O economista Nelson Marconi, professor da Fundação Getúlio Vargas, afirmou, em entrevista ao HP, que para enfrentar a maior crise da história do país é preciso a forte presença do Estado. “É típica situação em que o governo precisa realmente entrar de forma incisiva, realizando um grande volume de gastos para tentar minorar o problema, tanto do ponto de vista econômico como do ponto de vista da saúde, tentar salvar as vidas, tentar minorar o impacto da pandemia sobre a população”, declarou.
Para isso, Marconi defende a emissão de moedas para financiar os gastos públicos. Ele afirmou que “normalmente” procura-se controlar a expansão monetária e manter o equilíbrio das contas públicas. Por isso, a Constituição não permite a compra de títulos do Tesouro pelo Banco Central. Para evitar a inflação e o descontrole dos gastos. Mas, pondera o professor, “nós estamos numa situação anormal. Uma situação anormal exige soluções também anormais. Neste momento, deveria se ter uma PEC, assim como teve a PEC do Orçamento de Guerra, para autorizar o Banco Central a comprar títulos do Tesouro”.
HORA DO POVO – A crise atual está sendo comparada à depressão dos anos 30. A previsão da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) é de queda de 7% no PIB brasileiro em 2020. Na sua opinião, as medidas econômicas tomadas até agora, por iniciativa do governo e do Congresso Nacional, são suficientes para enfrentá-la?
NELSON MARCONI – Realmente a gente vai enfrentar a maior crise da história, os números já estão mostrando que a queda do PIB vai ser brutal. Numa situação dessa, que há um choque muito grande na economia, tanto de oferta, a gente fala pelo lado da produção como pelo lado da demanda, dos consumidores, dos trabalhadores, do poder de compra, o tombo é muito grande. É típica situação em que o governo precisa realmente entrar de forma incisiva, realizando um grande volume de gastos para tentar minorar o problema, tanto do ponto de vista econômico como do ponto de vista da saúde, tentar salvar as vidas, tentar minorar o impacto da pandemia sobre a população. Então os gastos que ele deveria estar fazendo são muito maiores do que estes que eles estão fazendo.
Na verdade, quando eles fizeram o programa de renda emergencial, esse programa deveria ser mais amplo, com valor maior e atingir mais pessoas. Atingiu um número razoável de pessoas, mas é metade do público alvo até agora. O programa de financiamento às empresas, para ajudar a pagarem a folha de pessoal, a despesa de pessoal, também não chega até elas, porque os bancos requerem uma série de garantias que, logicamente, numa crise as empresas não têm como fornecer. Então, na verdade, quem deveria estar fazendo esse processo de empréstimo ou quase repasse a fundo perdido deveria ser o Tesouro via os bancos públicos ou até o próprio Banco Central fazendo isso. A gente vê que as outras linhas, como o seguro-desemprego, também não estão sendo tão utilizadas como deveriam.
O que acontece? Numa crise desse tamanho, o governo deveria entrar de forma muito mais tensa, muito mais incisiva. O que a gente vê é que é um governo que realmente não sabe trabalhar com isso, porque a ideia da equipe econômica, na verdade, é acabar com o Estado, mas nesse momento você precisa fortemente do Estado. Então eles ficaram sem ação, é uma coisa contrária completamente à ideologia deles. O Congresso é que pressionou fortemente e que decidiu por uma série de medidas, e mesmo assim a equipe econômica continua titubeante, tentando segurar o máximo possível os gastos e falando que o que vai resolver o problema são as reformas. É uma interpretação totalmente fora da realidade.
HP – Da onde poderiam vir os recursos para elevar mais os gastos?
NELSON MARCONI – Bom, a gente teria três fontes fundamentalmente desses recursos do ponto de vista teórico. Teria o aumento dos impostos, que é uma coisa que é muito difícil fazer no curto prazo, o imposto só passa a entrar em vigor no ano seguinte ao que ele foi criado. Você teria também uma resistência grande da sociedade para isso, ainda que eu acho que a médio prazo a gente precisa ter uma tributação maior sobre os mais ricos e eles devem ajudar a financiar a despesa com essa pandemia, mas isso a gente pode pensar para o ano que vem , mas não agora para a questão emergencial.
A segunda forma de financiar os gastos é a tradicional, que é o Tesouro. Não tendo recurso suficiente oriundo dos impostos, ele tem que emitir títulos e vender ao mercado esses títulos. Esses recursos entram no caixa do Tesouro e ele realiza suas despesas. Dessa forma, ele estaria se endividando junto ao mercado, aumentaria os gastos, da forma como é necessário, mas estaria aumentando a dívida junto ao mercado e isso certamente será cobrado mais à frente. O mercado, se a dívida aumentar muito, vai demandar, vai exigir que o governo pague uma taxa de juro mais alta para financiar, vai exigir um ajuste fiscal mais forte lá para frente e a gente sabe que na saída dessa crise não é o momento para se fazer um ajuste fiscal.
A terceira possibilidade, que é a que eu defendo, a outra forma de financiar esses gastos, seria através da venda de títulos do Tesouro para o Banco Central. Você faz uma operação dentro do governo. O Tesouro vende os títulos para o Banco Central e o Banco Central, em troca, entrega moeda para o Tesouro e o Tesouro paga suas despesas com essa moeda, essa expansão monetária, não é moeda física, contabilmente, tem uma expansão monetária e que o Tesouro com isso paga suas despesas.
A vantagem dessa alternativa é que a dívida que o Tesouro está fazendo é junto ao Banco Central, dentro do próprio governo. Então é uma dívida que ao longo do tempo ela se equaciona com refinanciamento, a medida que o Tesouro tiver um resultado melhor ele vai amortizando essa dívida junto ao Banco Central. E não tem problema nenhum o Banco Central ficar com esses títulos na carteira, porque ele é o último emprestador da economia, em última instância, ele é o pagador. Vamos dizer, é a instituição pública que pode resolver esse problema realmente. Então não teria problema ele ter esses títulos no seu balanço. E com isso você aumentaria a dívida do Tesouro, mas é junto ao Banco Central, como eu falei, é muito melhor do que você aumentar junto ao mercado, porque o mercado sim vai cobrar lá na frente o ajuste e uma taxa de juros maior, em função do aumento da dívida, e no caso do financiamento junto ao Banco Central é totalmente diferente.
A expansão monetária traz teoricamente alguns problemas. Se você tiver uma expansão monetária muito forte e isso levar a um aumento da quantidade de moeda em circulação, existe o medo de boa parte das pessoas, do senso comum, de que você teria um aumento da inflação. O que acontece? No fundo, a moeda é o lubrificante dessa engrenagem da economia. Se a gente está numa crise como a atual, não há como ter inflação porque não têm negócios, não tem demanda pelos produtos, não tem produção, não tem como haver aumento de preço generalizado, tanto é que nos dois últimos meses houve deflação. Então, a moeda, no fundo, é esse lubrificante. Se a economia está muito aquecida e você coloca mais moeda no mercado, isso facilita o aumento dos preços, mas numa economia que vai ter um tombo, como a gente vai ter esse ano o maior da história, não existe o mínimo risco de ter inflação.
Outra crítica é que se você usa esse mecanismo de expansão monetária o governo perde o controle sobre a taxa de juros. Aí a taxa de juros básica teria que cair, o governo perderia o controle sobre ela porque a taxa de juro do mercado cairia porque teria mais moeda em circulação, a taxa de juro do governo, que define a Selic, teria que cair mais. Bom, a taxa de juros básica tem que cair mesmo, o governo acabou derrubando a taxa de juros para 2,25% essa semana, ainda para a crise que a gente está uma taxa muito alta, então não vejo problema nenhum nessa conjuntura a taxa de juro cair. Essa é uma situação provisória.
O terceiro problema seria o impacto que a taxa de juro teria sobre o câmbio, teria uma depreciação. A gente viu que a taxa de câmbio, na verdade, mesmo com a taxa de juro caindo, tem hora que ela está subindo, tem hora que ela está caindo, tem hora que ela está subindo, tem hora que ela está caindo. Isso está dependendo muito mais do movimento do fluxo de capitais do exterior para o Brasil, muito mais do que o comportamento da taxa de juros. E, mesmo assim, ainda que ela suba, eu acho mais fácil resolver lá na frente uma taxa de câmbio muito alta e trazer ela para um patamar razoável, se o Banco Central trabalhar no sentido de diminuir, é mais fácil fazer isso, do que tentar financiar uma dívida pública grande junto ao mercado. Isso daria muito mais trabalho e, logicamente, seria mais custoso para a economia.
HP – E qual a lógica da proibição constitucional de que o BC compre títulos do governo?
NELSON MARCONI – Além desse problemas que eu acabei de especificar em relação a emissão de moedas para financiar os gastos, existe um quarto problema que, de certa forma, criou esse impedimento constitucional. Seria o medo de que alguns políticos usassem muito mal essa liberdade e gastassem à vontade, não tivessem nenhuma restrição do ponto de vista fiscal e isso levaria, na verdade, a ter gastos muito mal controlados, pressionaria a demanda agregada e pressionaria a inflação, por isso é que existe essa proibição. Eu entendo isso, mas nós estamos numa situação anormal. Uma situação anormal exige soluções também anormais. Neste momento, deveria se ter uma PEC [Proposta de Emenda Constitucional], assim como teve a PEC do Orçamento de Guerra, aliás isso deveria estar na PEC de Orçamento de Guerra, não está la, deveríamos ter uma PEC para autorizar o Banco Central a comprar esses títulos do Tesouro que a gente chama de mercado primário, por um certo tempo, sem a possibilidade de renovação. Então a gente colocaria um certo período, eu diria que esses títulos que entrassem na carteira do Banco Central poderiam ser refinanciados pelo Tesouro, se poderia fazer a rolagem dessa dívida, mas daquele limite para frente o Tesouro não poderia mais vender títulos para o Banco Central para aumentar aquele montante, ele teria que fazer isso de forma temporária. Aí eu acho que isso é plenamente aceitável pela sociedade. Como eu disse, isso é menos custoso para a sociedade, causa menos custo, menos impacto, do que a gente aumentar uma dívida pública junto ao mercado, que lá na frente vai ser muito mais difícil para fazer ajuste.
ELIANA REIS