O projeto de lei enviado pelo governo de São Paulo à Assembleia Legislativa do Estado (Alesp) na última quinta-feira (13), que prevê a extinção de 11 estatais paulistas e mudanças no orçamento das universidades e institutos de pesquisa é alvo de duras críticas da comunidade científica.
Sob o argumento de enfrentar o déficit orçamentário causado pelo combate à pandemia de coronavírus, o projeto de lei PL 529/2020, idealizado pela equipe de Henrique Meirelles, secretário da Fazenda estadual, prevê uma série de “medidas voltadas ao ajuste fiscal”; entre elas, algumas que afetam diretamente as universidades públicas paulistas USP, Unicamp e Unesp e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O projeto de lei tramita em regime de urgência na Alesp, o que significa que poderá ser levado à votação já nas próximas sessões. Parlamentares ainda podem apresentar emendas para alterar o texto.
AUTONOMIA
Para Mariana Moura, fundadora do movimento Cientistas Engajados, o regime de urgência não permite a discussão necessária para esta proposta. O grupo enviou uma carta ao governador solicitando a retirada da urgência do projeto.
“Nós solicitamos ao governador que retire a urgência do projeto de lei. Que sejam retirados do projeto os capítulos referentes às universidades, às autarquias, aos institutos, às empresas públicas e pontos referentes ao atendimento de saúde dos servidores públicos do estado de São Paulo”, disse Mariana Moura.
Ela relembra que João Doria ganhou destaque no combate à pandemia de coronavírus por se contrapor ao governo Bolsonaro e defender a ciência. E este projeto se opõe ao praticado pelo governo paulista no último período.
“Os Cientistas Engajados escreveram uma carta ao governador João Doria lembrando o esforço que ele fez durante o início da pandemia para se diferenciar do governo federal em relação à ciência e utilizá-la para combater a Covid. Ressaltamos que esse projeto de lei é um atinge a capacidade de financiamento e autonomia das universidades estaduais paulistas e da Fapesp”, disse Mariana Moura em entrevista à Hora do Povo.
Mariana ressalta que as universidades estaduais, além da Fapesp, são referências internacionais de pesquisa, desenvolvimento e investimento na ciência e tecnologia. “As universidades foram e são responsáveis pelo desenvolvimento do estado, assim como os institutos de pesquisa. Essas instituições tornaram o estado referência internacional em pesquisa”, disse.
“Precisamos garantir o financiamento para o desenvolvimento científico e tecnológico do nosso estado”, completa a cientista.
Veja a carta dos Cientistas Engajados ao governador João Doria:
Exmo. Governador João Doria,
Tomamos conhecimento do envio do Projeto de Lei nº 529/2020 para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo que, em caráter de urgência, diz pretender o equilíbrio das contas públicas com efeito já no corrente ano de 2020.
Entendemos que os investimentos necessários para lidar não só com o controle do espalhamento do SARS-Cov2 quanto com a crise econômica, que piorou devido à Pandemia, ficaram em sua maior parte sob responsabilidade dos Estados e municípios. Entendemos ainda que serão necessários investimentos ainda maiores no próximo período e que não será possível contar com o governo federal, presidido por um indivíduo que rejeita a Ciência e os cientistas no momento em que a população mais precisa de nós. O governo de São Paulo, no entanto, buscou desde o começo seguir as orientações dos cientistas demonstrando querer afastar-se do obscurantismo que tomou conta da Presidência da República.
Com esta compreensão, gostaríamos de apontar que o PL 529 contém um conjunto de providências relacionadas à gestão pública do Estado que, na nossa opinião, trarão mais problemas do que soluções. Especialmente no que diz respeito à infraestrutura de Assistência Social e de Ciência e Tecnologia.
Ao propor retirar das Universidades Estaduais (USP, UNESP e Unicamp) e da FAPESP recursos que servem para garantir a estabilidade do financiamento à pesquisa, o Secretário da Fazenda e de Planejamento, Henrique Meirelles, ataca não apenas a autonomia financeira conquistada há muito por estas instituições mas, também a capacidade do Estado de reagir à crise sanitária e econômica. Não é segredo que as Universidades, com apoio da FAPESP, responderam e estão respondendo heroicamente às demandas da sociedade paulista e brasileira no que diz respeito à luta contra a Covid-19. Mas, a longo prazo, estas instituições foram, são e podem ser ainda mais o motor do desenvolvimento econômico do nosso Estado. A pesquisa desenvolvida nestas instituições no campo da BioEnergia, Medicina, Odontologia, Agricultura e outras áreas faz com que São Paulo seja referência na América Latina e seja mundialmente competitivo em termos de inovação e produção científica. Retirar delas a capacidade de financiamento é um erro estratégico.
O mesmo raciocínio aplica-se aos institutos de pesquisa afetados pelo Projeto de Lei. A extinção do Instituto Florestal, da Fundação Parque Zoológico, da Superintendência de Controle de Endemias, do Instituto de Medicina Social e Criminologia, do Instituto de Terras, da Fundação para o Remédio Popular, da FOSP, da CDHU e da EMTU, retiram a capacidade do Estado de planejar e de atender a população, assim como a fusão dos Institutos Geológico e de Botânica.
Outro equívoco do Projeto é defender que, em um momento em que deveríamos nos preocupar em aumentar a cobertura verde dos centros urbanos para garantir não apenas conforto térmico à nossa população mas combater apropriadamente enchentes, secas, poluição e baixa umidade do ar, entregar nossos parques ao setor privado seja solução para manter o equilíbrio orçamentário. Certamente que seria necessário um aprofundado estudo de custo-benefício para concluir isso que não tem como ser realizado em apenas um mês, tempo solicitado pelo governo de São Paulo aos deputados estaduais para aprovação do PL. São medidas permanentes que não cabem para enfrentar o problema transitório da pandemia.
Por esses motivos, Senhor Governador, e confiantes de que os outros dispositivos poderão dar conta da necessidade apontada no Caput do Projeto, solicitamos que sejam retirados os Capítulos I, II, V e XII do texto do projeto.
Atenciosamente,
Cientistas Engajados
Para ver a íntegra dos cientistas que assinam a carta:
Superávit Financeiro
Segundo o PL, “o superávit financeiro apurado, em balanço patrimonial das autarquias, inclusive as de regime especial, e das fundações, será transferido ao final de cada exercício à Conta Única do Tesouro Estadual (…), para o pagamento de aposentadoria e pensões”. A determinação, se aprovada dessa forma, implicará no recolhimento de todas as reservas financeiras das três universidades e da Fapesp, já a partir deste ano.
O “superávit financeiro” refere-se a recursos repassados pelo Estado, mas não gastos pelas instituições. As universidades recebem uma parcela fixa mensal da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) – 5,0295% para a USP, 2,1958% para Unicamp e 2,3447% para a Unesp – para custear suas atividades, e têm autonomia legal (estabelecida pelo Decreto 29.598, de 1989) para administrar esse dinheiro. Além disso, possuem algumas receitas próprias, geradas por investimentos e prestação de serviços.
O mesmo se aplica à Fapesp, que recebe 1% da receita tributária do Estado e fechou 2019 com um superávit de R$ 570 milhões. O Conselho Superior da fundação deve discutir o projeto de lei na sua próxima reunião, marcada para quarta-feira, 19 de agosto.
Prejuízos irreparáveis
A Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) afirmou em nota que a aprovação do PL “irá causar prejuízos irreparáveis a todas as atividades científicas do Estado de São Paulo”.
“Os fundos da Fapesp não constituem superávit, mas sim reservas financeiras para projetos de pesquisa científica em andamento que, pela sua natureza, são de longa duração, ultrapassando o ano de exercício”, diz o texto da Aciesp, que ressalta, ainda, as importantes contribuições que a ciência paulista tem dado para o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.
“Cientistas das universidades públicas e com apoio da Fapesp têm atuado de maneira permanente e contundente para lidar com os desafios dos tempos atuais, incluindo a primeira identificação e sequenciamento do novo coronavírus no País, desenvolvimento e produção de respiradores de baixo custo, pesquisas de testes de diagnósticos e de novas alternativas terapêuticas, entre muitos outros progressos significativos”, aponta a entidade
Para tentar impedir a destinação dos recursos da Fapesp e de universidades estaduais para outros fins, professores e pesquisadores organizam um abaixo-assinado contra a proposta do governador. Além da reação da Aciesp, 84 pesquisadores assinaram o manifesto.
“Não existe isso (de recursos sobrando para destinar a outros fins). Não há sobra ou superávit para ser devolvido no final do ano. As bolsas para trabalho de estudante, por exemplo, são aprovadas em longo prazo, os projetos não são financiados mês a mês”, disse o pesquisador Paulo Artaxo, vice-presidente da Aciesp. “A medida vai gerar um prejuízo de R$ 1 bilhão no orçamento da USP, da Unesp e da Unicamp”, afirmou.
“A comunidade científica está extremamente preocupada com as consequências dessa medida. Fomos nós que desenvolvemos o novo teste rápido de saliva para Covid. Há projetos sobre as vacinas em andamento. Não tem como paralisar tudo”, assinala o médico Jorge Kalil, responsável pela pesquisa sobre o coronavírus no Brasil.
Extinção
O PL do ‘ajuste fiscal’ também prevê a extinção ou fusão de diversas autarquias, fundações e institutos, como a Fundação Remédio Popular, a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo S.A. (EMTU), a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU), a Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), o Instituto Florestal e a Fundação Parque Zoológico, entre outras, além das concessões de parques, como o Villa Lobos, aumento de impostos e o corte de postos de trabalho no serviço público.
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