De acordo com Trump, culpa dos 180 mil mortos de Covid-19 e da devastação econômica “é dos governadores”; ele é “o melhor presidente da história para os negros”; e o que os EUA precisam é de “lei e ordem” para acabar com a folga dos Black Lives Matter e deter o ‘socialista’ Biden
A Convenção Nacional Republicana sacramentou a candidatura à reeleição de Donald Trump e sua realidade alternativa. Conforme discurso que fez no palanque erguido nos jardins da Casa Branca, para Trump a culpa pelos 180 mil mortos da Covid-19, 6 milhões de infectados e pela devastação econômica “é dos governadores”; ele é “o melhor presidente para os negros americanos desde Lincoln” e o que os Estados Unidos precisam é de “lei e ordem” para acabar com a folga dos Black Lives Matter (Vidas de Negros Importam) e deter “o caos”, “o socialismo” e Biden.
O reality show “More Four Years” (‘Mais Quatro Anos’, com os mais aloprados berrando ‘Mais Doze Anos’) terminou com queima de fogos na quinta-feira nos jardins da Casa Branca e Trump aclamado como o ‘salvador da América’ e quiçá, do mundo, por 1.500 mínions, aglomerados e sem máscara facial, numa espécie de Tulsa-2. Sem máscara facial, mas com o boné vermelho de MAGA (Make America Great Again, ou Faça a América Grande de Novo).
Para abrilhantar sua exibição de fake news, despautérios, exortações racistas contra o “vírus chinês” e apologia do muro contra os imigrantes, Trump trouxe dois produtores já conhecidos dele, um do reality show O Aprendiz, que ele estrelou por vários anos, e outro do concurso Miss Universo, que já pertenceu ao bilionário.
Apesar de todo empenho da produção, a Convenção não passou de um festival de alarmismo, culto ao ódio e febril tentativa de manipular eleitores, por meio do ressentimento e medo.
A parte da aglomeração era para convencer os incautos de que a pandemia está sob controle e a prova seria exatamente os republicanos ali apinhados – e que os democratas são frouxos e alarmistas, por terem feito uma convenção virtual.
OS TEIMOSOS FATOS
Realidade alternativa que os fatos, teimosamente, insistem em atropelar: nessa semana, um furacão atingiu o país, incêndios afetam a Califórnia, o total de pedidos de seguro-desemprego ultrapassou os 1 milhão em 22 semanas, os ameaçados de despejo são 40 milhões, e a fome atormenta outros 30 milhões, enquanto Trump se nega a aceitar um pacote que prorrogue o socorro às famílias e aos Estados.
Astros da liga de basquete NBA suspenderam jogos em repúdio à violência policial em Kenosha, Wisconsin, que deixou um negro paralítico depois de baleado sete vezes pelas costas por um policial, e receberam a adesão de mais esportistas. Um supremacista branco armado de fuzil assassinou ali dois manifestantes contra o racismo e feriu outro.
Ainda, dinastias que já fizeram nome no Partido Republicano, se negaram a comparecer à convenção, como o ex-presidente W. Bush, os Reagan, o ex-candidato em 2012 Mitt Romney e os Cheneys. 300 republicanos de alto coturno já declararam apoio a Biden. Nas redes sociais, há postagens com “quero meu partido de volta”. Um enorme contraste com a unidade demonstrada pelos democratas.
Para jogar água no chope de Trump, uma banda de Washington de Go-Go, uma modalidade de funk, em um protesto quase ao lado, fazia questão, como nos atos do Black Lives Matter nos últimos meses de rebelião contra o racismo, de tocar bem alto e ser ouvida nos jardins da Casa Branca, para incômodo do inquilino bilionário e de seus convivas.
Nesse quadro, ao presidente recordista mundial em incúria e número de mortos e infectados por Covid-19, e sem poder contar vantagem sobre a especulação de Wall Street inflada pelo Fed – que chamava de a “maior economia de todos os tempos” – já que o PIB foi ao chão, o que lhe restou foi se dizer o “campeão da lei e da ordem”. Além de jogar a culpa pelo desastre nos outros: o vírus é “chinês” e os mortos e infectados são “dos governadores”.
Também está causando espanto no planeta inteiro a incapacidade dos EUA, o país “excepcional”, cabeça do mundo unipolar, de ter, sob Trump, o papel mínimo que seja, do ponto de vista internacional, na contenção da pandemia – aliás, ele se retirou da Organização Mundial da Saúde.
APAVORAMENTO DE ELEITORES INDECISOS
Daí a tentativa de apavorar os eleitores independentes (os nossos ‘indecisos’), dizendo que o país está diante do “caos” e até “do socialismo”. Afinal, serão em grande medida esses eleitores que definirão a eleição nos Estados campos de batalha, muitas vezes por diferenças mínimas.
“Ninguém estará seguro na América de Biden”, afirmou, buscando fazê-los acreditar que os protestos contra o racismo são “motins”, “desordem” e “negação dos valores americanos” e que Biden é a via norte-americana para o “socialismo”.
Até aqui, embora será acirrada a disputa, Biden tem estado na frente nesses Estados que, em última instância, definem o resultado – e o presidente – no colégio eleitoral.
Diante da debandada de setores republicanos de peso para a campanha de Biden, por considerarem em que “está em jogo a democracia” caso Trump seja reeleito e as pesquisas favoráveis aos democratas, este endossou na convenção que o pleito de 3 de novembro é, efetivamente, um ponto de inflexão.
Biden – que de tão moderado pôde inclusive obter o apoio de republicanos de quatro costados -, agora é acusado de ser um “cavalo de Troia” da “esquerda radical”. Com Biden, a China irá “se adonar dos EUA”, assevera. Acusa também Biden de querer escancarar as fronteiras dos EUA aos imigrantes. E por aí vai.
“Se a esquerda (Biden) vencer”, voltou o presidente candidato a assustar à classe média e aos conservadores, os “subúrbios” – os bairros ricos, nos EUA – vão ser “invadidos”, suas armas “serão confiscadas” e serão designados juízes que irão “apagar as liberdades constitucionais”.
NOME ‘BIDEN’ ASSOMBRA TRUMP
Passando recibo do quadro eleitoral esboçado nas pesquisas, em seu discurso de aceitação, Trump se referiu ao adversário, pelo nome, mais de 40 vezes. Como resposta, Biden tuitou que “ele [Trump] abandonou o povo americano quando nós necessitávamos mais dele” – depois de assinalar que o presidente republicano, “ao invés de liderar o ataque para derrotar esse vírus, acenou com a bandeira branca”.
Analistas descreveram a Convenção Republicana como uma mistura de marcha da KuKluxKlan com seminário da CPAC [Conservative Political Action Conference, Conferência da Ação Política Conservadora], a sociedade ultraconservadora que indicou o deputado Eduardo Bolsonaro para presidir uma filial no Brasil. O presidente de uma associação policial de Nova York, Pat Lynch, que já apoiou Trump em 2016, asseverou que a escolha dos americanos é “mais quatro anos de Trump”, ou ficar sem “segurança, justiça ou paz”.
Uma “América de caos e violência” está chegando “a um bairro perto de você”, esmerou-se o vice Mike Pence. Ele deu o seu melhor para divulgar a mensagem trumpista de que “Biden e seus democratas da esquerda radical” são uma “turba vingativa que deseja destruir nosso modo de vida”. E que ameaça a “assistência médica privada”, “os subúrbios”, “os bebês”, “a liberdade” e que querem “abrir as fronteiras”.
REPTILIANOS PEDÓFILOS
Nas vésperas da convenção, Trump fez um elogio rasgado à seita de fanáticos QAnon, que acreditam que ele é o líder da luta contra reptilianos pedófilos e canibais, ligados ao Estado Profundo, a Hollywood e aos democratas. Há candidatos da seita disputando cadeiras para a Câmara na legenda republicana.
A aparição, falando com olhos vidrados, do filho de Trump, Donald Jr, e de sua namorada e ex-apresentadora da Fox News, Kimberly Guilfoyle, foi zoada nas redes sociais, e bombou sob #CocaineConvention – reação não exatamente a esperada pelos trumpistas.
Também mereceriam um capítulo à parte os “negros por Trump”, cujo maior líder, Herman Cain, finou-se de Covid-19 pouco antes da Convenção. Umas figuras que poderiam fazer uma ponta no filme Django Livre, de ajudantes de capitão do mato. Houve um que até jurou que “Trump não é racista”.
CHEGAGEM
Durante a convenção republicana, muita gente se dedicou a checar as muitas mentiras de Trump e dos oradores. Em resposta à promessa de Trump de ‘proteger o Medicare e a Previdência Social’, o senador Bernie Sanders tuitou que o presidente “no orçamento proposto para 2020 está cortando o Medicare em $845 bilhões [ao longo de 10 anos]”.
Mas numa coisa os dois concordaram, a caracterização de “a mais importante eleição da história norte-americana”. “Sim”, tuitou Sanders. “E você é o mais perigoso presidente da história do nosso país. É por isso que você vai perder”.