“O Homem do Boulevard des Capucines”, obra soviética que o canal YouTube do CPC-Umes Filmes proporcionou no último fim de semana, é um filme sobre cinema.
Em geral (isto é, para a maioria dos espectadores), essa não é uma definição entusiasmante. Obras que têm como principal tema a própria obra não são, costumeiramente, um material apetitoso. Muitas vezes sugerem mais a falta do que dizer a respeito da realidade – isto é, da situação dos seres humanos – que alguma profunda reflexão sobre a própria arte (reflexão que, aliás, está implicitamente contida em qualquer obra de arte digna deste nome).
Parecem-se, assim, tais obras, com aqueles indivíduos que só conseguem falar de si mesmos – e são, por isso, muito tediosos.
Entretanto, o cinema tem uma particularidade. Um historiador ou crítico – talvez André Bazin, mas posso estar errado neste golpe de memória – lembrou, uma vez, que, no início, o que atraía os espectadores para o cinema era o próprio movimento das figuras na tela, e não a história (quando havia – e, muitas vezes, não havia) que esse movimento contava.
Por isso, o termo “lanterna mágica” – que é anterior ao “cinématographe” dos irmãos Lumière – tornou-se tão popular na Paris da década de 90 do século XIX, mesmo depois que, em 1895, no número 14 do Boulevard des Capucines, onde se localizava o Grand Café, foi projetado, em seu salão indiano, o primeiro filme com uma história ficcional.
De outro ângulo – ou provocando a reação oposta -, como essa fascinação pelo movimento permaneceu mesmo depois que os filmes já contavam, rotineiramente, uma história, a oposição ao cinema, por parte, sobretudo, de literatos, também teve o mesmo leitmotiv. São conhecidas as imprecações de Georges Duhamel, paladino da Academia de Letras francesa, contra o cinema, como uma diversão de pessoas vulgares e intelectualmente rasas.
Porém, mais interessante – porque não motivada pelo elitismo (aliás, vulgar e raso) da intelectualidade burguesa da França – é a observação de Franz Kafka a seu jovem amigo Gustav Janouch, segundo a qual, no cinema, o olho é dominado pela imagem, ao invés da visão humana dominar a imagem.
Kafka apontava, ao seu modo, uma forma de alienação, em que o ser – o sujeito – era dominado por um objeto externo a si próprio, como uma imposição de fora.
O problema é que a observação de Kafka – feita, meramente, de passagem, ao saber que o então quase adolescente Janouch gostava de ir ao cinema – não é sobre algo inerente aos filmes em geral, senão apenas sobre um modo de relação com a arte cinematográfica. Além disso, Kafka morreu em 1924. O desenvolvimento histórico do cinema – em especial, após a Revolução Russa – mostraria com nitidez que a relação com o cinema não era, obrigatoriamente, uma relação alienada.
O leitor pode achar que estamos tratando de coisas sem importância. Entretanto, basta ver o modo como alguns, não poucos, hoje, se relacionam com seus celulares, para perceber do que estamos falando. Somente, no caso do cinema, a ação de inúmeros artistas mostrou que os prognósticos mais pessimistas não eram justificados.
O FILME
“O Homem do Boulevard des Capucines” (ver a ficha técnica) é um filme – e uma comédia – sobre essas questões.
Espantosamente, talvez, o filme realizado por Alla Surikova foi o maior sucesso de bilheteria, na URSS, em 1987, atingindo mais de 60 milhões de espectadores.
Nessa época, a forma degenerada do “western” – aquele bang-bang que ficou conhecido por “spaghetti-western”, devido à sua origem italiana – já se tornara, há muito, uma praga.
O “spaghetti-western” é uma hipérbole do que existe de pior nos filmes de “faroeste” norte-americanos. Afinal, o “western” original tinha o John Ford de “No Tempo das Diligências” e “O Homem que Matou o Facínora”, tinha o Howard Hawks de “Rio Vermelho”, tinha o George Stevens de “Shane” (“Os Brutos Também Amam”), tinha o Henry King de “O Matador” ou o Fred Zinnemann de “High Noon” (“Matar ou Morrer”).
Já o “spaghetti-western” tem, no máximo, aquelas pastas sangrentas de Sérgio Leone – e isso é o que há de melhor nele…
Em “O Homem do Boulevard des Capucines”, Alla Surikova e seu roteirista, Eduard Akopov, satirizam essa alienação. Aliás, o primeiro comentário sobre ela é a própria língua na qual os “cowboys” falam: o russo. O sentimento de estranheza vem de que apenas a língua é estranha. O resto, poderia pertencer a qualquer “spaghetti-western” falado em inglês (já houve algum que fosse falado em italiano? Mas esse é outro elemento de alienação).
O curso do filme, aprofundando a sátira – onde os índios têm olhos verdes – revela-se, afinal, na missão civilizatória de “Mr. First” (Andrey Mironov) e seu cinema, que apaixona os cowboys – e a estrela do saloon (agora, saloon-cinema), “Diana Little” (Aleksandra Yakovleva-Aasmyae) -, enquanto a aparição de outro exibidor de filmes, “Mr. Second”, os devolve à selvageria.
O cinema, portanto, pode civilizar ou alienar. Depende do filme e da escolha dos exibidores.
Ou, mais exatamente, a feitura de um filme e sua exibição dependem do grau de civilização de realizadores e exibidores.
Mas é somente “Mr. First” – e não “Mr. Second” – quem assistiu às exibições dos Lumière no Boulevard des Capucines…
Coerente com isso, ele recusa a proposta final de “Black Jack” (Mikhail Boyarskiy) de partir para a ignorância, acabando selvagemente com o cinema selvagem de “Mr. Second”.
Não é assim, acha “Mr. First”, que a civilização pode prevalecer.
C.L.