“Nenhum país conseguirá controlar sua epidemia se não souber onde está o vírus”, orientou Tedros
O professor Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do maior estudo epidemiológico do coronavírus no Brasil, afirmou, nesta segunda-feira, em entrevista à BBC, que o maior erro do país “foi nunca ter tido uma política de testagem ampla e maciça”. “É um problema gravíssimo, porque essa política não é para contar quantos doentes temos, é para isolar os positivos e testar seus contatos. Isso o Brasil nunca fez”, observou o pesquisador.
O segundo erro, disse Hallal, “talvez seja inédito no mundo. Vários outros países também não testaram bem, mas não reabriram antes da curva estar caindo. Nenhum outro lugar fez algo tão equivocado. O Brasil parece que está desafiando o vírus, porque a gente reabre as cidades quando estamos no pico ou próximo do pico. Então, é óbvio que o vírus vai continuar infectando”.
O maior erro do país “foi nunca ter tido uma política de testagem ampla e maciça”. “É um problema gravíssimo, porque essa política não é para contar quantos doentes temos, é para isolar os positivos e testar seus contatos. Isso o Brasil nunca fez”, observou o reitor da UFPel
“Se a gente tivesse feito tudo certo, era para estarmos hoje reabrindo uma parte da região Norte, onde já passou o pior, e com planos bem avançados para começar a reabrir no Nordeste e no Sudeste, onde a pandemia está começando a diminuir. E estaríamos elaborando planos para o Sul e o Centro-Oeste, focando na assistência da população. Mas a gente basicamente reabriu todas as regiões ao mesmo tempo”, acrescentou Hallal.
As observações de Pedro Hallal estão em completa sintonia com o que pensa a Organização Mundial da Saúde (OMS). A entidade alertou na segunda-feira (20) que o mundo não precisa esperar por uma vacina contra a Covid-19 para conseguir conter a pandemia.
“Não precisamos esperar por uma vacina, podemos salvar vidas agora”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanon, afirmando que é urgente os países aplicarem a técnica do rastreamento dos contatos dos pacientes infectados pelo coronavírus. “Nenhum país conseguirá controlar sua epidemia se não souber onde está o vírus”, orientou Tedros. “O rastreamento de contatos é essencial para localizar e isolar casos, além de identificar e colocar em quarentena os seus contatos.”
O diretor de emergências da OMS, Michael Ryan, parabenizou os cientistas que estão testando vacinas em tempo recorde, entre elas a de Oxford e a da China/Butantan, mas alertou que ainda há um longo caminho até alcançarmos a vacina contra o coronavírus. “Este é um resultado positivo, mas novamente há um longo caminho a percorrer. Estes são os estudos da fase um, agora precisamos avançar para testes em larga escala no mundo real, mas é bom ver mais dados e mais produtos entrando nessa fase muito importante da descoberta de vacinas”, afirmou o diretor da OMS. “Mas são bons resultados. Damos parabéns aos nossos colegas”, complementou Ryan.
Os pesquisadores do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) fizeram testes para detectar anticorpos contra o coronavírus em 89.397 pessoas de 133 cidades de vários Estados e entrevistas para entender como o vírus afeta diferentes classes sociais e grupos étnicos. A investigação indica que o Brasil está longe de atingir a chamada imunidade de rebanho. Isso ocorre quando uma parcela grande o suficiente da população foi infectada naturalmente e desenvolveu uma defesa contra o vírus. A doença não consegue se espalhar, porque a maioria das pessoas é imune. Esse patamar é estimado por especialistas em torno de 60% a 70%.
A investigação indica que o Brasil está longe de atingir a chamada imunidade de rebanho
Diante disso, falar em atingir a imunidade de rebanho hoje é “quase uma piada”, diz o epidemiologista Pedro Hallal. “Mirar a imunidade de rebanho como uma política de saúde é uma ideia absurda, mal pensada e antiética”, diz Hallal. Um dos poucos países a buscar a imunidade de rebanho — e a abrir mão de medidas drásticas de isolamento social — foi a Suécia, citada pelo presidente Jair Bolsonaro, em maio, como exemplo a ser seguido. O Reino Unido cogitou seguir essa linha, mas as projeções de que isso levaria a milhares de mortes fizeram o governo recuar. Até agora, em comparação aos vizinhos nórdicos, a Suécia teve até sete vezes mais mortes e o declínio econômico foi equivalente ao de quem fechou comércios e escolas (já que habitantes evitaram circular nas ruas). Mas o número de mortes tem caído no país, o que reacendeu o debate sobre imunidade coletiva.
“Mirar a imunidade de rebanho como uma política de saúde é uma ideia absurda, mal pensada e antiética”, diz Hallal.
“A imunidade de rebanho é um conceito mais teórico do que prático nesta pandemia. Quando tiver uma doença que não mate ninguém ou não seja grave, talvez a gente possa falar de imunidade de rebanho. Mas, para essa pandemia, falar nisso é quase uma piada”, afirmou o reitor da UFPel.
“A imunidade de rebanho só acontece com uma vacina – que não existe – ou quando muita gente adquire naturalmente anticorpos. Se hoje já morreram mais de 76 mil pessoas, seria ético esperar contaminar 60% a 70% da população e deixar morrer quase 1 milhão para então atingir a imunidade de rebanho? É óbvio que não. A ideia de mirar a imunidade de rebanho como uma política de saúde é absurda, mal pensada e antiética”, prosseguiu o professor.
Exceto se algumas teorias que começaram a surgir nas últimas duas semanas estiverem certas. Elas falam da imunidade cruzada, que pessoas que tiveram exposição a outros coronavírus no passado não pegam Covid-19. Se isso se confirmar, será uma notícia espetacular, porque uma parcela das pessoas teria imunidade porque pegou Covid-19 e outra parcela teria imunidade porque já teve exposição a outros coronavírus. Seria mais possível chegar perto da imunidade de rebanho.
Mas isso ainda é muito incipiente. A gente precisa esperar um pouco mais para saber se a teoria da imunidade cruzada se confirma ou não. Ele falou também de alguns estudos que apontam que a imunidade de rebanho para a Covid-19 poderia ser atingida com percentuais bem menores, entre 10% e 43%. “Isso é tão recente quanto a teoria da imunidade cruzada. Todos nós torcemos para que se confirme, mas ainda não podemos ter certeza de que vai. É só uma teoria ainda”, disse.
O reitor da UFPel criticou a atuação do presidente Jair Bolsonaro durante e pandemia. “Talvez o presidente não tenha noção do impacto que ele tem. A maioria das pessoas votou no Bolsonaro. Quando ele fala que é só uma gripezinha, ele está dizendo para 50 milhões de brasileiros para não dar bola para esse problema. Essa postura negacionista teve uma influência, que se soma à falta de políticas claras de saúde e a termos um Ministério da Saúde em constante transição de comando. No momento em que o país mais precisa, não temos um ministro da Saúde”, afirmou.
“Talvez o presidente não tenha noção do impacto que ele tem”
Para o professor, a pesquisa sobre a pandemia foi muito importante. “Isso porque temos que conhecer o inimigo que queremos combater”, disse. “Temos uma doença desconhecida sobre a qual sabemos muito pouco, e as estatísticas oficiais representam só a ponta de um iceberg. Não tem como entender o todo com base nelas. Nossa pesquisa permite olhar a parte do iceberg que está submersa, que são a pessoas que não estão buscando o serviço de saúde, mas que também estão sendo infectadas e infectando outras pessoas”, destacou.
“Da nossa parte, temos o maior interesse em seguir com as pesquisas, mas parece que da parte do governo, não. Concluímos com sucesso as três fases que estavam previstas e apresentamos os resultados. No meio de uma pandemia, o normal seria prosseguir, mas o ministério silenciou sobre o assunto. Provavelmente, não há interesse em manter a pesquisa”, avaliou Hallal.
A BBC News Brasil informou que consultou o Ministério da Saúde e este informou à reportagem que tem interesse em continuar, mas que não sabe ainda se será com a UFPel. “Não temos problema nenhum com isso”, disse o reitor. “Só queremos que deixe de ser discurso e vire realidade. Apresentei os resultados da pesquisa há mais de 15 dias, e a resposta do ministério continua a mesma. Se o ministério, por questões ideológicas, não quer prosseguir com a gente, respeitamos, embora seja meio difícil de justificar. Porque já tem uma expertise montada, e somos o grupo de epidemiologia mais reconhecido do país. Mesmo assim, se o ministério quiser fazer com outro grupo, não há problema, mas que faça. Por enquanto, não houve nenhum avanço, e acho que essa resposta protocolar do governo vai se manter por algum tempo”, completou.











