“Nós estamos destruindo uma base física e material essencial para a vida cooperativa em sociedade”
“Nada mais imoral do que a queda da liminar que impedia a privatização da Eletrobrás, por parte do ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF)”, afirmou o professor Ildo Sauer, vice-diretor do Instituto de Energia da USP (IEE). Para o professor da USP, é incalculável o prejuízo para o país desta medida insana. “A importância econômica e estratégica da Eletrobrás supera em muito qualquer avaliação”, diz ele.
A decisão que barrou a privatização foi tomada pela Justiça Federal de Pernambuco em janeiro. O juiz pernambucano argumentou à época que a medida não tinha urgência (um dos pré-requisitos para a edição de uma medida provisória), alterava de forma “substancial” a configuração do setor elétrico e foi editada “no apagar das luzes” do ano de 2017, sem uma “imprescindível” participação do Congresso.
GOVERNO ILEGÍTIMO
Ildo Sauer citou Roberto Araújo [ex-conselheiro de Furnas], que afirmou que “a geografia brasileira está demarcada pelas bacias hidrográficas”. “Isso é objeto de uma especulação financeira para proteger políticos corruptos e um ataque contra a capacidade de uma sociedade se organizar”, destacou Ildo Sauer. “Esse governo ilegítimo promove uma oportunidade de ouro para os bandidos perpetrarem o assalto”, afirmou.
“Estamos com um déficit político e moral neste momento. Nós estamos destruindo uma base física e material essencial para a vida cooperativa em sociedade com discursos apequenados. O Supremo se apequena quando ele mantém medidas provisórias como esta, que tem um objetivo claro, manifesto de promover o assalto, com cúmplices. Isto é um processamento burocrático legalizado, quando a essência está clara, destruir condições futuras do país e tornar a sociedade refém do interesse financeiro sobre esse recurso natural que são as bacias hidrográficas, redes de transmissão e geração organizadas em torno de objetivos maiores”, acrescentou o especialista.
“Um governo sem reconhecimento popular nenhum, visto com suspeita por todos os lados, acha que pode agora, com a ajuda do STF, destruir um patrimônio cuja origem remonta às lutas do início do século XX para a construção da nação brasileira”, denuncia Ildo. “A Eletrobrás é instrumento essencial para a construção de vários campos da vida. Abastecimento público, irrigação, navegação, controle de cheias, controle de secas, geração de energia elétrica. Imaginem subordinar isso tudo para tentar arrebanhar alguns tostões, num governo que gastou isso para conseguir propinar o Congresso e evitar que ele fosse a juízo no STF. Isto é um assalto revoltante. Por muito menos, a tentativa do controle privado de água para abastecimento público na Bolívia, levou a população a se rebelar, redundando na derrubada dos governos neoliberais”.
“Se houver um mínimo de mobilização e a população for alertada, e tomar ciência do que está em jogo, nós poderemos barrar essa medida, inclusive com a ajuda do Congresso, porque até lá está havendo resistências à essa medida, em razão de motivos diversos, mas de qualquer maneira há resistência”, avaliou Ildo Sauer.
Segundo o professor, são dois os focos. “O primeiro são as distribuidoras que eram, digamos assim, o ‘patinho feio’ do setor elétrico. As distribuidoras dos estados mais pobres, que tinham baixa rentabilidade por uma série de motivos. Não precisava ser assim, mas assim era. E as mais rentáveis, que foram privatizadas. Começou com a CELG, a Light, Eletropaulo, CPFL. Na época do neoliberalismo de FHC, os governadores vendiam suas empresas de distribuição. O Rio Grande do Sul repartiu seu sistema elétrico em três partes, vendeu duas e ficou com a menos rentável”, explicou.
“Na medida em que as distribuidoras foram federalizadas, a instrumentalização política se aprofundou. Ninguém faz isso. A gestão tem que ser feita com planejamento. Basta organizar com tecnologia e gestão e tudo funciona. Esse sistema foi construído no fim do século XIX e tornou-se vital para todas as sociedades que têm modo de vida urbano industrial. O que eles consideram como ‘patinho feio’, que é o sistema de distribuição, apresentou uma série de problemas causados pelas instrumentalizações, resultado das alianças dos chamados governos de coalizão”, denunciou.
GERAÇÃO E TRANSMISSÃO
“Na área de geração e transmissão da Eletrobrás, vejam que ironia, o governo quer cobrar uma conta de um ressarcimento das geradoras e transmissoras, que, pelos cálculos da ANEEL, pode chegar a R$ 90 bilhões. Isso foi criado pela incapacidade, pela inépcia total, voluntarismo e tudo que é adjetivo de péssima gestão pública, que se aplica à senhora Rousseff que, com a medida provisória 579, levou o caos ao sistema, sob o pretexto de tentar reduzir tarifas em 2012. Ela fez isso porque viu que a bonança dos grandes preços internacionais tinha acabado. Eles tinham favorecido os investimentos privados e os grandes “consumidores livres”, em detrimento das geradoras públicas, desde o primeiro dia do governo Lula”, relatou Ildo Sauer.
“A senhora Rousseff comandou isso. Ela tentou, num golpe de mágica, fazer vencer as concessões de linhas de transmissão e dos sistemas de geração para reduzir a tarifa. Da geração de energia hidráulica e da transmissão pública, enquanto que as privadas continuavam com tarifas altíssimas”, denunciou. “A tarifa líquida, descontados os impostos e taxas para as geradoras federais, oscilava de R$ 7 a R$ 12 o KWh enquanto os geradores privados, contratados em leilões, geravam energia a R$ 200, podendo chegar a R$ 230 e, em alguns casos chegava a R$ 1000 o KWh. Esses donos dessas empresas, empresários, investidores, que eram tratados com muito carinho e pão de ló, faziam parte da coalizão”, prosseguiu o professor.
HISTÓRICO
Ildo Sauer fez um histórico do que representa a Eletrobrás para o Brasil.
“Desde as grandes mudanças na produção urbana e industrial, que se seguiu à era do carvão, houve uma bifurcação em duas grandes vertentes. Uma do petróleo e a outra da eletricidade. A eletricidade estava no centro das grandes mudanças no modo de produzir e organizar a vida”, disse o especialista. “No Brasil isso foi objeto de uma luta encarniçada logo que isso foi revelado como algo interessante. Quando se viu que o capitalismo conseguia, de maneira extremamente veloz, propagar os ganhos de produtividade, com a eletricidade e o petróleo. As duas vertentes eram, uma da produção de energia elétrica para a indústria e a produção, e a outra, o aparato de consumo como automóveis, a linha branca, motores, etc. Note que grande parte do salto da produtividade pós século XIX se deu por conta disso”, prosseguiu Ildo.
CÓDIGO DE ÁGUAS
“Em 1906”, conta ele, “Alfredo Valadão, que era um especialista brasileiro, andou pelo mundo e foi ver como esse debate se desenrolava em vários países, e trouxe para o Brasil uma proposta de um Código de Águas. Em 1889, a concessão já havia ocorrido para o grupo canadense Light no Distrito Federal (Rio) e São Paulo. A americana American and Foreign Power (AMFORP) foi para o Rio Grande do Sul e o interior de São Paulo. Então eles já estavam de olho. Se você olha os livros do Catulo Branco, o prefácio de seu livro, feito pelo Barbosa Lima Sobrinho, ‘O Capital Estrangeiro e Energia Elétrica no Brasil’, você vai ver que essa luta vem de longe”.
“Não é de agora que há um embate muito forte em torno da apropriação dos benefícios econômicos que o controle sobre o monopólio da distribuição e transmissão e, de outro lado, a geração mais barata – porque as empresas eram integradas até os anos 70 porque não havia como separar – trazia de agilidade. Por isso havia monopólios de energia regionais”, explicou Sauer.
“O projeto de lei de Alfredo Valadão foi obstruído por esses interesses. Miguel Reale, essa turma toda, que eram os grandes juristas, advogados da Light em São Paulo, entraram na briga. Tudo isso estava ancorado nessa luta, que agora tem novas caras, novos fardamentos e novos uniformes, mas a disputa continua igual”, disse Ildo Sauer. “Quem se beneficia com o controle sobre os potenciais hidráulicos, quem controla os monopólios da transmissão e da distribuição elétrica para dela extrair excedente econômico? Esta é a luta. Mal ou bem há uma margem enorme entre o custo e o valor que a energia elétrica, assim como o petróleo, tem para a sociedade. Então tomar um naco disso está na base da disputa e o Congresso Nacional foi instrumentalizado”, apontou.
GETÚLIO VARGAS
“O projeto de lei de Alfredo Valadão, do Código de Águas, que foi apresentado em 1906 na Câmara, nunca foi votado. Entrou em vigor porque o Getúlio Vargas fez um decreto-lei em 1934 implantando o Código de Águas, que foi um avanço extraordinário”, contou. “Da mesma forma, quando a água passou a ter controle público, as multinacionais que já tinham se instalado no Brasil não queriam a Eletrobrás, porque ela ia ser, não só uma organizadora das usinas, como da cadeia produtiva inteira”, denunciou.
“A ideia é que a Eletrobrás produzisse turbinas, máquinas e equipamentos. O cartel da indústria elétrica mundial, criado formalmente em 1936, com a Westhinhouse, a Siemens, GE e outras – que dividiu o mundo – impediu o surgimento da Eletrobrás, que confrontava seus interesses. Ela não passou no pacote do segundo governo Vargas. A Petrobrás conseguiu ser aprovada nesta época, mas a Eletrobrás não. Ela só foi ser criada no governo Jango”, salientou. “Foi uma grande herança que o Goulart deixou para o país”, assinalou Sauer.
SISTEMA INTEGRADO
Ildo enfatizou que “por essas lutas encarniçadas do passado é clara a relevância de um sistema integrado, um dos únicos do mundo, que integra as bacias hidrográficas”. “As linhas de transmissão fazem com que, de uma certa forma, a água fluísse de um lado para outro. O sistema elétrico brasileiro é interligado. Isso foi feito no governo Sarney, que ligou o Norte-Nordeste com o sistema Sul-Sudeste-Centroeste. Eu fiz isso nos gasodutos alguns anos depois, inspirado no mesmo modelo”, disse.
“Então, controlar o recurso hídrico, as usinas hidrelétricas, é fundamental. Desde o código de águas, ditado pelo decreto-lei de Vargas, criado por inspiração nos estudos de Alfredo Valadão, estava claro que a água era a base da construção, um dos pilares fundamentais para a construção de uma sociedade que viria a se urbanizar e se industrializar”, frisou. “A água tem um papel fundamental, não só para gerar energia mas, acima de tudo, para o abastecimento público, para a navegação, para a irrigação, enfim, a todo um conjunto de benefícios que, quando a água é gerida de maneira cooperativa, ela deixa, inclusive no sistema capitalista”, acrescentou Ildo.
“Os EUA não privatizaram a TVA (Tennessee Valley Authority), criada no governo Roosevelt, para arrancar da miséria o sul afligido profundamente pela herança escravagista e pela discriminação. A Tenesse Vale continua federal. Ninguém questiona, não tem prazo de concessão. Ela é operada em benefício da economia e da sociedade para garantir navegação, garantir controle de cheias e secas, tanto lá como cá e geração de energia”, relata o especialista.
PRIVATIZAÇÃO
“Privatrizar a Eletrobrás por uma bagatela, com números que nem se sabe se vão obter – porque eles querem fazer aumento de capital – é um absurdo. Isto é, vão diluir as ações do governo, entregando tudo, com a promessa da tal da Golden Share, que existe na Embraer e que nunca serviu para muita coisa na prática. Porque, na hora H, os grandes interesses econômicos, que querem alterar a natureza, por exemplo da Embraer, prevalecem.
“Desde a década de 70, a Eletrobrás vem sofrendo os ataques dos grupos representados por ACM, Imbassay, etc. O sonho de FHC era privatizar, nós resistimos e não deixamos. A Dilma não privatizou o CNPJ, mas privatizou os benefícios que a energia podia gerar, fazendo uma mudança legislativa que obrigava as geradoras da Eletrobrás e suas subsidiárias, como a Eletronorte – esta última foi criada com inspiração na CVA, para ser uma agência de desenvolvimento da Amazônia – a vender abaixo do preço”, denunciou.
Todas as empresas do sistema operavam de maneira cooperativa, integradas, junto com as grandes estaduais. Por que foi feito isso? Para ganhar escala, capacidade tecnológica e financeira, integrar. A Eletrobrás era isso, um consórcio. A Petrobrás era una para cumprir o seu papel nacional e internacional, a Eletrobrás era um sistema integrado, cooperativo das públicas estaduais. A Holding Eletrobrás era uma grande organizadora do planejamento, da operação. Porque, para você operar a água, manter os reservatórios, ter uma otimização de longo prazo para que o custo seja o menor possível, tem que haver cooperação. Afinal, este setor é um grande monopólio natural. Neste setor a cooperação é muito mais importante do que a competição. Na prática, onde se deu a competição nesse setor, na Colômbia e na Califórnia, por exemplo, o resultado foi desastroso”, avaliou.
“Por tudo isso eu digo que todas as privatizações feitas nos últimos governos, incluindo a MP da Dilma e os leilões como os de Libra e todos os demais, devem ser revistos por um governo legítimo que venha a existir no país”, disse Ildo Sauer. “Aviso aos cúmplices do assalto que querem se locupletar, como o próprio governo da Noruega, que veio se apoderar de reservas aqui do pré-sal. Essa advertência tem que ser dada a todo e qualquer grupo nacional ou estrangeiro, que se acumplicie com esse governo”, afirmou. “Vão ter que devolver o que levaram. É como o assaltante que se aproveita de uma orfandade de uma família que perde pai e mãe e os tutores assaltam os herdeiros menores de idade para lhes tomar todos os bens que ficaram”, disse. “Nenhuma ilegitimidade suprema dessas vai se legitimar por liminares, de quem quer seja”, concluiu Sauer.
SÉRGIO CRUZ