lucros.