Abaixo, reproduzimos o Capítulo XIV da biografia de Machado de Assis, de Lucia Miguel Pereira – Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico) -, publicada em 1936 pela Companhia Editora Nacional.
Este capítulo examina o início da segunda fase da obra de Machado, que tem como marco as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, publicadas a partir de 1880 (em livro, 1881).
Ao final de 1878, Machado entrou em grave crise de saúde – e, nas palavras de sua biógrafa, “desânimo”.
“… não melhorando, Machado viu-se obrigado a pedir em dezembro três meses de licença [na Secretaria de Agricultura, onde era funcionário].
“Saíram então do Rio, ele e Carolina, indo para Nova Friburgo, o lugar que sempre escolheram para descansar.
(…)
“Ia doente e abatido. Interrompia os hábitos de trabalho e de convivência intelectual.
“Um ano antes, por ocasião do falecimento de Alencar, havia combinado com Octaviano, Taunay e mais alguns, a fundação de um Centro Literário que teria por patrono o morto ilustre. Falhou a tentativa, mas o espírito associativo nem por isso diminuiu em Machado.
“As livrarias, as capelas literárias, os pequenos cenáculos eram o seu ambiente natural. Nunca concebera a existência sem o contato diário e forçado das cidades, sem o espetáculo da vida dos outros, sem as conversas, sem as novidades quotidianas.
“E, de repente, teve de se separar de tudo isso e se meter sozinho com Carolina, num lugarejo perdido nas montanhas.
“Como teria reagido à solidão o seu espírito deprimido pela moléstia?
“Esse retiro forçado parece ter sido de grande importância na sua vida. Entre Iaiá Garcia e as Memórias Póstumas de Brás Cubas, entre o romancista medíocre e o grande romancista, existiu apenas isso: seis meses de doença, de outubro de 1878 a março de 1879, três dos quais passados na roça.
(…)
“Três meses passaram eles em Nova Friburgo, três meses durante os quais se restabeleceu a saúde de Machado de Assis, e se robusteceu o seu talento de romancista, encontrando afinal o filão riquíssimo da sua verdadeira inspiração. Sem dúvida, a evolução já se vinha lentamente esboçando, mas a doença e o recolhimento a apressaram e a aprofundaram.
“Meses de meditação, de retiro, de sofrimento, mas também de doce intimidade de alma com Carolina, de descanso do corpo, de preparação para a grande fase da sua carreira” (cf. Lucia Miguel Pereira, Machado de Assis, Estudo Crítico e Biográfico, Nacional, S. Paulo, 1936, pp. 188-195).
É essa nova fase – que revela um romancista e um contista de gênio, dos maiores da história mundial da literatura – que a biógrafa aborda, no capítulo que agora oferecemos aos nossos leitores.
C.L.
O Criador
LUCIA MIGUEL PEREIRA
Oliveira Lima, que conheceu de perto Machado de Assis, diz que o Brás Cubas é uma “fotografia da sua alma”1. Talvez fosse mais preciso dizer espelho da sua visão do mundo.
A Mário de Alencar, que lhe perguntou um dia como, depois de ter escrito Helena, pôde ele escrever o Brás Cubas, explicou o romancista que se modificara porque perdera todas as ilusões sobre os homens2.
Depois da crise por que passou em 79, já não os via com os mesmos olhos, com os olhos afeitos ao aspecto convencional, mas com a visão interior, implacável e penetrante. Através das palavras polidas, via o sentimento egoísta ou cínico, através do sorriso a dureza do coração. O véu da hipocrisia rasgou-se diante dele. A sua vocação de romancista se realizava plenamente, a um tempo tormento e delícia. Tormento de não poder crer nas criaturas, de lhes perceber todos os cálculos, todas as espertezas, mas delícia, delícia suprema de apreciar o jogo dos sentimentos, de ver como nascem e morrem as paixões, de ser o espectador que aprecia a um tempo a plateia e os bastidores.
Desse tormento e dessa delícia nasceu o seu humorismo, fruto da simpatia humana aliada ao pendor crítico, da piedade jungida à lucidez, da ternura unida à inteligência. Ao lado do coração que se compadecia, o espírito que buscava explicações, que observava friamente as reações.
Muito mais do que a influência dos ingleses, foi esse dualismo, essa dissociação que levou Machado ao cultivo do humour.
Qualquer psicólogo, dotado de grande visão de conjunto, sem prejuízo da observação minuciosa e que não possua nenhuma inclinação mística cairá quase fatalmente no humorismo. Porque, observada em si mesma, a agitação humana tem uma aparência de inutilidade que a torna burlesca.
Foi essa sensação de falta de sentido da vida, aliada a um sentimento de compaixão pelos vãos esforços dos homens que fez de Machado de Assis o grande romancista e o grande humorista que se revelou no Brás Cubas.
A língua não teve nisso a menor influência; expressões humoristas, já as havia nos livros anteriores. Em Iaiá Garcia, falando de um homem que morrera sem testamento, e com isso pregara uma peça a um amigo, acrescenta: “Os aneurismas têm dessas perfídias inopináveis”.
No mesmo livro, uma senhora insiste com um viúvo para que se case. Este se escusava, dizendo que não — “Não tinha vocação para o casamento”.
— “Foi por isso que enviuvou?” indaga a interlocutora.
Em 1876 uma questão apaixonou a opinião pública: a da livre concorrência ou do monopólio no comércio da carne. Toda a imprensa a discutia gravemente, acaloradamente.
No meio de tudo isso Machado pensou no boi que “veio, estacou as pernas, agitou a cauda e olhou fixamente para a opinião publica… Vendo o boi a fitá-la, a opinião estremeceu; estremeceu e perguntou o que queria. Não tendo o boi o uso da palavra, olhou melancolicamente para a vaca; a vaca olhou para Minas, Minas olhou para o Paraná; o Paraná olhou para a sua questão de limites; a questão de limites olhou para o alvará de 1749, o alvará olhou para a opinião pública; a opinião olhou para o boi, o qual olhou para a vaca, a vaca olhou para Minas, e assim iríamos até a consumação dos séculos”3.
Não é preciso alongar os exemplos; por estes vê-se bem que Machado, antes do Brás Cubas, já possuía a técnica do humour — o gosto dos contrastes, o inesperado das situações, a capacidade de fixar a comédia humana. O que lhe faltava era a piedade pelos homens, uma piedade irônica e indulgente, que só mais tarde lhe veio, quando descobriu que a vida não tinha sentido.
Embora já dispusesse de recursos humoristas, não foi humorista na mocidade quando a ambição traçava um roteiro à sua existência, quando o contato com homens de ação o fez tentar o jornalismo político e a necessidade de ganhar o pão o mantinha numa atividade trepidante.
Depois que conseguiu subir, que a Secretaria lhe assegurou o sustento e a pacata vida familiar lhe permitiu maiores lazeres, viu talvez que a cousa não valia tantos esforços, e sobretudo, observando os outros, percebeu o vazio da agitação humana.
E então se fez humorista, e compôs o Brás Cubas, a história de um homem “que andou à roda da vida”, escrevendo-o, “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.
Também ele, como seu herói, era “um defunto autor, para quem a campa fora outro berço” porque nasceu das cinzas das ilusões perdidas.
Quem era, afinal, esse Brás Cubas?
O primeiro dos tipos mórbidos em que Machado extravasou as próprias esquisitices de nevropata.
Uma natureza complexa, cheia de contradições, ambicioso e retraído, vaidoso e displicente, apaixonado e indiferente. Sua alma “foi um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias”.
E ele, como que num desdobramento da personalidade, assistia a todas essas peças, via-se viver. E com isso gastou os seus dias todos, numa auto-análise dissolvente e empolgante.
Um introvertido completo, que o contato com a realidade machucava: “Creiam-me, o menos mau, é recordar; ninguém se fie na felicidade presente; há nela uma gota de baba de Caim”. Mas vingava-se da sua incapacidade para viver, mofando do mundo com “um prazer satânico”.
Sem dúvida eram, todas essas, sensações que Machado experimentava, mas embrionariamente, pois reagiu contra elas na vida, só as deixando espraiarem-se nos livros. É que em Machado, o espírito doentio era compensado pelo coração bem formado.
Em Brás Cubas, ao contrário, tudo foi contaminado.
O sadismo, que no romancista era um pendor puramente intelectual, foi reforçado no seu herói pela educação.
Narrando-lhe a primeira infância, Machado de Assis, tão acusado de se haver alheado aos grandes problemas do seu tempo, traçou sem digressões, sem palavras difíceis, a crítica da organização servil e familiar de então. Mostrou o mal que fez a escravidão a brancos e negros. Sem o moleque Prudêncio para lhe servir de cavalo, sem as pretas para alvos passivos das suas judiarias, sem os costumes relaxados que a promiscuidade das escravas com os sinhô-moços facilitavam, o Brás Cubas não teria sido o que foi.
A vaidade do menino foi também cultivada pela beata admiração dos pais. Tudo contribuiu para fazer dele um perfeito egoísta.
Brás Cubas foi o resultado do meio e da educação viciada agindo sobre um temperamento mórbido.
Quando se pôs rapaz, os sentidos o dominaram. Adolescente, a revelação do amor foi como “o primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor”.
Rico, de boa gente, teve todas as facilidades, todos os prazeres. E porque teve tudo, mas não se deixou empolgar por cousa alguma, cedo conheceu o tédio “esta flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro penetrante e sutil”.
O tédio, irmão do ceticismo, o tédio do herói e do autor é a personagem central do livro.
Nada conduz a nada. Para que viver? Mas então aparece uma volúpia nova: “A volúpia do aborrecimento”. E a falta de sentido da vida dá a vontade de se “debruçar sobre o abismo do Inexplicável”.
Nesse plano, Brás Cubas e Machado se confundem.
Os sucessos do livro vão se arrastando, vêm e passam sem significar cousa alguma. São casos fortuitos, meros episódios.
A própria Virgília, a Virgília de braços tentadores, podia não ter existido, e o seu amante seria o mesmo enfastiado e curioso Brás Cubas.
Tudo é secundário, o essencial é apenas essa interrogação: para que viver? E o prazer satânico de sentir a inanidade de tudo.
O homem é um joguete na mão do destino, não dirige os acontecimentos da sua existência. Tudo depende da oportunidade. Por que ter sido o Brás Cubas preterido pelo rival, em noivo, e amado por Virgília, depois de casada? Por que ter acabado pelo enfado o seu amor? Porque o homem não é uma unidade, mas “uma errata pensante” sempre a se modificar sem saber como nem para quê.
Caminhando às cegas, entre tantos mistérios que o cercam, só uma cousa lhe resta: a “afirmação desdenhosa da sua liberdade espiritual”, a capacidade de se rir com um riso gelado e irônico, do absurdo da vida.
É o que fazem Cubas e Machado, entre dois bocejos de tédio.
Colocam-se fora da vida, a analisá-la, a criticá-la com o “incomensurável desdém dos finados”.
Desdém que os leva a zombar do leitor, a parar de repente quando iam explicar melhor o seu ponto de vista, a “pagar-lhe com um piparote” quando não lhes percebe a intenção oculta.
Dizem e se desdizem, voltam atrás, falam por meias palavras, com cautelas de quem não quer contar a história toda, corrigem o que avançam pelas reticências, obrigam a ler nas entrelinhas, e riem silenciosamente o seu “riso filosófico, desinteressado, superior” imaginando o embaraço do leitor.
Algumas vezes, porém, numa figura secundária, Machado de Assis expõe sem rebuços a sua concepção da vida. Tal na de D. Plácida.
“Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando a missa, viu entrar a dama que devia ser sua colaboradora na vida de D. Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias nasceu D. Plácida. É de crer que D. Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores dos seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia”.
Brás Cubas descobre outro fim para a vida de D. Plácida: servir aos seus amores com Virgília, tomando conta da casa da Gamboa.
Mas esses amores tiveram algum sentido? Deram aos dois amantes alguns momentos de gozo, e desapareceram sem deixar maiores vestígios na vida de ambos.
Virgília nascera, sem dúvida, para ser bela um momento, trair o primeiro noivo com o futuro marido, e este com aquele, quase sem perceber o que fazia, num amoralismo ingênuo, e depois envelhecer e morrer como vivera, sem perceber que há, para catalogar as ações humanas, um código do bem e do mal.
E Brás Cubas? Este, se fizesse a seus pais a mesma pergunta de D. Plácida, ouviria certamente que viera ao mundo para judiar com os escravos, ser explorado por Marcela, fazer sofrer a pobre Eugênia, trair o marido de Virgília, fazer algumas reflexões cínicas sobre a vida, e retirar-se “tarde e aborrecido do espetáculo”.
Então para que haverem nascido? Para obedecerem a uma força “que não é somente a vida, mas também a morte”, a natureza implacável, cuja lei é o egoísmo.
Para ela, o indivíduo não vale nada, é um minuto apenas, minuto passageiro mas indispensável ao tempo eterno.
Faz surgir o homem para colaborar “na obra misteriosa com que entretém a necessidade da vida e a melancolia do desamparo”.
E, para prendê-lo ao seu destino, dá-lhe o amor da existência, mesmo miserável e a grande volúpia de tentar “decifrar a eternidade”.
Só isto resta ao homem, e mais um último bem, vingança suprema: a capacidade de se rir dos seus tormentos.
É o que fazem Brás Cubas e seu criador, procurando a comédia da existência cotidiana dentro da tragédia dos fins últimos, ridicularizando pela mesquinhez do fato diário essa vida de que a deusa monstruosa não o deixa dispor a seu contento.
Essa deidade, personificação da impassibilidade egoísta, da eterna surdez, da vontade imóvel é, afinal, Humanitas “o princípio universal, repartido e resumido em cada homem”.
O humanitismo é o ponto de contato entre as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Quincas Borba. O seu nome, que faz pensar numa troça com o positivismo, é mais um “piparote no leitor”.
Escondendo-se atrás dele, e da loucura do Quincas Borba, Machado pôs na teoria muito da sua concepção da vida. É o delírio transposto para o humorismo. Aliás, não é só o Quincas Borba que vai sair do Brás Cubas.
Muitos dos seus contos, dos seus melhores contos, estão em embrião nesse livro que é a chave da sua obra.
O Brás Cubas que, no delírio, vê o mundo com “olhar enfarado” mas implora mais um pouco de vida, é irmão do Ashverus de Viver! [conto do livro Várias Histórias, de 1896].
A Teoria do Medalhão [conto de Papéis Avulsos, de 1882] lá está: “Teme a obscuridade, Brás; foge do que é infinito; olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens”.
Também o relativismo amoral da Igreja do Diabo [conto de Histórias Sem Data, 1884] que transforma as virtudes em vícios pelo seu prolongamento excessivo, já se encontra nas Memórias Póstumas. “A avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit” diz o Brás Cubas sobre o seu cunhado Cotrim. Esse Cotrim, que apesar do defeito, fazia frequentes donativos sempre publicados na imprensa, foi nesse ponto o primeiro esboço daquele tipo tão vivo, tão real, que é Fulano.
A lei da equivalência das janelas que o Brás Cubas descobre, lei segundo a qual “o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, afim de que a moral possa arejar continuamente a consciência”, não é somente a aplicação da teoria das compensações de Alder, é, em parte, o gérmen daquela alma exterior do Espelho [de Papéis Avulsos, 1882], talvez o melhor conto de Machado.
O Brás Cubas, para se libertar de uma ideia fixa, da lembrança de uma ação má, pratica outra, que, sendo boa aos olhos do mundo, lhe restitua, com a confiança em si, o equilíbrio perdido.
O alferes do Espelho, naufragando numa crise de introversão, desamparado até da consciência de si mesmo, só se cura quando a farda, devolvendo-lhe ao espelho a imagem que o envaidecia, fá-lo como que se projetar fora de si mesmo, arejando o espírito pela visão do eu exterior.
Expressa de modo diverso, apenas indicada em Brás Cubas, admirável de profundidade no Espelho, a ideia é a mesma, ideia de quem costumava perder pé na introspecção: o homem precisa sair de si, pôr-se em contato com o mundo, ver-se em função deste para se manter em equilíbrio.
São frequentes, em Machado de Assis, no monólogo caprichoso que é o maior encanto dos seus livros, essas voltas ao mesmo tema; levava anos a trabalhar a mesma ideia, expondo-a de diversos modos, completando-a, aprofundando-a com aquela ânsia de perfeição que o deve ter atormentado, como atormentou a muitas das suas personagens4.
Mas o livro que mais semelhanças apresenta com as Memórias Póstumas de Brás Cubas e sob alguns aspectos o continua é o Quincas Borba, publicado onze anos depois, em 1891.
Entre os dois, escrevera um livro de contos, Páginas Recolhidas.
Mas, na verdade, não levara onze anos ruminando o Humanitismo, a ponte entre os dois romances.
Desde 1886 começara o Quincas Borba a aparecer na Estação; mas, ou falta de inspiração, ou falta de tempo, interrompeu-o diversas vezes. O livro saiu-lhe afinal, mastigado e repisado, em fins de 1891, cinco anos após ter sido iniciado, e, depois de concluí-lo, antes de o entregar ao Garnier, que o editou, fez-lhe ainda algumas alterações. Assim tão trabalhado, o romance, embora cheio de observações admiráveis, ficou um pouco frouxo, não manteve a altura do Brás Cubas.
Há outro motivo para o livro ter saído inferior ao precedente, não na observação, não nos tipos, não na linguagem, mas no ambiente, numa certa falta de nervo, de coesão: é não ter sido escrito na primeira pessoa. Machado, pouco colorido, pouco animador, tendo o seu ponto forte na vida interior, nos estados d’alma, nas sutilezas de psicologia, estava muito mais a gosto na narrativa direta.
Humanitas, o princípio e fim de tudo, que se manifesta melhor nos fortes, é aí a personagem principal. “Ao vencedor as batatas”. O vencedor foi primeiro Rubião, herdando a fortuna do Quincas Borba, e depois o Palha que enriquece à sua custa e o abandona, louco e pobre.
Há no livro duas figuras admiráveis, das melhores da galeria machadiana: Rubião e Sofia.
Sofia, com os seus braços esplêndidos, e seus “olhos convidativos e só convidativos” “era daquela casta de mulheres que o tempo, como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai polindo ao passar dos longos dias”. Também Machado, como o tempo, esculpe-lhe lentamente, amorosamente, a figura, acaricia-lhe o colo e os braços que o marido gostava de expor nos bailes “para mostrar aos outros as suas venturas particulares”.
Ela e Capitu são as mulheres mais mulheres dos romances de Machado.
A sua arte de se manter sempre à beira do adultério, sendo fiel ao marido, de alimentar a paixão do Rubião sem se comprometer, o episódio de Carlos Maria, são traços admiráveis de psicologia feminina.
Todo o convencionalismo e toda a sinuosidade do sexo se resumem nessa mulher que espalha pelo livro um ambiente de pecado – sem nunca ter pecado.
Em Rubião também Machado conseguiu um dos seus melhores tipos mórbidos. A sua loucura vai se desenhando aos poucos, e só quando, afinal, explode é que o leitor percebe já ter sido preparada por frases soltas, marcando nuanças quase imperceptíveis.
Muito antes de se confundir com Napoleão III, já o pobre Rubião vinha manifestando a sua tendência a criar um mundo imaginário onde se refugiasse. O amor por Sofia foi um destes. Logo de início, quando ainda a moça nem lhe percebera a inclinação, ele “sentia que não era inteiramente feliz; mas sentia também que não estava longe a felicidade completa. Recompunha de cabeça uns modos, uns olhos, uns requebros, sem explicação, a não ser esta, que ela o amava, e o amava muito”.
Também o desdobramento da personalidade vai se fazendo aos poucos, com um conhecimento perfeito da evolução mórbida. Antes do meio do livro, muito antes de manifestar a loucura já “o nosso amigo se desdobrava, sem público, diante de si mesmo”.
Aliás, essa arte das gradações quase imperceptíveis, do lento preparar de situações que vão armar-se mais tarde, é a grande arte de Machado de Assis como romancista. É a técnica da vida – e a sua técnica. Todos os seus livros se desenvolvem por assim dizer organicamente, crescem naturalmente, com a lógica caprichosa mas inexorável da vida.
Quaisquer que fossem as circunstâncias, o Brás Cubas daria um solitário, um esquisitão, o Rubião se arruinaria, Virgília seria amoral e Sofia faceira. Os acontecimentos, independentes da vontade do indivíduo, são, porém, condicionados pelo seu temperamento.
Entre essas duas fatalidades que se dão as mãos, a liberdade e a responsabilidade são quase letra morta. O homem influi sobre os sucessos, mas pelo que há nele de irracional, pelo que escapa à sua vontade.
A liberdade é toda interior – a liberdade de julgar, de se revoltar e de se rir.
Mas essa liberdade já é um penhor de grandeza. Aí o romancista contagiado pelo “pessimismo amarelo e enfezado”, atraído pela “voluptuosidade do nada” avesso ao misticismo, vai, por caminhos muito diversos, e para chegar a conclusões opostas, encontrar o jansenista Pascal. Apenas onde um vê um reflexo da origem divina, descobre o outro mais um mistério. Como Carlyle, Machado de Assis vê o homem vindo do mistério, marchando para o mistério, através do mistério. E o seu andar trôpego, de cego, no meio de tantas incógnitas, dá-lhe ao mesmo tempo vontade de rir e de chorar. É esse o seu modo de ser humorista.
E lhe dá também uma irresistível curiosidade de saber como se conduz nessa noite densa, como se sai nesse emaranhado de incógnitas. Daí lhe vem a sua atitude de analista frio, quase sádico.
Também ele, como muitas das suas criaturas, era um dissociado.
No Quincas Borba há um episódio que traduz o seu estado de espírito em face do sofrimento. O do preto que ia ser enforcado. Rubião metera-se no préstito que seguia o condenado, atraído e repelido pelo espetáculo. Mas a curiosidade foi mais forte, abafou a pena e assistiu à execução sem saber “que bicho era que lhe mordia as entranhas, nem que mãos de ferro lhe pegavam da alma e a retinham ali”.
Era o mesmo bicho que levava por vezes Machado de Assis a observar, com “uma crueldade fria, minuciosa, repisada”, as contrações de dor da alma humana, ou a lhe descobrir as misérias escondidas.
Não é esse, porém, o único passo confidencial do Quincas Borba. Muitos outros tem ele, e de natureza muito diversa. Nesse romance, como nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado parece ter-se comprazido em evocar as cenas da sua infância, em evocar os lugares onde ela se desenrolou.
Já estava bastante longínqua para lhe despertar saudades, para poder ser lembrada sem amargura.
NOTAS
1Machado de Assis et son oeuvre litéraire, conferência pronunciada na Sorbonne, na Festa da Intelectualidade Brasileira, em honra de Machado de Assis, a 8 de Abril de 1909.
2 Frase que me foi repetida pela Viúva Mário de Alencar.
3A Ilustração Brasileira, 1 de Outubro de 1870.
4Também nessa constância das ideias haverá, em Machado de Assis, traços do temperamento gliscroide.
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