“A busca ativa e o rastreio tem que localizar os grupos e alojar para isolar. Arranjar locais nessas áreas de baixa renda para fazer a quarentena preventiva, se não tiver condição em casa”, disse o epidemiologista
O professor Eduardo Costa, epidemiologista da Fundação Osvaldo Cruz, e ex-secretário da Saúde do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola, afirmou, em live do movimento Cientistas Engajados, com o patologista e professor da USP, Paulo Saldiva, que o Brasil “entrou muito mal nessa epidemia, e não foi só em função do governo desastroso do Bolsonaro”. “A Saúde Pública mesmo não estava bem preparada”, avaliou.
“Nós adotamos algumas coisas de orelha naquele primeiro momento e acreditamos que tudo o que tinha que fazer era isolar as pessoas em casa. Estou chamando de isolamento geral indiscriminado. E pouca coisa a mais, a não ser cuidar dos leitos, foi feito neste período. Leitos para as pessoas que precisavam mesmo”, destacou. “Só que isso aí não resolve a questão da transmissão do vírus”, observou Costa. “O Brasil foi um dos cinco ou seis países do mundo que não fizeram busca ativa e rastreio. Ficou de braços cruzados. Desativou muito da atenção primária. Foi um desastre. É duro dizer isso. Fomos salvos, quem sabe, pela compaixão dos médicos e profissionais de saúde no atendimento aos casos graves. O que se precisava no sentido social é que não chegasse a ser grave, interromper a transmissão, diminuir essa coisa”, acrescentou.
“O Brasil desativou muito da atenção primária. Foi um desastre. É duro dizer isso. Fomos salvos, quem sabe, pela compaixão dos médicos e profissionais de saúde no atendimento aos casos graves”
O epidemiologista destacou que “o isolamento social indiscriminado, ele é discriminado. Por dois fatores. O primeiro é que só os ricos podem fazer um isolamento social adequado. Não dá para fazer isolamento social generalizado nas áreas das favelas e em outros lugares, áreas onde a concentração, não precisa estar na rua ou num campo de futebol, já é concentrado dentro da sua casa”. “Aqui no Rio tem algumas favelas, que eu cheguei a ver, que tem gente que aluga a cama, porque eles são vigilantes, usam a cama durante o dia e alugam a cama à noite”, contou. “Essa situação no país é de uma desigualdade total”, prosseguiu.
“E a outra coisa é que manteve algumas atividades econômicas que eram necessárias, para não haver uma brutal luta por alimento. Tinha que ter serviços essenciais funcionando, mas com precaução e não teve. Nenhuma atividade de controle sobre essas pessoas. Então, nós ficamos hospitalares, com informação precária do ponto de vista de diagnóstico, e acumulamos casos naturalmente nesse ambiente. Estamos acumulando aí mais de 60 mil mortos”, afirmou. “Há um projeto, claro que isso não tem uma consciência total, de extermínio de velhos e pobres. São ideias trabalhadas dentro desse neoliberalismo, ideias de abrir espaço aos negócios e diminuir o Estado”, denunciou Eduardo Costa.
“Há um projeto, claro que isso não tem uma consciência total, de extermínio de velhos e pobres”
“A epidemiologia tem um trabalho de base. O Brasil às vezes é muito modista. Os trabalhos iniciais dos chineses mostraram que eles usaram o que eu chamaria de epidemiologia clássica. Descreveram a doença, (em quem?, onde?), enfim, as coisas básicas. Depois, saber as idades, etc. Desenvolveram os métodos diagnósticos rapidamente, e isso foi muito importante. Mas, eles já estavam controlando a doença também com métodos que eram conhecidos, não teve nada de novo. Eles não fizeram um isolamento indiscriminado em todo o país. Não foi assim. Eles fizeram duas coisas. Primeiro, eles fecharam comercialmente o país porque eles estavam com esse problema de poder sair do país. As tensões de uma potência comercial são grandes. E controlaram o fluxo de turistas. Mas, confinamento mesmo foi lá em Wuhan”, explicou.
“Quando foi agora em Pequim, aplicaram a mesma estratégia, abafa onde está. Não adianta perseguir vírus onde ele não está. Ou seja, isolar gente que não tem o mínimo risco de adoecer. Portanto, eles estão menos mal, sem uma interrupção total da economia deles, apenas nas questões das trocas comerciais e tal. Eles supriram as cidades da periferia que precisavam. Eles fizeram coisas clássicas que é o controle dos casos e contatos. De onde vem um caso, eles iam fazer a visita, ver familiares, já que a transmissão é aérea. Eles faziam o isolamento, quase um confinamento dessas pessoas dentro de suas casas para não transmitirem para os outros. E foram bastante duros neste sentido. Quem está doente, quem está positivo não sai de casa. Se não for em casa, vai para um internato, para uma situação de isolamento. Eles conseguiram controlar assim. Não foi com isolamento social generalizado, como nós fizemos”, prosseguiu o especialista.
“De onde vem um caso, os chineses iam fazer a visita, ver familiares, já que a transmissão é aérea. Eles faziam o isolamento, quase um confinamento dessas pessoas dentro de suas casas para não transmitirem para os outros”
Costa lembrou que “a visão do distanciamento generalizado veio muito através do artigo que ficou mais famoso do Imperial College de Londres”. “Neil Ferguson estudou a gripe espanhola e viu que eles não tinham o que fazer a não ser o isolamento. Eles fizeram por períodos curtos e em cidades. Não era no país inteiro. Faziam isolamento onde estava rolando a coisa. O Brasil interpretou isso de uma maneira completamente equivocada. Deixou gente que não tinha risco nenhum fazer isolamento. Depois, quando chega, aí as pessoas não acreditam muito”, afirmou o professor.
“Não era para ser no país inteiro. Estava começando em São Paulo e Rio. Depois foi Manaus. Vieram de fora. Depois foi a disseminação dentro do país, porque os serviços continuaram a funcionar. Então, tinha que ter inteligência epidemiológica, controle. Essas questões indiscriminadas não funcionam. Nem em vacinação indiscriminada funciona. Você faz vacinação num país inteiro, terá gente que não será vacinada. Se fizer uma segunda rodada, continuarão essa pessoas a não serem vacinadas”, avaliou Costa.
“Tinha que ter inteligência epidemiológica, controle. Essas questões indiscriminadas não funcionam”
O epidemiologista explicou que “o rastreamento começa nos hospitais, onde há uma unidade de epidemiologia qualquer que vai informar um agente no local de onde o paciente vem, para ir lá e fazer o rastreamento dos contatos, de seus familiares, vai no local de trabalho e ver se alguém ali também adoeceu ou está assintomático”. “Fazer o isolamento deles. Rastreamento é isso. A partir de um caso, ver quem também tem. No máximo dez pessoas contactantes. É perfeitamente viável fazer isso em todo lugar numa epidemia como esta. A partir de quem chega no hospital”, apontou.
“Já a busca ativa”, continuou o epidemiologista, “é feita em setores que você sabe que estão expostos e não podem parar a exposição como nos serviços essenciais. Fazer em todos eles o teste, para poder identificar e, na verdade ciclicamente, para poder identificar a cada semana, dependendo do tipo de atividade. Nos profissionais de Saúde. Toda atividade hospitalar hoje é de risco, não só as especializadas em Covid-19. Os frigoríficos, na questão alimentar, no RS foi terrível o que aconteceu por lá. Começou a transmitir para outras cidades onde os trabalhadores moram. As doenças acompanham o homem em seus caminhos. Então a busca ativa tinha que se concentrar nesses grupos que não podem parar”.
“O Brasil cometeu erros. Um dos primeiros foi não notificar os casos. Vá para a casa. Intitularam imediatamente que a transmissão era comunitária. Isso queria dizer o seguinte: nada a fazer. Tem que esperar para ir para o hospital”.
“O Brasil cometeou erros. Um dos primeiros foi não notificar os casos. Vá para a casa”
“A proporção na transmissão é quase 40%. Pega doença de alguém que está doente com manifestação clara. Cerca de 43% são não verdadeiramente assintomáticos são aqueles que têm o vírus por uns três dias até evoluírem para os sintomas. Você fica com 83% que são facilmente identificáveis na cadeia e nos casos para você poder fazer o isolamento das pessoas. Os 17% restantes estão divididos em dois grupos. 9% são verdadeiramente assintomáticos e os 8% não se sabe como pegou. Pode ser por fômites, não é possível identificar. Então, para fazer o rastreamento não é difícil”, avaliou.
“A falta de EPI para os profissionais não tinha nada que ver com o que aconteceu na China. Todo o pessoal parlamentado. Não tem aquele profissional da periferia que fica com aquela mascarazinha. É um negócio muito cuidadoso. E as ambulâncias. É outra questão, o trajeto. A taxa de adoecimento deles, de positividade, foi igual a da comunidade. Eles se infectavam quando estavam fora hospital. Conseguiram fazer esse tipo de bloqueio. Agora, no Brasil, por exemplo, 35% do pessoal de enfermagem não recebeu equipamento nenhum de proteção, nem mesmo a mascarazinha. Treinamento quase nenhum. Aos poucos foi melhorando, mas ainda não está bom. Isto ajudou a disseminar”, acrescentou.
“No Brasil, por exemplo, 35% do pessoal de enfermagem não recebeu equipamento nenhum de proteção, nem mesmo a mascarazinha”
Costa destacou que o Brasil “é um país com pobreza, com miséria. A busca ativa tem que localizar os grupos e alojar para isolar. Arranjar locais nessas áreas de baixa renda para fazer a quarentena preventiva, se não tiver condição em casa. A assistência social voltada para isso precisa ir junto, também a defesa civil, que tem ótima penetração em comunidades, e no interior também. Você pode fazer um bom trabalho. Não teve plano. O Brasil entrou numa epidemia e não teve plano. Teve só propagandistas, tem que fazer isso, fazer aquilo”.
Ele chamou a atenção para o fato de que “a efetividade de um programa de busca ativa e rastreamento pode interromper a transmissão de uma doença que é só de um para três”. “Poucas doenças transmissíveis por via aérea têm tão baixa infectividade. A taxa de infectividade do sarampo é um para trinta. Uma pessoa com sarampo transmite para trinta outras pessoas”, observou.
“Trabalhei na campanha de erradicação da varíola. Ali aprendemos essa técnica que passou a ser chamada de vigilância epidemiológica. Descobrimos o seguinte. Se eu vacinar a Índia inteira, quando terminar de vacinar, já nasceram 5 milhões de crianças. E aí essas não estão imunizadas e estão dispersas. Só tem um jeito de fazer isso. É quando aparece o vírus, você ir lá onde ele está e cercar o local que são os bolsões remanescentes de uma vacinação inteira. E isso é o que tem que ser feito”.
Sobre a dúvida se ainda é o momento de fazer esse trabalho no Brasil, o professor Eduardo Costa foi enfático. “Ainda temos uma atenção primária que cobre 75% da população. É muita gente para fazer uma coisa simples que é visitar uma casa e dar algumas orientações. Esse é um trabalho simples que os médicos de pés descalços, que não era médicos, fariam em qualquer lugar e que fizeram no mundo e que fazem. Estão fazendo isso no mundo inteiro e no Brasil não está. O Brasil achou que é melhor deixar acontecer”, destacou.
“Ainda temos uma atenção primária que cobre 75% da população. É muita gente para fazer uma coisa simples que é visitar uma casa e dar algumas orientações”
Costa fez questão de salientar que “não é todo o Brasil que está sem fazer a vigilância, porque em vários lugares, principalmente no interior, estão fazendo a vigilância epidemiológica. A doença vai para o interior, quando o grande centro relaxa, ela volta de lá. Esse caminho pelo interior de São Paulo e do resto do Brasil, é fundamental. Fazer esse trabalho é decisivo para a manutenção ou não do vírus circulando”. “Não temos a vacina, mas foi isso o que funcionou já nessa pandemia. Coreia do Sul, quase todos os países asiáticos, esse foi o centro da questão. O Uruguai montou os vigilantes epidemiológicos e controlou a doença. Fechou as fronteiras e fez isso. A Argentina está lá embaixo fazendo a mesma coisa. Os países que não fizeram, se ferraram e querem continuar a não fazer”, afirmou.
“Não querem aprender com as lições de hoje. Temos que criar a corrente positiva. Assim como o médico não abre mão de seu paciente, nós epidemiologistas não podemos parar de trabalhar. Nós temos o dever ético de continuar usando esses instrumentos que nós conhecemos e sabemos que funciona. E, se não funcionar sempre, nós temos que fazer, porque nós não temos outra coisa para fazer”, disse Eduardo Costa.
“Nós epidemiologistas não podemos parar de trabalhar. Nós temos o dever ético de continuar usando esses instrumentos que nós conhecemos e sabemos que funciona”
Para ele, não preocupa a questão médica. “Porque o Brasil tem uma boa formação nessa área, apesar da desigualdade também dentro do SUS. Quando a economia é concentrada tudo o resto é desigual. O Brasil é o segundo país com maior concentração de renda do mundo. Só o Quatar é pior. O rendimento do 1% mais ricos é igual ao rendimento dos 28% mais pobres. O Quatar é 29%”. “Mas, mesmo assim, o SUS tem uma grande estrutura”, destacou.
Para o professor Eduardo é necessária uma carreira do SUS para manter a atenção de qualidade. “Hoje não tem carreira, os médicos trabalham em vários locais. Eles são fatores de contaminação, pulando de um hospital ao outro. Levam o vírus para casa”, disse o professor.
SÉRGIO CRUZ