CARLOS LOPES
Para Fernando Siqueira, Ildo Sauer e Eduardo Costa
Ao ler a grande reportagem de Malu Gaspar sobre a carreira de Eike Batista, o que mais espanta a quem examina essa coleção de disparates, fraudes, e, mesmo, crimes, é como Lula, Dilma – e o PT, evidentemente – puderam conceber que aquele escroque fosse “o ícone do capitalismo brasileiro” (cf. Malu Gaspar, “Tudo ou Nada: Eike Batista e a verdadeira história do grupo X”, Record, Rio, 2014, p. 419, e, também, p. 395).
O empresariado brasileiro foi capaz de construir uma das maiores economias industriais do mundo, com seu contingente maior nas médias empresas produtoras de bens intermediários (produtos para o consumo de outras indústrias).
Foi capaz, além disso, de criar um avançado setor de bens de produção, durante a década de 70 do século passado, completando – ou ficando perto de completar – o programa da Revolução de 1930 (ao apresentar seu programa, o então candidato Getúlio Vargas formulou do seguinte modo o problema da industrialização: “O surto industrial só será lógico, entre nós, quando estivermos habilitados a fabricar, senão todas, a maior parte das máquinas que lhe são indispensáveis”, Discurso na Esplanada do Castelo, Rio, 2 de janeiro de 1930).
Dez anos depois da Revolução, “o valor da produção industrial [que triplicara em relação a 1930] mostrou-se superior ao da produção agrícola. Isto quer dizer que o país atingiu sua fase de crescimento equilibrado, forrando-se, pouco a pouco, à dependência econômica, que é característica dos produtos exclusivos de matérias-primas e gêneros de alimentação. Já atingimos o grau de adiantamento suficiente nas indústrias de transformação, e, por felicidade, vimos o nosso esforço coroado de êxito no preparo das bases de uma etapa superior do seu desenvolvimento” (cf. Getúlio Vargas, Discurso no Aeroporto Santos Dumont, 11 de novembro de 1940).
Ou seja, completáramos, essencialmente, a industrialização “leve”, isto é, a produção industrial nacional de bens de consumo – e passamos a perseguir, em meio a uma luta titânica (e seus percalços) a industrialização “pesada”, isto é, a implantação da produção nacional de bens de produção (máquinas e equipamentos, também chamados “bens de investimento”) e componentes (bens intermediários).
Para isso foi necessário o desenvolvimento da siderurgia, da indústria do petróleo e química. No mesmo discurso de 1940:
“… não pode haver dúvida sobre o êxito das nossas indústrias básicas, que permitirão ao país agrário, preso aos azares do mercado mundial, bastar-se a si mesmo. Isto quer dizer, noutros termos: capacidade para fabricar máquinas em geral, de modo que a própria agricultura, de extensiva e rotineira, possa passar a intensiva; possibilidade de forjarmos os instrumentos da nossa defesa, motores para os nossos aviões, navios para a frota, trilhos, locomotivas e automóveis para as estradas”.
Foi assim que, das pequenas indústrias de bens de consumo do início do século XX, que eram características “do agrarismo da República Velha”, passamos à indústria nacional moderna.
Naturalmente, o empresariado nacional não fez isso sozinho; fez isso junto com o operariado brasileiro (ainda, nas palavras no mesmo presidente: “O homem brasileiro, dotado de inteligência viva e pronta, é capaz de aprender todos os ofícios, de praticar as técnicas mais difíceis e complexas, de adaptar-se facilmente ao manejo de novas máquinas e à aprendizagem rápida de quaisquer processos industriais. É um excelente operário, um bom contramestre, um engenheiro eficiente”) e sob a direção do Estado nacional brasileiro, isto é, como parte da Nação e do esforço nacional para o desenvolvimento – ou, o que seria outra forma de falar a mesma coisa: usando os recursos nacionais, mobilizados pelo Estado nacional.
Nem podia ser de outra forma – como, aliás, foi em todos os países do mundo que se desenvolveram.
CADEIAS ALIMENTARES
Como, então, diante dessa trajetória, achar que Eike Batista é a condensação – mais ainda, o “ícone”, isto é, a imagem sagrada – do capitalismo nacional?
Que Lula e seus seguidores não sabem o que é capitalismo nacional ou burguesia nacional, parece um ponto pacífico.
Daí, por exemplo, a confusão com as empreiteiras, em especial a Odebrecht, no momento em que elas deixavam de ser nacionais – não para ser estrangeiras, mas para ser monopólios financeiros ou candidatas a monopólios.
[Antes que algum apressado petista nos venha dizer que “nacional” e “monopolista” não são conceitos opostos, que não são conceitos que se excluem (ou, o que é a mesma coisa, que eles “não pertencem à mesma ordem”), avisamos que já retornaremos a essa questão.]
Voltando a Eike, o estranho é que sempre se soube com quem se estava lidando. O próprio Lula chamara Eike de “vendedor de vento” (cf. Malu Gaspar, op. cit., p. 147).
Lula podia não saber o que era capitalismo nacional ou burguesia nacional, mas sabia quem era Eike.
Então, como um “vendedor de vento” poderia ser “o ícone do capitalismo brasileiro”, com direito a um imenso guarda-chuva de dinheiro público – e sob a marquise da propriedade pública – mesmo quando estava à beira da bancarrota e da desmoralização?
Lula não teve o mesmo cuidado, por exemplo, com a Varig. Apesar de ser presidente da República, deixou a empresa-símbolo da aviação comercial brasileira se atolar no brejo, abrindo caminho para o caos atual no setor aéreo.
Não por acaso, Eike e Lula tinham mais ou menos a mesma opinião sobre o empresariado brasileiro. Por exemplo:
“… foram todos almoçar no A Figueira Rubaiyat, ponto de encontro dos engravatados da avenida Paulista. Cerca de duzentas pessoas — funcionários da empresa e muitos rapazes, de pouco mais de 20 anos, que haviam trabalhado pela oferta em escritórios de advocacia, bancos e corretoras — bebericavam caipirinhas, cervejas e refrigerantes, e enganavam a fome com o couvert, quando Eike se levantou para um discurso. ‘Nós temos aqui os maiores banqueiros e investidores do Brasil. Isso revela a qualidade do nosso ativo.’ O empresário prosseguiria dizendo que seu grupo era totalmente diferente dos outros, pois encarnava o empreendedorismo puro, aquele que não vivia das benesses dos políticos nem dos bancos oficiais. Provava ao Brasil que era possível se financiar exclusivamente no mercado de capitais — tudo isso graças àqueles rapazes jovens e competentes que estavam ali, diante dele. E concluiu: ‘Vocês são o topo da cadeia alimentar!’ A audiência foi ao delírio” (cf. Malu Gaspar, op. cit., p. 113, grifo nosso).
Algo próximo fora afirmado alguns anos antes:
LULA: “… há empresário brasileiro afirmando excelência do capitalismo sem praticar o capitalismo. Este empresário, em lugar de investir na empresa, especula no mercado financeiro, aplica em seus bens pessoais, quando não deposita no Exterior. Hoje em dia fica difícil alegar que o Brasil é pobre por causa da exploração dos países ricos. (…) no Brasil o Estado foi sempre um péssimo administrador. Por exemplo: ainda não se viu uma estatal administrada de forma transparente, democrática. As nossas estatais são ineficientes. Salvo raras exceções” (entrevista a Istoé, 12 de abril de 1989).
O fato de que ambos tenham, de um lado e de outro, recorrido sem inibições às “benesses dos políticos” e “aos bancos oficiais”, apenas agrava a semelhança entre eles.
PADRÃO E ORGULHO
O episódio mais caricato – nem por isso destituído de significado, pelo contrário, a caricatura aumenta a carga de significado – já foi referido por nós, algumas vezes.
No dia 26 de abril de 2012, com a “petroleira” de Eike sem produzir gota de petróleo, Dilma, com Sérgio Cabral, em São João da Barra, promoveram uma bajulação ao suposto empresário, em uma “cerimônia de celebração do início da produção de petróleo da OGX” (v. íntegra do discurso de Dilma).
Na verdade, havia apenas o início de um “teste de longa duração” em um campo da OGX e os barrilzinhos de petróleo distribuídos por Eike às autoridades – inclusive a presidenta da República – estavam cheios de óleo diesel comum, que se compra em qualquer posto de combustível, e não de petróleo dos poços da empresa.
Falando após Sérgio Cabral, Dilma não ficou atrás em adulação:
“Vou dirigir um cumprimento muito especial ao Eike Batista, presidente da OGX. O Eike é o nosso padrão, nosso (sic) expectativa e sobretudo o orgulho do Brasil quando se trata de um empresário do setor privado” (v. vídeo).
E, mais:
“Eu acredito que o Eike é um tipo especial de empreendedor. É uma pessoa que delimita o seu sonho de uma forma extremamente ambiciosa e busca cumpri-lo e busca realizá-lo. Esse fato é algo que os brasileiros têm de ter… têm de, primeiro, prestar muita atenção, e depois têm de ter muito orgulho, porque o que nós vemos aqui é a possibilidade que quem tem capacidade de trabalho, quem busca as melhores práticas, quem quer a tecnologia de última geração e quem, de fato, percebe os interesses do seu país é capaz de fazer, tanto o primeiro óleo de uma empresa privada nacional de petróleo, como toda a realização desse porto integrado, dessa verdadeira relação porto-indústria, posto os diferentes segmentos industriais que aqui têm lugar, merece o nosso respeito e merece, da parte do governo, vocês podem ter certeza, toda a atenção e todo o suporte”.
Para completar, ainda colocou a Petrobrás à disposição da empresa de Eike Batista:
“Não há, não pode haver concorrência, no nosso espírito, entre duas grandes empresas, como é o caso da Petrobras e da OGX. Ambas se situam em patamares diversos. Agora, ambas podem ganhar muito com uma parceria. Estou certa que a OGX tem uma grande contribuição na produção de petróleo offshore no Brasil. Estou certa que a OGX tem uma grande colaboração a dar no que se refere a obter tecnologias de última geração para o Brasil.”
Dilma estava se referindo à área em que a Petrobrás era – e ainda é – a empresa mais desenvolvida, tecnologicamente, do mundo: a extração de petróleo no mar (offshore). Mas era a OGX que iria dar “uma grande colaboração no que se refere a obter tecnologias de última geração para o Brasil”…
Além disso, Dilma sabia perfeitamente qual a avaliação da Petrobrás sobre a OGX:
“… diretores e gerentes [da Petrobrás] – que cumpriam agenda em Nova York ao mesmo tempo em que a equipe da OGX rodava bancos e fundos de investimento – falavam a quem quisesse ouvir: a empresa [OGX] era um engodo e seus executivos, uns irresponsáveis que torrariam o dinheiro do acionista” (cf. Malu Gaspar, op. cit., p. 169, grifo nosso).
Uma avaliação inteiramente correta, confirmada, também inteiramente, pela quebra da OGX, dois meses depois (junho de 2012) do discurso de Dilma – e, depois, pela bancarrota oficial, em 2013, com um calote de US$ 3,6 bilhões (três bilhões e 600 milhões de dólares), provavelmente mais (v. Relatório Circunstanciado da Deloitte Touche Tohmatsu Consultores sobre a recuperação judicial da OGX, agosto/2017; e Exame, 09/05/2013, OGX tem uma dívida muito maior do que divulga, diz analista).
A FRAUDE IMPUDENTE
Mas seria injusto atribuir apenas à estupidez de Dilma a proteção ao sr. Eike Batista.
Antes de continuarmos, porém, é necessário situar o problema de que estamos tratando. O melhor para fazê-lo, aqui, é reproduzir uma rápida passagem do livro de Malu Gaspar:
“Eike já fora informado também de que a Bloomberg divulgaria em breve uma nova contabilidade sobre sua fortuna, na qual não mais apareceria como bilionário.
“O desaparecimento de seus bilhões rapidamente o converteu de empreendedor genial e incansável, ícone do capitalismo nacional que dá certo, a símbolo da falta de responsabilidade e da ganância dos grandes figurões do mercado sobre a boa-fé dos pequenos investidores.
“Num artigo que o deixou especialmente contrariado, a colunista Míriam Leitão escreveu em O Globo: ‘A ousadia no empreendedor muitas vezes é qualidade, mas é preciso que uma empresa de capital aberto, quando faz declarações sobre as suas potencialidades, esteja com os pés na realidade. Do contrário, só permite a especulação. Nas grandes oscilações da bolsa, em momentos de volatilidade, os que ganham dinheiro são os grandes, os tubarões. Os pequenos investidores perdem sempre’.”
Eike colocou, então, sua assessoria de imprensa para responder à Miriam Leitão – e à Bloomberg.
Do ponto de vista da única coisa que tinha para mostrar (e, por isso mesmo, precisava esconder) – a mera enganação do público – foi um desastre.
Sigamos a história da resposta de Eike:
“… o artigo foi tomando forma, entre idas e vindas por e-mail, até ser publicado, em 19 de julho, nos jornais O Globo e Valor, com o título ‘O Brasil como prioridade: ontem, hoje e sempre’.
“Professando alguns arrependimentos — como o de ter confiado demais em alguns executivos e o de ter se exposto excessivamente na mídia —, afirmava não ter havido alguém mais prejudicado por sua derrocada do que ele mesmo. (…)
“Eike sustentava que acreditara nas projeções de seus especialistas tanto quanto qualquer interessado de fora.
“E apontava o dedo para as ‘cabeças coroadas’ que contratara, cujas estimativas ademais eram endossadas por ‘consultorias de renome’ e ‘agências de rating de renome’. ‘De acordo com um relatório divulgado em 2011, auditado por empresas independentes de renome internacional, a OGX possuiria recursos aproximados de 10,8 bilhões de barris de petróleo equivalente (incluídos recursos contingenciais e prospectivos). Meu corpo técnico me reafirmava, dia após dia, a mesma coisa. Minhas empresas eram auditadas por três das maiores agências de risco do mundo, e nunca uma delas veio a mim ou a público alertar que não era bem assim’.”
Logo, ele não enganara ninguém. Pelo contrário, fora enganado pelos profissionais que contratara e até pelas empresas que auditaram as reservas de petróleo (e gás, daí a expressão “barris de petróleo equivalente”) da OGX.
Tudo isso era mentira.
Mas o artigo de Eike forçou, aos que ele acusava de enganá-lo, a expor a verdade:
“Quem não ficou em silêncio (…) foram os americanos da DeGolyer & MacNaughton — a agência certificadora que, segundo Eike afirmava no artigo, computara recursos de 10,8 bilhões de barris para a OGX em 2011.
“Duas semanas depois da manifestação pública do empresário, uma carta endereçada a ele e a Luiz Carneiro [novo CEO da OGX] aterrissou no [Edifício] Serrador.
“Era assinada pelo vice-presidente da D&M, John Wallace, e foi com grande surpresa que o CEO da petroleira [Luiz Carneiro] lhe percorreu o conteúdo.
“O missivista exigia que Eike se corrigisse publicamente e retificasse suas declarações. “A D&M nunca fez nenhuma estimativa de recursos equivalente a 10,8 bilhões de barris para a OGX.”
“A correspondência, de quatro páginas e cinco anexos, recordava, lance por lance, a atribulada relação entre as duas firmas.
“E lembrava que, desde 2011, a certificadora havia se oposto à forma com que o empresário e sua diretoria utilizavam as análises constantes em seus relatórios para ‘enganar’ o mercado.
“Descrevia também os encontros com Mendonça e outros diretores da empresa no Rio de Janeiro e mencionava que o próprio Eike já pedira desculpas à D&M no passado pelo mau uso dessas informações.
“‘Os 10,8 bilhões de barris declarados no comunicado da OGX de 15 de abril de 2011 foi somado de forma errada a partir de uma combinação de estimativas de recursos contingentes, recursos prospectivos e potenciais de petróleo de relatórios da D&M publicados entre setembro de 2009 e março de 2011. (…) Enquanto as quantidades usadas no comunicado podem ser encontradas nos relatórios, a forma como foram utilizadas não é consistente com o que prescrevem as diretrizes do Sistema de Gestão de Recursos Petrolíferos.’
“Ao final, Wallace era ainda mais claro. ‘Acreditamos que seria prudente para a OGX, no mínimo, comunicar-se com a imprensa diretamente para esclarecer que a D&M não forneceu à empresa as estimativas de 10,8 bilhões de barris, que a divulgação de tais volumes deve ser atribuída unicamente à manipulação de estimativas fornecidas pela D&M e que a D&M tem se manifestado desde abril de 2011 sobre suas preocupações e seu desacordo com a maneira como os dados foram agregados e apresentados pela companhia’” (cf. Malu Gaspar, op. cit., pp. 461-463).
AS RÊMORAS
É dessa falsificação sistemática que estamos falando, e que era conhecida do governo, seja de Lula seja de Dilma, assim como pelos melhores profissionais da Petrobrás – que não ficaram calados. Apenas, passou-se por cima deles, como se suas considerações não existissem.
A Petrobrás, aliás, como salientou para nós um desses profissionais, não podia deixar de conhecer o quadro da OGX, pois suas supostas “reservas” eram compostas por áreas que a Petrobrás abandonara, devido, precisamente, a razões comerciais.
Tinha sido com o uso de informações internas da Petrobrás, levadas pelos profissionais que Eike comprara do plantel da estatal, que essas áreas foram adquiridas pela OGX.
E aqui entramos em uma questão decisiva.
O quadro de profissionais da OGX era originário da Petrobrás.
O sujeito que avalizou a estimativa de Eike para o valor da empresa e suas reservas, o geólogo português Paulo Mendonça (chamado de “Mr. Oil” por seu patrão), era alguém que não conseguira ficar, nem conviver com seus colegas, na Petrobrás.
Existe uma imagem – verdadeira, consonante com a realidade, em termos históricos – dos profissionais da Petrobrás, já fixada na mente da maior parte do povo brasileiro.
Para não nos estendermos muito sobre o assunto, essa imagem foi formada a partir de homens como Walter Siqueira, Maurício Alvarenga, Eugênio Scheleder, Diomedes Cesário, Fernando Siqueira, Ricardo Maranhão, Guilherme Estrella e tantos outros.
Em suma, essa imagem é a de gente para quem o desenvolvimento do Brasil está ligado indissoluvelmente ao crescimento – tecnológico, econômico – da Petrobrás, enquanto conquista e propriedade do povo brasileiro.
Então, ao ler “Tudo ou Nada: Eike Batista e a verdadeira história do grupo X”, pode-se perguntar: quem são aqueles indivíduos que Eike Batista fisgou, entre os funcionários da Petrobrás, para formar sua produtora de ilusões e mentiras, quer dizer, sua “petroleira” – a OGX?
Esses indivíduos mais pareciam piranhas atraídas, dentro d’água, pelo corpo de um búfalo imenso – o Brasil.
O “ideal” (que o leitor nos permita as aspas) deles era ganhar dinheiro – e às custas de ludibriar o público.
Que alguns acreditassem na própria charlatanice, apenas confirma o seu caráter charlatão – qual o vendedor de miraculoso elixir, que não acaba acreditando na sua própria invenção? Qual deles consegue vender a sua vigarice, sem acreditar nela?
Embora, esse é o caso geral, o caso dos que se alimentavam com as sobras do festim promovido pelos mais gordos.
Peguemos, então, o caso do geólogo português Paulo Mendonça, que saiu da Petrobrás para a OGX porque, segundo disse ao então favorito de Eike, Rodolfo Landim (outro egresso da Petrobrás), “não aguentava mais o Estrella” – o que, aliás, somente ressalta a figura admirável do geólogo Guilherme Estrella, então diretor de Exploração e Produção da Petrobrás.
É impossível que as avaliações de Mendonça sobre as brilhantes perspectivas – inclusive sobre o valor acionário no momento – da OGX, avaliações completamente alucinadas, não fossem mentiras conscientes, com um objetivo bem preciso: encher as burras de dinheiro pela tapeação de otários.
Obviamente, Mendonça fazia apenas o que Eike Batista queria que ele fizesse. Aliás, quando a fraude estourou, ele próprio disse isso, depois do artigo de Eike, acusando os ex-executivos da OGX pelas falsas informações divulgadas para o público:
“… o mais cauteloso foi Paulo Mendonça, o Dr. Oil, que passara os meses anteriores submerso, tentando ser esquecido, mas que já transferira a um filho um dos três apartamentos comprados no bairro nobre do Leblon e que procurara dois advogados para se preparar contra uma eventual ofensiva do antigo chefe. Contou-lhes que nada fizera sem ordem de Eike e que poderia prová-lo. Juntou documentos, registros de ligações e mensagens pelo celular e organizou antigos e-mails, para o caso de ter de se defender contra uma acusação formal” (cf. Malu Gaspar, op. cit., p. 462, grifo nosso).
A acusação formal de Eike até hoje não apareceu.
Que Mendonça atuava sob as ordens de Eike, é evidente – embora, fazia isso com muito gosto, o que era, também, evidente, até pela atuação conjunta dos dois contra outros diretores ou executivos do “grupo X”.
MEIA PETROBRÁS
Como eram feitas essas avaliações?
“‘Quanto vale a OGX?’, perguntou Eike. Era o início de abril de 2010 e todos os vinte lugares da sala de reuniões da holding [EBX] estavam ocupados. A provocação consistia em mais um dos jogos do patrão. Todo mundo sabia que, na bolsa, a companhia estava cotada em 33 bilhões de dólares. O que ele queria era testar o apetite de seus pretórios, num momento em que se preparava para oferecer a petroleira no mercado. (…)
“Nas últimas semanas, os banqueiros rondavam o grupo como moscas de padaria, tentando ser os primeiros lembrados para assumir o mandato de venda da mais importante empresa do grupo.
“O empresário, porém, nada faria antes de falar, com seus escudeiros, um por um, numa espécie de leilão informal — um ritual tantas vezes repetido que já se tornara um ‘clássico’ do universo X.
“O primeiro executivo a ser chamado para dar um lance foi Flávio Godinho [vice-presidente da EBX], que, como de costume, sentava-se ao lado do chefe. O vice-presidente da holding então soltou seu chute: 48 bilhões de dólares.
“Eike, trocando olhares cúmplices com Paulo Mendonça, postado do outro lado do patrão, manifestou seu desagrado. ‘Ah, não! Que calça-curta! Assim não dá!’ E o Dr. Oil dava corda: ‘Perdoa, Mr. Batista. Ele não sabe!’
“O empresário prosseguiu. ‘Gouvêa, o que você acha?’ O advogado e diretor de finanças corporativas sabia que, naquele jogo, só valia aumentar a oferta. ‘Bem, Eike, uns 60 bilhões.’
“O chefe, mais uma vez, dividiu a insatisfação com Mendonça. ‘Está vendo, Paulo. É uma tragédia! É por isso que não dá para trabalhar com essa turma! Um bando de frouxos!’
“E assim ele foi colhendo lances cada vez maiores, até chegar ao próprio Dr. Oil. ‘Mr. Batista, você sabe qual é meu número. Já te dei por escrito. Não preciso falar.’ Eike regozijava-se. ‘Fala, Paulo. Fala. Mostra pra eles!’ E então, com ares de importância, o Mendonça revelaria seu veredito: ‘130 bilhões!’
“Orgulhoso, o empresário em seguida determinou que o gerente financeiro e de relações com investidores Gabriel De Biase, o Gabinha, colocasse no mural a equação que permitiria avaliar a OGX naquela cifra. A ideia era separar a petroleira em duas empresas — uma, com os ativos da Bacia de Campos, outra, com os blocos em terra — e vender 20% da primeira, a principal. Nesse cenário, os 20% sairiam por cerca de 20 bilhões de dólares. Os 100 bilhões de dólares que Eike julgava valer toda a companhia representavam meia Petrobras, que já produzia então 2 milhões de barris de petróleo por dia. A OGX não tinha sequer um barril de reservas garantidas.” (cf. Malu Gaspar, op. cit., pp. 243-244, grifos nossos).
Mas, se era assim que Eike avaliava suas empresas para o “mercado”, o que vendia ele, na falta de petróleo, ou de qualquer coisa real?
A resposta é: papel.
Foi lá por 2010, ou, talvez, 2009, que descobrimos que as empresas de Eike Batista não existiam – ou, melhor, como disse, na época, um lulista, eram “pré-operacionais”.
Não era um mistério. Na Bolsa e no mercado financeiro todos sabiam disso. Nós é que éramos ignorantes. Salvou-nos dessa triste ignorância um amigo, aliás, um defensor de Eike Batista, que trabalhava na venda desses papéis de empresas espectrais.
Durante uma sessão de chopp e salgados em um dos bares laureados no concurso Comida di Buteco, lá na zona da Leopoldina, no Rio de Janeiro, esse amigo expôs a teoria com que eles e seus colegas pautavam a atividade profissional de vender vento em papel: já que a economia não tinha estímulos reais, a solução era movê-la por estímulos de outra ordem.
Ouvi com pesar. Mas já devíamos ter imaginado que no capitalismo dos Eike Batista, uma empresa, como a OGX, para valer 33 bilhões de dólares, não precisa existir. Basta que existam otários, que comprem os seus papéis.
Se nem o dólar tem mais lastro real, por que as empresas teriam que ser reais?
Então, que diferença faz se a empresa vale 33 bilhões ou 130 bilhões de dólares? – deve ter pensado (pensado?) Eike Batista.
Como tudo tem um limite – a vida não é feita de narrativas ou de vigarices, nem pode ser sustentada por elas -, o sr. Eike deu com os burros n’água (aliás, deu com os burros na cadeia).
ALVORADA EM BRASÍLIA
Mas Lula não estava convencido de que Eike não era o ícone do capitalismo brasileiro, nem quando ele, sem a peruca, mais parecia um hóspede daquele hotel francês na velha Ilha do Diabo.
Mas essa relação tem uma história.
Quando Eike foi expulso da Bolívia depois de tentar subornar um ministro boliviano (a denúncia foi do próprio ministro de Hidrocarbonetos, Andrés Soliz Rada), procurou alguém que pudesse resolver o seu problema.
“Na primeira semana de maio de 2006, Eike, D’Avila e Marinho receberam Dirceu no escritório da praia do Flamengo. O empresário estava muito irritado. ‘Eu invisto milhões de dólares na Bolívia e eles me fazem isso? Que lugar é esse?’ Afirmaria também que nem pretendia permanecer no país, mas queria poder retirar seus equipamentos e receber uma indenização justa. Dirceu poderia ajudar? O ex-ministro expressou solidariedade, confirmou ser amigo de Rada e disse que tentaria convencê-lo de que o pleito era justo. O trabalho, porém, teria um preço — explicou. ‘Hoje estou aqui na condição de consultor. Vocês sabem, eu preciso reconstruir minha vida.’ Pediu então 100 mil reais por mês em um contrato de um ano. Se as negociações avançassem, cobraria uma taxa de sucesso ainda a ser combinada. Eike regateou, mas acabaram fechando em 70 mil reais mensais.”
“Eike (…) seria, em seguida, um dos maiores financiadores do filme Lula, o filho do Brasil, produzido por Luiz Carlos Barreto e por seu assessor Roberto D’Avila. O empresário doou 1 milhão de reais à produção — e sem direito a incentivo fiscal. Mais generosa, só a construtora Camargo Corrêa, que deu cerca de 2 milhões de reais.”
“Obcecado por agradar ao primeiro mandatário, foi a um leilão beneficente promovido por Wanderley Nunes, cabeleireiro da primeira-dama, dona Marisa — e arrematou por 500 mil reais o terno usado por Lula na primeira posse. Ato contínuo, devolveu a peça à família do presidente como doação para um futuro museu sobre sua passagem pelo comando da nação.
“Três dias depois do leilão, Eike desembarcava em Brasília — de jatinho, com D’Avila e Paulo Mendonça — para um encontro de final de tarde com o presidente no Palácio da Alvorada. Lula os recebeu à vontade, com as mangas da camisa social dobradas e sem assessores por perto. Ofereceu um café, enquanto os convidados se acomodavam defronte ao balcão da cozinha. O empresário então abriu seu laptop e começou a exibir as apresentações da OGX, pedindo a Dr. Oil que o ajudasse a descrever as maravilhas de sua ‘meia Bolívia’ [as supostas (e falsas) reservas de gás da OGX]. Falou também, animadíssimo, das obras de seu porto do Açu, sempre insistindo para que o presidente as visitasse.
“Se Lula ainda tinha preguiça dos ‘mapas de Eike’, ou se ainda o achava um chato, não demonstrou. Ao se despedir, depois de uma hora e meia de papo, parecia verdadeiramente empolgado: ‘Poxa, Eike, eu não sabia que seu grupo estava fazendo tanta coisa! É extraordinário! ’ Ao deixar o palácio, o empresário comentaria com Mendonça: ‘Tá vendo como o Lula é um cara legal? E você que não gostava do PT, hein?’”
O que vem em seguida é bem mais grave.
O FENOMENAL PIRES
A liberação de dinheiro do Fundo de Marinha Mercante (FMM) para Eike, passou por um diretor do Fundo de nome Amaury Ferreira Pires Neto.
Esse Pires, no início ligado ao deputado Waldemar Costa Neto (PR-SP), depois de eliminado do Fundo de Marinha Mercante por corrupção, em seguida tornou-se lobista oficial de Eike junto ao governo.
“[Pires] se demonstrou, desde o início, um eficaz agendador de encontros para o grupo X, abrindo portas não só no Ministério dos Transportes, feudo do PR, mas também no do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, administrado pelo petista Fernando Pimentel.
“A atuação de Pires e o peso do nome empresarial de Eike ajudariam a suavizar o caminho da OSX pelos meandros da burocracia governamental, pois, como os analistas dos bancos, também os técnicos do fundo questionaram a companhia a respeito da comprovação de reservas da OGX e sua respectiva carteira de encomendas — como tal certificação não existia, aquilo poderia se transformar num entrave.
“Em que bases, afinal, o FMM justificaria a concessão de um empréstimo de 2,7 bilhões de reais, o maior de sua história, com juros camaradíssimos, de 3,38% ao ano, sem ao menos uma carteira de encomendas?
“Ora, tratava-se de um projeto do homem mais rico do Brasil, um ‘empresário do PT’, símbolo do capitalismo emergente nacional.”
As gestões de Pires junto ao governo poderiam ser bazófia, como alguns outros executivos de Eike desconfiaram – se não fosse o fato de que renderam muito dinheiro a Eike.
E se não fossem outros fatos, que nada tinham a ver com Pires (eram até mais importantes), mas que iam na mesma direção:
“… quando o dono da Foxconn, Terry Gou, veio ao Brasil, a própria Dilma Roussef pediu-lhe que estendesse sua estada para conhecer o empresário, segundo Eike declarou numa entrevista. ‘Ela achou que poderíamos fazer uma grande parceria.’ Formou-se, então, um grupo de trabalho e Gou enviou um executivo ao Brasil — para estudar o que poderiam fazer juntos. Primeiro, os assessores de Eike tentaram vender-lhe uma das minas de ouro da AUX. Depois, sugeriram uma parceria para a fabricação de telas de cristal líquido. Porém, como em tantos outros casos, horas de trabalho seriam perdidas sem qualquer evolução.”
Ou:
“No início de agosto de 2012, depois de uma parada na Rússia para reuniões com representantes da petroleira estatal Lukoil, ele se juntou a Aziz em Putrajaya, capital administrativa da Malásia, para um encontro com a alta cúpula da administração local, em busca de dinheiro para a OGX. Pleiteava uma injeção de recursos da petroleira estatal malaia, a Petronas. E levava um cartão de visitas especial.
“Na noite anterior, a própria Dilma Rousseff telefonara ao primeiro-ministro Datuk Seri Najib Tun Razak. Na ligação de meia hora, a presidente ‘convidou a Malásia a entrar numa parceria inteligente e substancial com o Brasil via grupo EBX, para obter uma posição estratégica no setor de energia e recursos naturais’, segundo o site do New Straits Times, noticiário de tom francamente favorável ao governo” (grifo nosso).
Pior ainda, a tentativa de tirar do Espírito Santo o estaleiro Jurong, de Singapura, para que se associasse a Eike no Porto de Açu, para a fabricação de sondas sob encomenda da Sete Brasil, a empresa que Renato Duque e Pedro Barusco projetaram, para facilitar a passagem de propinas, numa tentativa (aliás, fracassada) de potencializar o roubo contra a Petrobrás.
“O ex-presidente [Lula] prometeu e cumpriu. Na tarde de 16 de janeiro de 2013, Dilma Rousseff recebeu Eike no Palácio do Planalto acompanhada de uma entourage de peso: Miriam Belchior, do Planejamento, Paulo Sérgio Oliveira Passos, dos Transportes, com seu secretário-executivo Miguel Masella, o presidente da Empresa Brasileira de Planejamento eLogística, Bernardo Figueiredo, e ministro da Secretaria de Portos, José Leônidas Menezes Cristino. O objetivo do encontro era cristalino eprioritário: resgatar o grupo X do atoleiro.
“Para Dilma, a melhor forma de fazê-lo era mesmo por meio do estaleiro [OSX], uma vez que considerava a petroleira um caso mais complicado. Afinal, o governo não podia fazer brotar petróleo da terra, mas poderia ajudar a OSX a rodar. Depois de uma ampla discussão a respeito de alternativas, Dilma distribuiu tarefas e mandou que seus subordinados fizessem o dever de casa. No mesmo dia, Eike ainda se encontraria com o ministro Edison Lobão, para falar sobre a OGX.”
Obviamente, tirar o Jurong do Espírito Santo, para beneficiar Eike, implicaria passar a perna em um aliado, o governador capixaba, Renato Casagrande, do PSB.
Mas Casagrande não era a nulidade que os aliados de Eike no PT – Lula, Dilma, Mantega, Pimentel – achavam que ele era.
“Ao saber da movimentação de Mantega e Pimentel, o governador Renato Casagrande, do PSB, ficaria revoltado. Ele já sabia que o lobista Pires trabalhava firme pela transferência do investimento. Embora desagradável, era uma atitude legítima, contra a qual nada havia a fazer. Naquele momento, contudo, a situação era outra — e grave: dois ministros de Estado e um embaixador [do Brasil em Singapura] se mobilizavam para privilegiar o grupo de Eike Batista em detrimento de todo o estado do Espírito Santo.
“Procurado por Casagrande, o diplomata confirmou que Pimentel havia endossado o lobista e solicitado o encontro. O governador então procurou o ministro para cobrar explicações, mas o petista saiu pela tangente. Jurou de pés juntos que só tratara da ‘ampliação de investimentos no país’ — e ainda sustentou que seu nome fora usado indevidamente por Serra.
“Vendo que, se não fizesse algo rapidamente, poderia acabar perdendo o estaleiro, Casagrande acionou seu aliado no Senado, Ricardo Ferraço, e pediu que fizesse um discurso denunciando o caso — que logo ganhou contornos de escândalo.
“O embaixador foi chamado ao Brasil para prestar esclarecimentos ao Itamaraty e convidado a depor no Congresso — e se declarou disposto a entregar os e-mails e ofícios que comprovavam a pressão do lobista e do ministro.
“O episódio não tardou a ganhar as páginas de jornais e revistas, com Mantega e Pimentel negando tudo e Eike se recusando a falar a respeito.
“A péssima repercussão do caso sepultou a tentativa de levar a Jurong para o Açu – e praticamente inviabilizou qualquer iniciativa de ajuda a Eike. Dali por diante, ele teria de se virar sem o governo.”
Mas não sem Lula:
“Quem via com muito bons olhos a possível aliança entre Eike Batista e André Esteves era o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (…) Esteves tinha em comum com Eike o discurso pró-Brasil. A maior parte das apostas de seu banco relacionava-se ao sucesso da economia nacional — como a onda de aquisições que sua área de investimentos comandava e que estava despejando 30 bilhões de reais em empresas ligadas aos setores de imobiliário e de infraestrutura.”
Em suma, Esteves era um nacionalista cuja especialidade era acabar com as empresas nacionais…
“Esteves e o ex-presidente haviam se tornado interlocutores próximos desde que se conheceram, logo que o petista deixou o governo. No mundo financeiro, era visto como o banqueiro mais próximo do PT. Nos últimos tempos, Lula vinha lhe manifestando preocupação com Eike, muitas vezes perguntando ao amigo financista se a situação do grupo X tinha jeito. Ele, Lula, estava fazendo sua parte. Numa frente, trabalhava pela junção entre OSX e Jurong. Noutra, fazia lobby pela entrada da Sete Brasil no capital da companhia de estaleiros do empresário. E o ajudava também nos contatos com potenciais sócios.
“No final do mês de fevereiro, o primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, visitou o Brasil. Junto com sua comitiva, um grupo da estatal russa Lukoil veio para se encontrar com Eike. De modo a impressionar os potenciais compradores, o empresário acionou Lula, que viajou ao Rio no dia 27 para uma reunião privada com os russos. A conversa, de pouco mais de meia hora, aconteceu no hotel Sofitel, em frente ao Forte de Copacabana, onde o ex-presidente gostava de se hospedar quando naquela cidade. Lula deixou claro que o Estado brasileiro tinha muito interesse num negócio entre a Lukoil e OGX. Eike, afinal, era o ícone do capitalismo brasileiro. O encontro causou impressão.”
Mas nada aconteceu. Os russos conheciam Eike.
EPÍLOGO PROVISÓRIO
A maior parte deste artigo – quase tudo o que está acima – foi escrito durante um tempo compulsório no leito (não, não foi o coronavírus), sob a ditadura severa de alguns médicos, aliás, grandes colegas.
Resta, agora, fundamentar a questão com que iniciamos este artigo.
A questão científica – isto é, teórica – foi colocada há muito tempo:
“… o principal entrave atual ao desenvolvimento de nossas forças produtivas não são as relações de produção capitalistas; são as relações de produção dependentes. Portanto, a transformação econômica que corresponde ao estágio atual da democratização da sociedade não é, evidentemente, a ruptura com o capitalismo” (cf. Claudio Campos, A Crise da Dependência, 1984, publicado no livro “Retrato do Brasil”, volume IV, coletânea organizada por Raimundo Pereira em 1985, grifo nosso; uma excelente exposição dessa especificidade das relações de produção no Brasil pode ser encontrada no livro de Nílson Araújo de Souza, A Longa Agonia da Dependência, Alfa-Omega, 2004, pp. 42-44).
Porém, escrevia Claudio Campos, há 36 anos:
“Afirmar que o que está em causa não é o capitalismo em geral não significa que estejamos condenados, num Brasil democrático, a assistir passivamente à lógica pura e simples da reprodução capitalista.”
Ou seja, assistir passivamente a transformação do capitalismo concorrencial em capitalismo monopolista. Pois é a isso que leva a “lógica pura e simples da reprodução capitalista” (em 1847, em “Miséria da Filosofia”, escreveu Karl Marx: “Todo mundo sabe que o monopólio moderno é engendrado pela própria concorrência”).
O capitalismo monopolista é, como se sabe, a base do imperialismo – e, portanto, da dependência, da espoliação, dos países periféricos do sistema imperialista.
A partir disso, não é difícil entender porque a transformação em monopólio faz com que o caráter nacional de uma empresa – sobretudo de uma empresa de um país dependente – seja destruído por seu caráter monopolista.
A Odebrecht é quase um exemplo didático, nesse sentido. À medida em que se transformou em um monopólio, esse grupo empresarial passou a se identificar muito mais com os monopólios imperialistas – isto é, as multinacionais – do que com o Brasil.
Até mesmo passou a fazer propaganda de que se tornara “fornecedora” do Pentágono – e foi uma das empresas que os americanos colocaram no Iraque, logo após sua ocupação (o que custou a vida de um engenheiro brasileiro, executado pela resistência iraquiana).
Por isso, a política das “multinacionais brasileiras” e favorecimento a supostos “campeões nacionais” (sempre os mesmos: a Odebrecht e quejandas; o Eike; a JBS, etc.), no governo Lula, foi tão nociva para o desenvolvimento brasileiro (v. HP 19/02/2010, O canto das sereias fracassadas 1: as “multinacionais” brasileiras).
É interessante como Lula (mais Lula que o PT) utilizou tudo aquilo que negara, durante décadas, quando a situação se tornou difícil.
Assim, a burguesia nacional ou empresariado nacional foi subitamente reabilitado: mas apenas para dizer que a Operação Lava Jato estava acabando com essa burguesia ou empresariado.
Assim, não era mais a política de Lula e Dilma, que favorecia um grupelho com pretensões monopolistas – em detrimento do conjunto do empresariado nacional – a responsável pela devastação das empresas nacionais, prejudicadas por uma taxa de câmbio criminosa, por uma taxa de juros assassina, pela monopolização dos recursos do BNDES, pela inundação de Investimento Direto Estrangeiro, etc. (v. HP 24/02/2010, O canto das sereias fracassadas 2: o IDE afunda o comércio exterior; e, também, HP 26/02/2010, O canto das sereias fracassadas 3: o IDE e a hipervalorização do real).
Era a Lava Jato, uma operação de combate ao roubo, que levava as empresas nacionais à falência.
A implicação disso é clara: o empresariado nacional deve ser composto por ladrões.
É preciso ignorar qualquer fundamento real – e fugir a qualquer pretensão científica de abordar a economia – para acreditar em algo assim.
Entretanto, parece que Lula & cia. acreditavam nisso.
Afinal, o “ícone do capitalismo brasileiro” não era o Eike Batista?