Nesta sexta-feira (28), o governo de Jair Bolsonaro atacou o direito das mulheres de realizarem o aborto legal, aqueles casos que são permitidos e previstos em lei. O Ministério da Saúde publicou uma portaria, no Diário Oficial da União, desta sexta, com novas regras para atendimento ao aborto legal. São três casos possíveis de realização de interrupção de gravidez no Brasil. Quando a gestação oferece risco para a mãe, quando o bebê é anencéfalo e casos de estupro.
No texto, assinado pelo ministro interino da Saúde, o general de logística Eduardo Pazuello, profissionais de saúde ficam obrigados a avisarem a polícia quando atenderem mulheres que peçam para interromper uma gestação por terem sido vítimas de estupro.
Torna-se obrigatória a notificação à autoridade policial “pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro”, diz o texto.
Diz ainda que os profissionais de saúde devem preservar e entregar à polícia “possíveis evidências materiais do crime de estupro, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime”.
Até a publicação desta portaria, os médicos não precisavam acionar a polícia para realizar o aborto, mas em 2019 foi aprovada a lei 13.931 que passou a determinar essa notificação, e agora ela foi incorporada na nova portaria para a rede de saúde.
O governo justifica a medida com a necessidade de garantir aos profissionais de saúde “segurança jurídica efetiva” para a realização do aborto. Mas na prática, a portaria apenas elenca diversas medidas para dificultar e coibir mulheres a interromperem gestações nos termos que lhes são assegurados pela lei.
Mulheres vítimas de estupro que procuram o hospital para interromper a gravidez gerada pela violência, não necessariamente irão denunciar o agressor. Essa é uma escolha da vítima e associar o aborto com polícia desencoraja pessoas a procurarem o serviço que elas têm o direito assegurado pela lei.
Além disso, é importante destacar que no Brasil, segundo dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “o perfil do agressor é de uma pessoa muito próxima da vítima, muitas vezes seu familiar”, o que também explica porque mulheres muitas vezes não denunciam os agressores.
ULTRASSOM
A portaria do governo Bolsonaro não para por aí. Ela também exige que os médicos informem à mulher a possibilidade de ver o feto em ultrassonografia.
Qual seria o objetivo de mostrar para a mulher o feto em sua barriga que não comovê-la para desistir do procedimento?
Seja em caso de estupro ou não, uma mulher não faz aborto por falta de humanidade, ou desapego à vida. Mostrar o feto para mulher é apenas uma forma cruel do Estado tentar persuadi-la de fazer o procedimento para interromper o fruto da maior violência que uma mulher pode sofrer. Mostrar o embrião à paciente ainda pode provocar um sofrimento maior à vítima.
O texto também determina que as pacientes assinem um termo de consentimento com uma lista de possíveis complicações do aborto, como risco de sangramento intenso, danos ao útero e sepse.
Mas essa lista não tem um contexto, então, na prática, o objetivo dela é amedrontar a paciente. Cientificamente já se sabe que até nove semanas ou menos de gestação, o risco de um desfecho grave é de 0,1 a cada 100 mil casos de aborto.
Numa ampla lista com todas as possibilidades e sem contextualização, o governo induzirá a mulher a acreditar que está realizando um procedimento de alto risco, o que não é verdade. Um aborto pode representar um alto risco, mas depende da idade gestacional e diversos fatores.
O protocolo definido pelo governo Bolsonaro também prevê a assinatura de um “termo de aprovação do procedimento de interrupção da gravidez”, que deve ser assinado por três pessoas da equipe de saúde, e um termo de responsabilidade, o qual deve ser assinado pela gestante ou representante legal. Essas medidas já eram previstas em normas anteriores
O protocolo foi publicado logo após a polêmica envolvendo a menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada pelo tio, de 33. A criança sofria violência sexual desde os 6 anos. A justiça garantiu a ela o direito de interromper a gravidez, mesmo ela já estando grávida há 22 semanas.
O caso ganhou repercussão nacional, fundamentalistas religiosos foram até o hospital que ela fez o procedimento para tentar impedi-lo. Dentre as pessoas que divulgaram o local onde foi realizado o aborto e organizaram o protesto, estão um pré-candidato a vereador bolsonarista – que chegou a ir à casa da vítima para coagir a família à desistir – e a blogueira Sara Giromini, também apoiadora de Bolsonaro.
RESPOSTA PERVERSA
Para a professora da Universidade de Brasília (UnB), advogada e antropóloga Debora Diniz, a medida é uma resposta à desastrada atuação do governo no caso da menina de 10 anos, grávida vítima de estupro, e que teve acesso ao aborto legal em um hospital de Recife.
“A resposta à menina de 10 anos que abortou veio hoje no formato de uma portaria perversa”, destacou em suas redes sociais.
Segundo a advogada, o aborto sempre foi uma questão central ao fanatismo bolsonarista. O texto revoga portaria de aborto legal e confunde profissionais de saúde com profissionais de segurança pública.
“Mais importante: entre os documentos exigidos da vítima está um relatório sobre o agressor. As perguntas não são médicas, mas investigativas. É um relatório que revitimiza a mulher ou a menina”, explicou a advogada, que atuou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), no caso que deu origem à exceção prevista no Código Penal, que prevê o aborto no caso de bebês anencéfalos.
“Um documento lista os riscos de um aborto. Ignora que forçar uma menina de 10 anos à gravidez é um risco de morte. Há uma ciência seletiva na política pública. Uma ciência para amedrontar mulheres. É urgente a judicialização da portaria 2.282 do Ministério da Saúde ”, denunciou a advogada.
MAÍRA CAMPOS