ISO SENDACZ (*)
Enquanto escrevíamos sobre a privataria oficial, o chargista realizava seu especial mister de captar, em uma figura, a essência do novo marco relatório do saneamento básico.
Não que esperemos um arroubo de compromisso público e nacional do Presidente da República em vetar as partes ou o todo da Lei que facilita a transferência a mãos particulares, não necessariamente do Brasil, o bem mais precioso, a matriz da vida: a água.
Muitos dirão que se trata somente do seu saneamento, não do líquido em si. Ou seja, a sua reconversão em água potável, própria para o uso humano e de outras espécies. A valer a nova lei, a parte da conta que hoje vai para o Estado poderá seguir rumo ao exterior. Se o valor será menor ou maior, é cedo para dizer. Mas a luz que, coincidentemente, teve o suprimento interrompido por alguns minutos nesta manhã, esta é hoje mais cara do que já foi sob a gestão estatal.
Já há propagandista de plantão que procuram ocultar sua ânsia de pequeno lucro com as sobras de um novo monopólio, comparando esta “vitória” com a privatização da telefonia.
Quando o Estado de São Paulo estava todo cabeado e os engenheiros do CNPq, em Campinas, tinham concebido o projeto dos novos comutadores telefônicos, adonou-se da telefonia pré-celular – sim, o Bill Gates tinha um que levou à selva amazônica para, sobre uma mesa de jantar inteira, receber de viva voz a notícia do nascimento de sua filho – uma empresa espanhola, que mais não fez do que instalar aparelhos nas centrais e casas e ganhar uma fortuna que estávamos prontos para acumular.
Se o enfoque for a universalidade do acesso, houve quem lembrasse, além da injustiça tributária incidente sobre a tarifa social, dos preços de se ter uma linha telefônica particular no século passado.
Quando me casei, em 1984, um dos presentes foi um cheque de um milhão, que fez meu pai ligar para o convidado e verificar se não tinha havido qualquer engano. Com novecentos mil, compramos um Fuscão 71 e a diferença permitiu que tivéssemos nossa própria linha telefônica em casa. Fortuna? A Calculadora do Cidadão do BCB mostra que, em reais de 1994, o valor não chegava a duzentos reais. Anos depois vendi as ações da Telesp associadas à propriedade daquela linha – o quinhão da empresa que pertencia a cada titular de um número fixo – por uns dois mil reais. Em salários mínimos, quatro vezes mais que o preço de aquisição!
Um conto ilustra bem o valor social da água e porque ela não pode ser privatizada: é abjeta a ideia de ganhar um dinheirinho extra sobre a sede de outrem.
Um fazendeiro pretendia que seu jovem filho soubesse que o dinheiro não era tudo na vida e a maioria tinha uma vida mais simples que eles, porque eram mais pobres. Então combinou com o capataz para o rapaz passar um fim de semana em sua casa, já que o funcionário também tinha um filho da mesma idade.
No retorno, perguntou sobre a experiência. O garoto não se fez de rogado: enquanto temos duas ou três árvores no nosso quintal, eles têm toda uma floresta; enquanto a nossa piscina tem uns poucos metros, eles têm um rio que vai além de onde a vista alcança. Obrigado, pai, por mostrar como nós somos pobres.
(*) Engenheiro Mecânico pela EESC-USP, Especialista aposentado do Banco Central, diretor do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central e do Instituto Cultural Israelita Brasileiro, membro da direção estadual paulista do Partido Comunista do Brasil. Nascido no Bom Retiro, São Paulo, mora em Santos