CARLOS LOPES
O livro de Muniz Tavares, publicado em 1840, entre outras coisas, como nota o prefaciador de sua segunda edição (1884), o historiador paraibano Maximiano Lopes Machado, destrói a depreciação da Revolução de Pernambuco por Varnhagen – e também pelo conselheiro Pereira da Silva, na sua História da Fundação do Império Brasileiro. Continuação da edição anterior
Na época de sua assinatura, o tratado comercial de Portugal com a Inglaterra foi minuciosamente analisado, e denunciado, no “Correio Brasiliense”, por Hipólito José da Costa.
Depois de frisar que a tradução em português do tratado – o original fora escrito em inglês – continha várias incorreções, sempre em desfavor de Portugal, escreve Hipólito, em julho de 1810:
“… entrando um pouco mais no espírito, e disposições do tratado, reduzimos os defeitos que nele achamos:
“1º) à falta de reciprocidade, que tanto se pretende inculcar;
“2º) à superioridade de condição que os ingleses vão a gozar no Brasil, comparados os seus direitos com os de um natural do país, mesmo vivendo lá no Brasil;
“3º) à influência deste tratado, em retardar e impedir a prosperidade do nascente Império do Brasil;
“4º) à humilhação da dignidade nacional portuguesa, pelas confissões, e admissões, em que se compromete o caráter da nação” (cf. Correio Brasiliense, Vol. V, Nº 27, p. 189, grifo nosso).
Em seguida, Hipólito procede ao exame do tratado, artigo por artigo, a começar pelo seu caráter perpétuo, estabelecido no primeiro dispositivo. Três anos depois, respondendo a um jornal que defendera o tratado, foi ainda mais enfático:
“Desde que lançamos os olhos pela primeira vez naquele instrumento miserável, nos persuadimos da tendência, que tinha, não só a arruinar o comércio dos portugueses, mas a atacar as fontes da opulência da Nação”.
Ele vai, então, mirar no negociador português, o conde de Linhares:
“A situação deste ministro, em Londres, era então a mais favorável para negociar com o Ministério inglês; principalmente depois que se fez em Portugal o levantamento contra os franceses. Tinha o ministro português em Londres a casa sempre cheia de negociantes ingleses, que lhe pediam permissão para ir com suas mercancias ao Brasil; oficiais militares, que lhe requeriam ir servir na guerra em Portugal; cartas do Ministro de Estado [da Inglaterra], que lhe rogavam atendesse às representações do comércio quase arruinado e olhando para o Brasil como para sua última âncora da esperança.
“Agora que partido tirou o ministro português de todas estas vantagens?
“Encheu-se de vento; adquiriu um tom soberbo e desprezador de seus compatriotas, quando até então era uma triste figurinha; lançou as linhas ao péssimo tratado de comércio de onde lhe havia de provir o ser conde; (…) por mais extravagantes que fossem as proposições de Lord Strangford ao governo português, não podem os portugueses queixar-se dele, porque cumpria com o seu ofício; e quem é o culpado é o negociador português, que lhas concedeu”.
TERREMOTO
A crise e a explosão em Pernambuco mostrou como Hipólito estava certo.
O livro mais importante sobre a Revolução Pernambucana é “História da Revolução de Pernambuco em 1817”, escrito por um dos principais líderes revolucionários, Francisco Muniz Tavares, que, depois de quatro anos no cárcere, após a Revolução do Porto, foi deputado brasileiro às Cortes de Lisboa, e, após a Independência, deputado na Constituinte de 1823, deputado geral no 2º Império, vice-presidente de Pernambuco e membro do conselho de D. Pedro II.
Por toda a vida, Muniz Tavares, que era padre, foi um defensor da Revolução de 1817 (em “D. João VI no Brasil”, Oliveira Lima chamou a Revolução Pernambucana de 1817 de “revolução de padres” – nada menos que 51 padres estiveram entre os revolucionários).
O livro de Muniz Tavares, publicado em 1840, entre outras coisas, como nota o prefaciador de sua segunda edição (1884), o historiador paraibano Maximiano Lopes Machado, destrói a depreciação da Revolução de Pernambuco por Varnhagen – e também pelo conselheiro Pereira da Silva, na sua História da Fundação do Império Brasileiro (v. o tomo IV da obra de Pereira da Silva, Garnier, Rio, 1865, pp. 129-133 e 137-202).
No livro de Muniz Tavares encontra-se o melhor retrato de Antonio Carlos de Andrada durante a Revolução Pernambucana. Quando a revolução estourou, Antonio Carlos, ouvidor e corregedor em Olinda, estava no interior, procedendo à uma “correição” – uma visita de inspeção.
No dia 29 de março de 1817, ele escreveu a seu irmão mais novo, Martim Francisco:
“Martim – Já saberás a estas horas o sucesso de Pernambuco. No dia 6 do corrente, estando eu de correição, levantou Pernambuco a bandeira da independência e o conseguiu, tendo nisto grande parte a fraqueza do general Caetano Pinto. Fui chamado pelo novo governo e cheguei no dia 9, e tenho assistido à mor parte dos conselhos. Este sucesso tem sido muito aplaudido por todo o povo: eu tenho, porém, um grande desgosto com ele, que é o nos vermos separados, talvez para sempre. O destino assim o quer; que remédio! Particulares e autoridades, tudo tem reconhecido o novo governo, e a forma republicana. Participa à nossa mãe estas notícias; tem, porém, cuidado em tranquilizá-la a meu respeito. Tu bem sabes quanto jeito é preciso, para que estas novas a não acabem, visto a sua grande idade”
A essa carta, Antonio Carlos acrescentou um post-scriptum:
“P. S. Acabo de vir do conselho, assombrado de ver a imensa tropa que baixa do interior: há mais de 6.000 homens de tropa regular, o que com as milícias e ordenanças formará um exercito de 30.000. O sistema de administração da justiça está se reformando, as ouvidorias vão abaixo, eu… perdendo o meu lugar, além do risco de perder o ofício que tenho em S. Paulo. Sinto, mas tenho paciência. Dá-me notícias tuas.”
Quinze dias depois, Antonio Carlos escreveu ao seu irmão mais velho, José Bonifácio, que estava na Europa (José Bonifácio somente voltaria ao Brasil em 1819):
“Meu bom irmão e amigo.
“Tendo recebido a última carta tua em véspera de correição não respondi logo, guardando para quando viesse, mas como fui chamado antes de findar a correição agora o faço.
“… a sorte que é minha adversa, faz gorar todas as minhas ideias. Eis-me de novo sem meios certos de subsistência.
“A revolução de Pernambuco destruiu o meu lugar, e, isto tendo eu só um ano de ocupá-lo, e não tendo podido nesse tempo fazer mais do que desempenhar-me. Foi um sucesso assombroso: cinco ou seis homens destroem num instante um governo estabelecido e todas as autoridades se lhes sujeitam sem duvidar. Eu fui chamado pelo novo governo provisório e fui tratado com o maior respeito e distinção pedindo-se-me que tivesse assento entre eles, e assistisse às suas deliberações para os aconselhar, o que agora tenho feito. As tropas mostram zelo e todas têm jurado defender a causa da liberdade e não se sujeitarem mais ao poder real; se alguns ânimos vacilam, o geral é aferrado à nova ordem.
“Vai a ser convocada a assembleia constituinte e interinamente há um governo de cinco membros, e um conselho de governo. Foram destruídos os juízes de fora e ouvidores, e ficou tudo devolvido aos juízes ordinários, e para última instância a um colégio superior de justiça. Tem-se abolido alguns impostos dos mais onerosos, e trabalha-se muito em porem-se num pé de defesa respeitável.
“Eis-me, portanto, separado dos meus, visto os dous partidos em que nos achamos alistados, o que me custa.
“A lista civil tem sido mal paga, que é o mesmo que dizer-te que estou pobre.
“Adeus.
“Recomenda-me à tua família e recebe o coração de teu irmão e amigo,
“Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva.
Pernambuco, 14 de Abril de 1817.”
Diz o prefaciador da segunda edição do livro de Muniz Tavares, em sua excelente introdução, que Antonio Carlos “redigiu as leis orgânicas da república e constituiu-se (…) a mola real do governo”.
AÇÃO
Geralmente os historiadores consideram John Armitage, que viveu no Brasil entre 1828 e 1835 – quando escreveu sua História do Brasil – um autor bem informado. Provavelmente, têm razão, porque Armitage conheceu pessoalmente boa parte dos líderes políticos, e, por sua atividade comercial, parte importante da economia brasileira da época.
Diz Armitage, sobre o segundo irmão Andrada, que “foi preso como cúmplice, e mandado à Bahia, onde esteve encarcerado quatro anos, tempo que empregou em ensinar a alguns dos seus companheiros a retórica, línguas estrangeiras, e elementos de jurisprudência” (J. Armitage, História do Brasil, 2ª ed. bras., S. Paulo, 1914, p. 30).
Esse resumo é razoável, porém, muito incompleto.
Antonio Carlos foi autor da Constituição (“Lei Orgânica”) da Revolução de 1817. Na coleção da Biblioteca Nacional, encontra-se o seu ofício, enviando o projeto à Câmara de Olinda. Ele assina esse ofício como “O Patriota Ouvidor e Corregedor Antônio Carlos Ribeiro Andrada Machado e Silva” (cf. BN, Documentos Históricos, Revolução de 1817, vol. CIV, Rio, 1954, pp. 95-96).
Uma das testemunhas da Revolução Pernambucana de 1817, o francês Louis-François de Tollenare, depois de evocar os líderes do movimento, escreve:
“Estas oito personagens não manifestam, entretanto, nenhum mérito assaz transcendente, nem nada de muito próprio a fazer rodar com vigor o carro da revolução; só se excetua a atividade ardente do sr. Domingos José Martins. Todos, aliás, cedem perante o antigo ouvidor de Olinda, o sr. Antonio Carlos, hoje conselheiro de estado.
“Eis um personagem que alia a um espírito vasto, uma concepção viva, uma dialética sutil e persuasiva, um caráter firme e uma vontade determinada. Se o sr. Antonio Carlos fosse militar seria homem a assenhorear-se de todos os poderes da república. Tal qual é, a sua habilidade é ainda assaz grande para fazer sombra aos seus colegas”. Em nota, o autor acrescenta que “desenhei-lhe a fisionomia moral com cores demasiado pálidas” (cf. Tollenare, “Notas Dominicais 1816, 1817, 1818”, trad. Alfredo de Carvalho, 1905, p. 194).
Mais adiante, quando as tropas portuguesas avançavam em direção a Pernambuco, diz Tollenare: “Os Srs. Martins e Antonio Carlos são os únicos que mostram firmeza; todos os outros discursam, mas parecem muito desconcertados” (idem, p. 214).
PRISÃO
Em vários textos sobre a Revolução Pernambucana há referência à autoria de Antonio Carlos no documento-síntese do movimento, que tinha o longo título de “Preciso dos sucessos que tiveram lugar em Pernambuco, desde a faustíssima e gloriosíssima Revolução operada felizmente na Praça do Recife, aos seis do corrente mês de março, em que o generoso esforço de nossos bravos patriotas exterminou daquela parte do Brasil o monstro infernal da tirania real”.
Neste caso, porém, devido a peculiaridades de estilo, achamos mais justificada a conclusão de Nelson Werneck Sodré, de que esse documento é da autoria de José Luís de Mendonça (cf. Nelson Werneck Sodré, “História da Imprensa no Brasil”, 4ª ed., Mauad Editora, 1999, p. 37).
No trecho de Armitage que transcrevemos, porém, o que parece mais subestimado são as condições da prisão de Antonio Carlos. Nisso, um autor que não é simpático aos Andradas – nem à Revolução de 1817 – é mais exato quando, ao falar da saída dos Andradas do governo de Pedro I, lembra:
“Não podiam intimidá-lo [a Antonio Carlos] as vicissitudes da oposição, pois já tinha arrostado as mais horríveis, (…) onde o levara a cumplicidade na revolução de 1817. Aí propuseram-lhe suplicar perdão a El-Rei, ao que respondeu só dobrar o joelho diante de Deus. Ele guardava ainda muito viva a lembrança da afronta sofrida nas ruas do Recife, quando em mangas de camisa, quase descalço, passava algemado, insultado pela canalha, caminho da prisão, e sentia tocar-lhe o rosto um gato morto, arremessado por um caixeiro português. Poucos anos bastaram para fazê-lo esquecer ou perdoar o castigo imposto pelas autoridades do Rei e mantido pelo próprio Rei; mas ficou-lhe na alma o fel das injúrias, provindas dos que em sua pessoa insultavam a condição de brasileiro” (cf. Tobias Monteiro, “A Elaboração da Independência”, 2ª ed., Itatiaia, pp. 683-684).
Sobre a via-crúcis em Recife, existe uma testemunha que estava entre os presos – o padre Muniz Tavares:
“Dos Conselheiros [do governo revolucionário] o Desembargador Antonio Carlos foi o único que resolveu-se a acompanhar os que se retiravam, determinado a expor a vida pela causa, que com predileção abraçara. Os demais tinham-se ocultado em suas casas, uns esperando com estoicismo as afrontas, e a morte, outros meditando engenhoso subterfúgio para evitá-la” (cf. Muniz Tavares, op. cit., p. CCXLI).
“… O Pedroso, e José Mariano, tinham sido agarrados na fuga, e transportados à cadeia do Recife. O Desembargador Antonio Carlos, ou por aversão ao esconderijo, ou por desconfiança da fidelidade da pessoa, em cuja casa abrigara-se, voluntariamente tinha ido recolher-se à cadeia de Igarassu, donde o remeteram para a fortaleza das Cinco Pontas.
“A estes três indivíduos conjuntamente com o Padre Mestre Fr. Joaquim Caneca, contra os quais a raiva dos Realistas era mais acesa, em vez das cordas coube a distinção de pesada corrente de ferro ao pescoço.
“Com a cabeça descoberta aqueles quatro indivíduos precediam a marcha dos outros, que em fila caminhavam rodeados por um forte destacamento; (…). O pranto das esposas, dos filhos, dos parentes desses presos, era o canto de glória, que ouviram com deleite os promotores do espetáculo.
“Depois de correrem assim as principais ruas do Recife, chegaram ao brigue Mercúrio, destinado para transportá-los. Nesta embarcação estava ainda reservado para aqueles patriotas duríssimo tratamento. Foram todos encerrados no fundo do porão: grilhões aos pés substituíram as cordas, que nos braços traziam; uma gargalheira atando estreitamente o pescoço de cada um, com as duas pontas cravadas no pavimento, obrigava a todos a permanecerem deitados sem outro leito fora das alcatroadas tábuas do mesmo porão. Três sentinelas armadas de baionetas, e chibata, velavam continuamente, proibindo não só a comunicação da palavra, como o desafogo dos gemidos. A sede aumentada pela qualidade do alimento salgado, que era exclusivamente subministrado, não podia ser saciada senão por uma só medida d’água em todo o dia; como se aquelas três sentinelas não bastassem para a rigorosa vigilância, de hora em hora vinha um inspetor, que diligentemente examinava se os ferros tinham sido limados. O sono, refrigério dos aflitos, era de tal modo disputado por aqueles desumanos algozes. Leitor, aprende como são tratados os vassalos de um Rei absoluto” (idem, pp. 209-211).
O padre Muniz Tavares era um dos presos que desembarcaram em Salvador:
“Quando no Porto da Bahia deu fundo o brigue Mercúrio, os desapiedados guardas comunicaram essas notícias aos presos, que ali vinham, augurando-lhes igual sorte. Cada um assim pensou, e especialmente os quatro, que antes de embarcarem-se em Pernambuco tinham sido com distinção mais oprobriosa assinalados; um dentre estes, o Desembargador Antonio Carlos, sem perder a coragem, que lhe era congênita, voltou-se ao autor desta história, que lhe estava ao lado, e disse-lhe: ‘Amigo, os meus dias são contados; tomai este relógio de ouro: vós talvez tornareis à vossa pátria. Quando realizar-se essa fortuna, que cordialmente vos desejo, tratai de remetê-lo a meu irmão, o coronel Martim Francisco, dizendo-lhe que é tudo quanto me resta; que ele o receba, e conserve como penhor do extremoso amor que lhe consagro’.
“A hora do desembarque, e a condução dos presos à cadeia, foi conforme ao que antecedentemente tinha-se praticado com os primeiros desembarcados. (…) Muito mais duro tratamento foi reservado a Pedroso, José Mariano e Antonio Carlos: estes, logo que chegaram à cadeia, foram separados e metidos cada um em estreito segredo, um verdadeiro sepulcro, no qual não penetrava-se sem luz em todo o decurso do dia; e como se não bastasse um tal suplício para os privar da vida lentamente, os despiram dos vestidos, que sobre o corpo traziam, e inteiramente nus ali os deixaram com grilhões aos pés, e corrente ao pescoço. Aquela separação aumentou a consternação dos demais companheiros, que creram como certo serem os três separados conduzidos imediatamente ao patíbulo. Tudo era envolvido em mistério, tudo terror” (idem, 215-217).