Ao exigir extradição de Assange, regime Trump tenta impor substituição do jornalismo por fake news ao gosto da Casa Branca
Começou em Londres na segunda-feira (7) o julgamento do pedido de Washington de extradição do fundador do WikiLeaks e laureado jornalista, Julian Assange, por divulgar ao mundo crimes de guerra e abusos dos direitos humanos cometidos pelos EUA nas guerras do Iraque, Afeganistão e em Guantánamo, o que, para o regime Trump, constitui “espionagem” e “aliciamento de hackers”, com 175 anos de cadeia o esperando nos EUA.
Uma multidão se aglomerou nas imediações do prédio do tribunal Old Bailey, no centro de Londres, para exigir que Assange não seja extraditado, defender o direito à verdade e a liberdade de imprensa. “O que está em jogo é o futuro do jornalismo”, advertiu o editor-chefe do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson.
Em 2010 e 2011, o WikiLeaks, junto com os maiores jornais do mundo, publicou os Registros da Guerra do Iraque, os Diários de Guerra Afegãos, os Cablegate do Departamento de Estado e os Manuais de Detenção em Guantánamo, e Assange foi homenageado com alguns dos mais importantes prêmios de jornalismo do mundo.
O caso de Julian “tem enormes repercussões para a liberdade de expressão e de imprensa. É um ataque ao jornalismo”, enfatizou no domingo a companheira e mãe dos dois filhos do jornalista, a advogada Stella Morris.
“Se ele for extraditado para os EUA por publicar verdades inconvenientes sobre as guerras no Iraque e no Afeganistão, isso abrirá um precedente e qualquer jornalista ou editor britânico também poderá ser extraditado no futuro.”
A audiência deve se estender pelas próximas três ou quatro semanas. Ao tribunal, com um “não”, Assange declarou sua recusa à extradição. No mundo inteiro – Adelaide, Paris, Nova York, Berlim, Roma, Washington e San Francisco, entre outras cidades – estão marcados protestos em solidariedade a Assange.
O que estamos testemunhando “não é um processo judicial”, mas uma “vingança judicial”, disse o cineasta e jornalista John Pilger, também australiano como Assange.
O mais famoso preso político do mundo está indo à audiência decisiva sobre seu futuro após seis meses sem qualquer contato com seus advogados e com a família. O que ocorreu sob o pretexto da pandemia, com a juíza Vanessa Baraitzer se recusando a conceder a ele libertação sob fiança, apesar de, constatadamente ter saúde precária, e com a Covid-19 vitimando funcionários e presidiários na Guantánamo britânica.
“VIOLAÇÃO GROSSEIRA” DO DEVIDO PROCESSO
Hrafnsson classificou de “violação grosseira dos direitos de Assange” a decisão da juíza Baraitser de negar o pedido de sua defesa de adiamento da audiência para o próximo ano, em decorrência de os EUA terem entrado com uma segunda acusação substituta, fora de prazo, e depois que a defesa já entregara sua argumentação inicial.
“Os americanos tiveram dez anos para preparar este caso. Os advogados de Julian estão trabalhando há um ano sob a … [primeira] acusação. Lançar esta [segunda acusação substituta] no último minuto é um insulto absoluto aos tribunais do Reino Unido e a Julian e à justiça”.
Questão que também chamou a atenção do denunciante Edward Snowden, que só conseguiu escapar das garras da CIA, após denunciar o grampo geral do planeta inteiro pelos EUA, graças ao apoio do WikiLeaks e de Assange. Ele chamou o caso de um “julgamento-espetáculo kafkiano”, acrescentando que “o juiz permite que as acusações sejam alteradas com tanta freqüência que a defesa nem sabe quais são, as demandas mais básicas são negadas, ninguém pode ouvir o que o réu diz – uma farsa”.
Não houve declarações de abertura da defesa ou da acusação na segunda-feira, mas ambos os lados divulgaram documentos detalhados pouco antes do início da audiência expondo sua argumentação. A defesa de Assange afirmou que o pedido de extradição era buscado por “motivação política oculta e não de boa fé” e acrescentou que os EUA buscam “criminalizar a aplicação de métodos jornalísticos comuns para obter e publicar informações de interesse público”. A acusação insistiu em que Assange não é jornalista e reclamou que a defesa vem “atacando o presidente Trump”.
Este ano se completaram 10 anos da divulgação, pelo WikiLeaks, do vídeo “Assassinato Colateral”, que mostra o assassinato, por um helicóptero de guerra dos EUA, de uma dezena de civis desarmados, em Bagdá, inclusive dois jornalistas. Vídeo, gravado desde o helicóptero, gravação de um crime de guerra, que resumiu dramaticamente as centenas de milhares de arquivos do Pentágono e do Departamento de Estado. Os criminosos de guerra, e os mandantes, seguem impunes.
Na audiência, o primeiro depoente da Defesa, o professor de jornalismo Mark Feldstein explicou que o vazamento e a publicação de documentos de segurança nacional é um fenômeno que remonta às origens dos EUA sob seu primeiro presidente George Washington. Jamais – ele acrescentou – um jornalista ou veículo de publicação enfrentou antes processo criminal por publicar documentos confidenciais devido às proteções garantidas pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Dificuldades técnicas na videoconferência forçaram à suspensão da sessão e o depoimento recomeça nesta terça-feira.
“LUZ SOBRE A CORRUPÇÃO”
Com faixas, cartazes e bumbos, manifestantes expressaram seu apoio à luta de Assange. Várias personalidades falaram aos presentes. O pai de Assange, John Shipton, descreveu a audiência como um “julgamento abusivo”. “Julian é editor, a publicação é WikiLeaks, [ele é] jornalista. É ação opressiva contra o jornalismo e a imprensa livre em todo o mundo ocidental. Isso não pode continuar, tem que parar agora.” Também a estilista Vivviene Westwood, disse que “Julian é o gatilho, ele está lançando a luz sobre toda a corrupção no mundo”.
O ex-embaixador britânico Craig Murray considerou “ridícula” a determinação da juíza Baraitser proibindo que a testemunha de defesa propiciasse um resumo das suas declarações antes de interrogado, isto é, que o público e os jornalistas saibam o que a testemunha deseja expor.
Uma delegação de apoiadores de Assange, encabeçada pela companheira Stella Morris, foi até à sede do governo britânico entregar um abaixo assinado contra a extradição, assinado por 80 mil pessoas. Policiais que isolavam o prédio se negaram a receber o documento.
Entidades e personalidades também repudiaram a falta de transparência no processo contra Assange e na própria audiência. Subitamente, foram canceladas 40 autorizações para observadores, inclusive a Anistia Internacional.
“Isso não é normal”, denunciou Marie Struthers, da Anistia Internacional. “A Anistia quase sempre tem acesso garantido para monitor casos judiciais no mundo inteiro. Nosso observador legal descobrir esta manhã que não lhe foi garantido nem mesmo acesso REMOTO à audiência de Assange é um ultraje”.
Rebecca Vincent, da RFS, considerou a decisão de permitir “tão poucos monitores e jornalistas” na audiência de hoje “mais como uma decisão política do que logística”.
“É impossível olhar este julgamento como imparcial”, denunciou o acadêmico e dirigente da Coalizão Contra a Guerra, John W Rees.
“ESSÊNCIA DO JORNALISMO”
Em discurso aos manifestantes, o cineasta Pilger enfatizou a essência do jornalismo, de que Assange se tornou símbolo e proponente. “Se os poderosos mentem para nós, temos o direito de saber. Se eles dizem uma coisa em privado e o contrário em público, temos o direito de saber. Se eles conspiram contra nós, como Bush e Blair fizeram sobre o Iraque, fingem ser democratas, temos o direito de saber”, apontou.
Pilger disse que ao conhecer Assange, e lhe perguntar há mais de 10 anos porque iniciara o WikiLeaks, ouviu com surpresa a resposta de que “transparência e responsabilidade são questões morais que devem ser a essência da vida pública e do jornalismo”.
Como ressaltou, jamais tinha ouvido “um editor invocar a moralidade dessa forma”, que os jornalista são “os agentes das pessoas, não do poder”.
Para Pilger, é esse propósito de moralidade “que tanto ameaça o conluio de potências que querem mergulhar grande parte do mundo na guerra e enterrar Julian vivo na América fascista de Trump”.
Ele recordou relatório ultra-secreto do Pentágono de 2008 delineando a perseguição implacável que se concretizou em seguida, a operação de ‘assassinato de reputação’. “Uma campanha de difamação pessoal dirigida secretamente contra Julian Assange levaria à ‘exposição [e] processo criminal’”.
“Sou repórter há mais de 50 anos e nunca conheci uma campanha de difamação como essa: o assassinato forjado de um homem que se recusou a entrar no clube; que acreditava que o jornalismo era um serviço ao público, nunca aos que estão acima”, afirmou Pilger.
Ele se referiu ainda à tortura psicológica contra Assange, que o Relator da ONU Nils Melzer denunciou em detalhes. Foi Melzer que observou que o método “foi refinado pelos nazistas por ser mais eficaz em quebrar suas vítimas”.