Após a Câmara dos Deputados aprovar, na última quinta-feira (13), o requerimento de urgência para projeto de lei que muda o pagamento de direitos autorais (PL 3968/1997), diversos protestos contra a medida ecoaram no país. A classe artística brasileira, deputados e entidades do setor se manifestaram contra o projeto.
O PL em questão volta a debater a cobrança de direitos autorais nos quartos de hotel no Brasil. No atual modelo, os recursos são recolhidos pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), que faz o repasse aos autores e compositores.
A alteração nas regras dos direitos autorais estava dentro de uma medida provisória para ajudar o setor de turismo durante a pandemia, mas, após ampla mobilização da classe artística, com a decisiva participação da cantora Anitta, foi excluída pelo relator, para tratada em um projeto de lei à parte, depois da pandemia. (v. Camarada Anitta tonifica a frente ampla da Cultura)
Agora, deputados desenterram um projeto de lei que vagueia pela Câmara desde 1997 e, por iniciativa do deputado federal Newton Cardoso Júnior (MDB-MG), aprovaram um pedido de urgência, impedindo a possibilidade de analisar o tema sem um debate mais aprofundado nas comissões de mérito, que não estão funcionando por conta das medidas de distanciamento social. Com o projeto em regime de urgência, querem impedir a arrecadação dos direitos dos autores sobre as suas obras sem nem mesmo ouvir a classe artística brasileira.
JURISPRUDÊNCIA
A cobrança de direitos autorais nos quartos de hotel é prevista em todo o mundo, inclusive no Brasil, mas por aqui ela continua sendo atacada por deputados inescrupulosos que ignoram, inclusive, a vasta jurisprudência de tribunais superiores a favor dos autores, compositores e artistas, tendo como base para tais decisões a Constituição Federal.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no começo da década de 1990, na Súmula 63 já havia consolidado o entendimento de que: “São devidos direitos autorais pela retransmissão radiofônica de músicas em estabelecimentos comerciais”. Ao longo do tempo, o referido entendimento foi estendido e consolidado para a cobrança nos hotéis pela reprodução de conteúdos audiovisuais e aplicado a todas as suas áreas, comuns ou privativas.
Foi então que os empresários do setor hoteleiro começaram a se levantar contra a cobrança nos quartos, sob o argumento de que eles seriam locais privados, ou até mesmo domiciliares, e que por isso não deveriam pagar direitos autorais pelas obras executadas em seus interiores.
Mas o fato é que a permanência de um hóspede num quarto de hotel e similares é por natureza transitória. Ou seja, o hóspede não reside no hotel e ali não tem seu domicílio, portanto, um quarto de hotel não equivale a uma residência
A temporariedade e a falta de constância impedem que um quarto de hotel seja rotulado como extensão do lar. Caso fosse, assim também deveria ser considerado o restaurante do estabelecimento, como se fosse uma extensão da cozinha e da sala de jantar da residência do hóspede, o que seria uma outra grande aberração.
Se houvesse algum sentido nesta argumentação, seria razoável também que ambientes como banheiros não coligados aos quartos, locais tão ou mais reservados e invioláveis do que os próprios dormitórios, então deveriam também ser isentos do pagamento de direito autoral.
Esse discurso dos empresários não obteve êxito na Justiça.
Em 2016, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 996.975 (Rel. Min. Raul Araújo, Segunda Seção), o STJ concluiu a questão ao afirmar que: “a disponibilidade de rádio e televisão em quartos de hotel é fato gerador de arrecadação de direitos autorais”.
Mesmo assim, os deputados agindo em prol do setor hoteleiro, insistindo em não pagar o que a Lei lhes obrigava, continuaram a torpedear os direitos dos artistas, o que levou o STJ a uma nova manifestação em virtude de um Recurso Especial (1.589.598, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, publicado em 22.06.2017), que consolidou a tese em termos ainda mais claros: “A simples disponibilização de aparelhos radiofônicos e televisores em quartos de hotéis, motéis, clínicas e hospitais autoriza a cobrança, pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), dos direitos autorais de todos os titulares filiados às associações que o integram”.
Mesmo assim, os deputados anti-cultura não desistiram e, no final do ano passado, introduziram na MP 907/2019 a proposta de “isenção do pagamento de direitos autorais das músicas tocadas em quartos de hotéis e camarotes de navios”. A classe artística, a opinião pública e até o Poder Judiciário (o Conselho Federal da OAB chegou a entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade) reagiram e o ataque foi retirada da MP 907.
Mas posteriormente, o tema foi inserido na MP 948, que dispunha sobre o cancelamento de reservas em hotéis e viagens em decorrência da pandemia de coronavírus. O deputado Felipe Carreras (PSB-PE) aproveitou a pandemia de Covid-19 para retomar a medida, com um teor ainda mais nocivo aos direitos autorais, pois visava isentar de pagamento uma ampla gama de atividades e eventos artístico-culturais, praticamente liquidando a existência do Direito de Autor no Brasil. Após uma discussão com a cantora Anitta, que convidou o deputado a debater o tema em uma live nas redes sociais, Carreras aceitou retirar o destaque na MP 948.
Depois de tantas vitórias, os lobistas do setor hoteleiro não cansaram e com ajuda de alguns deputados, ressuscitaram o PL 3.968, que “isenta os órgãos públicos e as entidades filantrópicas do pagamento de direitos autorais pelo uso de obras musicais e lítero-musicais em eventos por eles promovidos”. O projeto que dormia na Câmara desde 1997 e ao qual estão apensados outros 56 (cinquenta e seis) projetos contra os direitos autorais, há 23 anos.
No PL 3.968, foi inserida também a proposta de isenção autoral dos quartos de hotel e outros absurdos e nele que a Câmara Federal aprovou URGÊNCIA para votação, o que pode acontecer nas próximas semanas.
Ataque aos direitos autorais é um crime lesa-cultura, condena o maestro Marcus Vinícius
Para o maestro e compositor Marcus Vinícius, os deputados estão claramente agindo para beneficiar as mega empresas do setor hoteleiro, em detrimento de diversos profissionais que tiram da arte o seu sustento. Segundo ele, se os deputados insistirem no ataque aos direitos autorais conquistados e consolidados no Brasil, com a inclusão legislativa de texto, acima de tudo, anticonstitucional, a classe artística levará a questão às últimas consequências, a levará para ser avaliada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Abaixo reproduzimos entrevista da Hora do Povo com o maestro e compositor Marcus Vinicius:
A Câmara aprovou na noite de quinta-feira o pedido de urgência para a votação de projetos de lei que atacam diretamente a arrecadação de direitos autorais dos artistas brasileiros. Um deles, o Projeto de Lei 3.968, é de 1997. É justo deputados trancarem a pauta do Congresso com um projeto requentado de 1997 em meio a esta pandemia que ceifou 105 mil vidas?
Marcus Vinícius: Claro que não é justo, nem decente. Tratar de questões de interesse próprio e trancar a pauta do Congresso em meio ao luto nacional chega a ser uma ofensa, pela qual esses parlamentares deveriam pagar. Aliás, vão pagar. As eleições vêm aí e o povo e a opinião pública estão atentos para o crime de lesa-cultura que eles estão cometendo.
Quais as ameaças que constam neste projeto?
Marcus Vinícius: Muitas. Primeiro, podem acabar o que hoje é o único meio de remuneração e sustento de muitos profissionais que não aparecem nos palcos nem frequentam a grande mídia, os quais serão impactados, juntamente com suas famílias. Em tempo de pandemia, isso é absolutamente trágico. Depois, afetarão o mercado musical como um todo, que ficará bastante desestruturado sem a circulação dos recursos financeiros habituais à área.
Fora isso, se esse projeto for aprovado, o Brasil estará indo na contramão do mundo e descumprindo regras de reciprocidade autoral estabelecidas em Tratados e Convenções internacionais firmados há muito por nosso país, o que poderá ensejar retaliações de natureza econômica, inclusive no âmbito do Acordo TRIPS, que regula as relações comerciais internacionais, inclusive sobre Direitos de Autor.
Se o Brasil não proteger economicamente o repertório cultural estrangeiro aqui utilizado, nosso repertório nacional também ficará desprotegido no mundo e isso significará que deixaremos de receber nossos direitos gerados no Exterior. Além do mais, em busca da sobrevivência em meio à crise, muitos artistas certamente sofrerão a exploração dos cachês irrisórios e das condições vergonhosas de trabalho, impostas por maus empresários, que outros não são senão os que recusam pagar os direitos autorais, amparados em leis vergonhosas que ajudaram a fazer.
Por fim, a cultura se empobrecerá com o rebaixamento do nível dos espetáculos e produções. A excelência cultural brasileira poderá correr sérios riscos por inanição de recursos. Os criadores vão empobrecer, em todos os aspectos. O Brasil vai empobrecer. Lástima.
Novamente vemos os mesmos deputados atuando contra a classe artística. Dentre eles, o deputado federal Felipe Carreras, que foi coautor do requerimento de urgência, que tentou incluir o fim da arrecadação de direitos em uma MP que aborda questões sobre a pandemia de coronavírus. Qual interesse destes deputados?
Marcus Vinícius: Não posso saber quais sejam, pois não conheço tais pessoas, não convivo com elas e não tenho como vislumbrar o que elas pretendem, além de ostentar certa ignorância arrogante. Para saber de seus interesses talvez fosse melhor consultar um colega desses parlamentares, o velho Deputado Justo Veríssimo, conhecido de todo o país e imortalizado pelo grande Chico Anysio. Possivelmente ele saberia dizer.
Quais as iniciativas da classe artística a partir de agora?
Marcus Vinícius: A classe vem se mobilizando intensamente contra o PL 3.968 e vai continuar a fazê-lo. Além de realizar uma campanha publicitária com peças e vídeos, encaminhamos à Câmara dos Deputados uma carta de protesto, assinada por uma verdadeira frente ampla de criadores e produtores de cultura, que inclui desde produtores de videogames, entidades de gestão coletiva de direitos autorais, associações de classe e representações de cineastas, escritores, roteiristas, artistas plásticos, etc., até instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Fundação Roberto Marinho, a CISAC (Confederação Internacional de Autores), o ECAD, a Associação Nacional de Jornais, a ANER (Editores de Revistas), a ABTA (TVs por assinatura), a Motion Picture das Américas e muitas outras. Em outro documento, também anexado, a FREEMUSICA (Frente Parlamentar Suprapartidária em Defesa da Indústria da Música) solidariza-se com nossa campanha, provando que o PL 3.968 não encontra unanimidade na própria Câmara Federal.
Verifique-se que os signatários da carta integram um conjunto expressivo de instituições culturais e políticas, às quais se somam importantes organizações de comunicação e mídia. É lamentável e preocupante que a Câmara Federal, apenas para abrigar os interesses particulares de alguns de seus deputados, possa desconsiderar (e até mesmo afrontar) as fundadas ponderações jurídicas apresentadas pela unanimidade das entidades signatárias da carta, o que pode gerar novos e sérios danos à imagem do Legislativo perante a sociedade brasileira.
Teremos agora de partir para o embate legislativo, buscando os parlamentares alinhados à cultura e à defesa dos interesses da sociedade brasileira para conseguir derrotar, quando da votação do mérito, este malsinado PL 3.968. Além de reagir aos sérios danos econômicos e jurídicos que este projeto pode ensejar, caso aprovado, temos a obrigação cívica de combater, mais que tudo, a afronta constitucional nele contida, quando investe abertamente contra as disposições do Art. 5°, inciso XXVII da Carta Magna, que reza:
“Aos autores PERTENCE o direito EXCLUSIVO de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;“
Sendo essa uma cláusula pétrea inserida no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais da Cidadania, não há como aceitar que os direitos de autores e artistas, que são privados e exclusivos, possam ser suprimidos e/ou disponibilizados por decisão de outros que não seus titulares, como pretende o nefasto PL 3.968. Assim, o pertencimento, a posse e o exercício dos direitos de autores e artistas, por não serem bens públicos, não podem vir a ser objeto de lei comum que contrarie o princípio expresso no dispositivo constitucional acima citado. Daí decorre a flagrante inconstitucionalidade do PL em causa, que simplesmente expropria, dos autores e artistas, o direito de dispor e estabelecer condições para a utilização de suas obras e criações, inclusive podendo fixar-lhes preço ou isentá-las de pagamento, caso desejem.
Muito se diz que esta matéria exige maior diálogo entre as partes. Nós, criadores, jamais recusamos dialogar com todos os que se dispõem a pactuar regras e condições civilizadas para que a arte e a cultura floresçam em benefício do povo e da nação. Sempre fizemos isso e sempre o faremos. No entanto, há certos diálogos indesejados e inaceitáveis, como o da corda com o pescoço. Não há sentido em dialogar com quem quer expropriar nossos direitos, ferindo cláusulas pétreas da Constituição, que, como o próprio nome diz, são pedras, estão cristalizadas e são inalteráveis. Sobre elas e sobretudo contra elas, nada há que dialogar.
O constituinte de 1988 assim o quis expressamente, tanto que deixou patente a imutabilidade dessas cláusulas, distinguindo-as das outras. Se transigirmos quanto a essas garantias e princípios pétreos da Constituição, logo estaremos aceitando também o fim da liberdade de expressão, o direito à livre organização, etc.
Por essas e outras razões, nós, artistas e criadores, denunciamos e protestamos contra o teor antirrepublicano e inconstitucional do PL 3.968 e conclamamos os parlamentares que defendem a cultura e a democracia no Brasil que rejeitem tal dispositivo. É o que esperamos.
Caso isso não ocorra, não teremos outra saída senão recorrer ao STF.
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Temos que defender a Cultura e informações no Brasil e no mundo.