ISO SENDACZ (*)
Mais oportuna não poderia ser a aula da Escola Dieese, com Ruy Braga* e Ana Claudia Cardoso**, sobre o capitalismo de aplicativo e o precariado dos serviços, oferecida na véspera desta primeira paralisação nacional dos entregadores de aplicativo.
“Trabalhe sem chefe, faça seu dinheiro no seu próprio ritmo”, apregoam os gigantes que se servem da tecnologia para, globalmente, servir-se das informações pessoais e lucrar com elas.
São plataformas não transparentes que, ao contrário da propaganda, ditam as condições de trabalho em detalhe: a jornada, o preço da hora trabalhada, a avaliação de acordo com a satisfação do cliente, a desilusão com o progresso na vida do trabalhador.
Não há formação profissional, não há perspectiva de aposentadoria, nem sequer segurança ante um infortúnio qualquer. Há, sim, um roubo da identidade do serviçal, que fica por conta própria em mundo cada vez mais individualista.
Se as jornadas já eram de fazer inveja aos primórdios da revolução industrial – a maioria trabalha 9 horas ou mais de 6 a 7 dias por semana, sem férias – a renda, que precisa cobrir os custos do trabalho, ficou menor ainda no período da pandemia. Era de R$ 520 em média por semana para pagar combustível, manutenção do veículo, seguros e alguma sobra para as despesas pessoais imediatas. Mas a espera por um serviço cresceu entre os entregadores, em razão do cadastramento de muita gente nova, e a demanda caiu entre os motoristas, em função do isolamento social. Jornadas maiores e rendas menores.
O movimento de hoje tem um quê de espontâneo, sem a organização sindical ou política dos participantes. O professor Ruy avalia que isso se deve em parte à nova forma de exploração do trabalho pelo capital. Mas vem acompanhado de um ceticismo não só quanto aos efeitos imediatos – a ajuda à contenção viral muitas vezes se resume a uma mensagem de alerta escrita no pedido -, mas também nas perspectivas mais duradouras da capacidade de reprodução da força do próprio trabalho e à perspectiva de uma vida mais confortável adiante.
Ainda em 2019, um jovem sentiu-se mal no trajeto de uma entrega e faleceu antes de o socorro público lhe encontrar. No final da vida, ainda ligou para as duas plataformas a que atendia e nenhuma delas fez qualquer movimento de solidariedade a ele, já que não havia vínculo legal entre as partes.
Nossa solidariedade às reivindicações de proteção laboral a quem não tem horário para prestar um serviço aos cidadãos do país. Não coaduna com o marco civilizatório brasileiro o motoqueiro e o ciclista serem classificados como “empreendedores”.
*Ruy Braga Professor titular do Departamento de Sociologia da USP e vice-coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic). É autor de “A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul Global”, entre outros livros.
**Ana Cláudia M. Cardoso Professora visitante no Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UFJF. Atualmente, realiza pesquisas com trabalhadores via plataformas digitais. Trabalhou no DIEESE como formadora sindical e como professora da Escola DIEESE.
(*) Engenheiro Mecânico pela EESC-USP, Especialista aposentado do Banco Central, diretor do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central e do Instituto Cultural Israelita Brasileiro, membro da direção estadual paulista do Partido Comunista do Brasil. Nascido no Bom Retiro, São Paulo, mora em Santos.