O chefe de polícia de Houston (Texas), Art Acevedo, reagiu às diatribes do presidente Donald Trump contra os manifestantes que estão nas ruas repudiando o brutal assassinato de um cidadão negro sob custódia, recomendando ao inquilino da Casa Branca que “mantenha a boca fechada”, se não puder achar alguma coisa para dizer que ajude a serenar os ânimos.
O desabafo de Acevedo se deve à ameaça de Trump de jogar militares contra manifestantes após ter se proclamado o “presidente da lei e da ordem” e de exigir dos governadores mão dura contra a indignação frente ao racismo, o que, segundo o presidente, é coisa de “antifascistas terroristas”.
“Dominem”, “condenem por dez anos” os manifestantes, ele exigiu em videoconferência com os governadores, a quem o presidente chamou de “frouxos”. “Você não tem de ser cuidadoso demais, é um movimento, se não reprimir, vai ficar cada vez pior”, pressionou Trump.
“Deixe-me apenas dizer isto para o presidente dos Estados Unidos em nome dos chefes de polícia deste país: por favor, se você não tem algo construtivo a dizer, mantenha sua boca fechada”, disse Acevedo em entrevista a Christine Amanpour, da CNN.
Ele advertiu que esse tipo de concepção iria colocar homens e mulheres na faixa dos 20 anos “em risco”. “Isso não é sobre dominar, é sobre ganhar corações e mentes”, acrescentou, dizendo que não se deve confundir “gentileza” com “fraqueza”. O que se precisa é de que as comunidades se ergam, assinalou.
“NÃO É HOLLYWOOD”
“Nós não queremos que a ignorância arruíne o que conseguimos aqui em Houston e falando para os meus colegas no país inteiro cujos oficiais estão sendo feridos, membros da comunidade estão sendo feridos”, enfatizou.
“É tempo de ser presidencial e não como [Trump] era no Aprendiz; isto não é Hollywood.
Isto é a vida real, e vidas reais estão em risco”.
Acevedo foi um dos líderes policiais que nos últimos dias demonstrou capacidade de ter empatia pela dor sentida pelas pessoas negras e pela gente de bem em geral, diante do iníquo e absolutamente estúpido assassinato de Floyd que, como apontou o reverendo Jesse Jackson, foi um “linchamento diante de todos”. Houston é a cidade onde Floyd se criou e a família dele é de lá.
No momento em que é indispensável construir pontes, Trump só que saber de falar para sua base de fanáticos e amedrontar os incautos, pensando na reeleição. Como registrou o Peoplesworld, Trump até mesmo tirou da tumba o velho grito de guerra segregacionista de “quando os saques começam, os tiros [no povo] começam”.
Ao mesmo tempo em que houve confrontos e repressão no país inteiro, também houve a esperança dos policiais ajoelhando, a pedido dos manifestantes, e se identificando, não com o assassino Derek Chauvin, mas com o jogador de futebol americano, Colin Kaepernick, cujo gesto de ajoelhar virou símbolo da rejeição ao racismo.
TRUMP MAL NA PESQUISA
Pesquisa Reuters/Ipsos, realizada na segunda e terça-feira constatou que 64% dos adultos americanos eram “simpáticos às pessoas que estão protestando agora”, enquanto 27% disseram que não. 9% não sabiam.
Mais de 55% dos americanos disseram desaprovar a manipulação dos protestos por Trump, incluindo 40% que desaprovaram “fortemente”. Apenas um terço disse que aprovava – menos do que sua aprovação geral de 39%, de acordo com a pesquisa.
Há divisão sobre a resposta da polícia. De acordo com a pesquisa, 43% acreditavam que a polícia estava fazendo um bom trabalho e 47% discordavam, com a maioria dos democratas discordando e a maioria dos republicanos concordando.
A pesquisa Reuters/Ipsos entrevistou 1.004 adultos americanos no país inteiro, com um intervalo de credibilidade – de mais ou menos 4 pontos percentuais.
Sete em cada dez moradores das áreas urbanas se disseram simpáticos aos manifestantes, enquanto pouco mais da metade dos moradores rurais concordaram.
FOTO COM BÍBLIA E GÁS LACRIMOGÊNEO
Outro motivo de enorme repúdio às perigosas encenações de Trump veio de líderes religiosos da capital, depois da foto de Trump com a bíblia diante de uma igreja próxima à Casa Branca, para o que mandou a tropa de choque varrer na bala de borracha e gás lacrimogêneo a manifestação pacífica reunida nas imediações.
O presidente da comunidade episcopal, o bispo Michael Curry, repudiou o ato de Trump, apontando que “em um tempo de profunda dor em nosso país, e sua ação não fez nada para nos ajudar ou para nos curar”. “Pelo bem de todos nós, precisamos de líderes para nos ajudar a ser ‘uma nação, sob Deus, com liberdade e justiça para todos'”, destacou.
Também a bispa Mariann Edgar Budde, a cuja diocese está subordinada a igreja que serviu de palco para Trump, disse que o presidente só fez “inflamar a violência”, num momento de enorme revolta contra a truculência policial e o racismo. “Precisamos de liderança moral, e ele faz de tudo para nos dividir”.
O reverendo William Barber, que é também integrante do conselho nacional da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NCAAP, principal entidade anti-racismo do país), chamou de “obsceno” o uso que Trump fez da Bíblia, dizendo que este deveria “tentar ler o que está escrito nela”.
Na terça-feira, prosseguiu a encenação de que, além de presidente da lei e da ordem, Trump também está “assim” com os altares, por meio de uma incursão ao santuário da fé católica João Paulo II, acompanhado de Melania. Aí o desconforto foi do arcebispo de Washington, Dom Wilton Gregory, que taxou tal ida de “desconcertante e repreensível”.
SEM ÓDIO
O virtual candidato à presidência pelos democratas, o ex-governador Joe Biden, tem buscado se diferenciar de Trump, dizendo que “não irá abanar as chamas do ódio” e chamando à pacificação.
Também o prefeito de Nova Iorque, Bill de Blasio rechaçou a pressão de Trump. “Não precisamos que a Guarda Nacional venha à cidade”, afirmou, acrescentando que os 36 mil policiais são suficientes para lidar com as manifestações.
“Quando forças armadas de fora vêm às nossas comunidades, especialmente nessas situações tensas para as quais não foram treinados, é um cenário perigoso”, enfatizou.
Trump havia corrido ao Twitter, para exigir que De Blasio chamasse a Guarda Nacional” sob a alegação de que os “perdedores” estão “destruindo você e “agisse rápido”.
Na videoconferência de segunda-feira, Trump ameaçou enviar militares federais contra os protestos, asseverando que “resolveria” o problema “rapidamente”, apelando para a lei de 1807, já usada em umas poucas oportunidades, como na época dos direitos civis, para barrar a sabotagem dos segregacionistas nos estados sulinos.
Especialistas assinalaram que essa lei só pode ser acionada pelo poder executivo se solicitado pelos governadores. Cuomo já disse que não irá pedir, a menos que De Blasio mude de ideia.
No Senado, o líder da maioria bloqueou resolução condenando manejo de Trump dos protestos pacíficos. O ex-presidente W. Bush, republicano, saiu do silêncio, para fazer um chamado à “compaixão e unidade” e reconhecendo a necessidade de justiça, em “forte contraste” – como registrou o Washington Post – com a retórica de Trump.
Em um trecho, o ex-presidente chegou mesmo a assinalar que há “um caminho melhor – o caminho da empatia, e do compromisso compartilhado, e da ação audaz, e de uma paz enraizada na justiça”.
OITAVO DIA
As ameaças de Trump não impediram que pelo oitavo dia os protestos se repetissem de costa a costa sob os brados de “Digam o nome dele: George Floyd”, “Não Consigo Respirar” e “Sem Justiça, Sem Paz”, juntando negros, brancos, latinos, jovens e idosos, donas de casa e trabalhadores.
Em Nova Iorque, o toque de recolher foi estendido até domingo e são 26 os estados que convocaram a Guarda Nacional – mais de 20 mil soldados.
O toque de recolher também está em vigor na capital do país, Washington, e na maior cidade da costa oeste, Los Angeles. 40 cidades chegaram a estar sob toque de recolher, número que diminuiu ao longo da semana.
No mundo inteiro, mais atos de solidariedade, os mais concorridos na Austrália, na Grã Bretanha e na França. Em Paris, o ato com mais de 15 mil pessoas também relembrou a morte de cidadãos negros no país europeu.