
Depois da “Pastora” Flordelis, o “Bispo” Crivella
Agora virou moda. Depois de Bolsonaro e sua prole, as investigações da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro que redundaram nas prisões e na apreensão de um celular do “bispo” Crivella, prefeito da antiga capital do Brasil, revelaram que ele era chamado, entre os comparsas, por “Zero Um”.
Enquanto isso, o operador do esquema de propina, Rafael Alves, era conhecido como “Trump”.
Esse Rafael Alves, que não tinha cargo algum na Prefeitura (é irmão do ex-presidente da Riotur, Marcelo Alves), foi para quem telefonou o “bispo” Crivella, ao saber que a Polícia estava revistando repartições do município:
CRIVELLA: “Alô, bom dia, Rafael. Está tendo uma busca e apreensão na Riotur? Você está sabendo?”
Na casa de Rafael Alves, quem atendeu à chamada do prefeito do Rio foi o delegado Clemente Braune, que estava revistando a residência do operador de Crivella:
DELEGADO BRAUNE: “Sim, estou ciente. É uma investigação da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro.”
O “bispo” Crivella, ao perceber que não fora Rafael Alves quem atendera a ligação, desconversou e encerrou a chamada (v. HP 10/09/2020, Polícia do Rio faz busca na Prefeitura, na casa e apreende celular de Crivella e ‘Ligação perigosa’: Prefeito ligou para investigado, mas quem atendeu foi o delegado).
O que foi apurado na investigação seria suficiente para condenar qualquer sujeito à cadeia. No caso do “bispo” Crivella, pior ainda, pois, como escreve a desembargadora Rosa Helena Guita, na decisão judicial que permitiu a operação de quinta-feira (10/09), o prefeito tem “protagonismo no gigantesco esquema de corrupção, peculato, fraude a licitação e lavagem de dinheiro instalado no município do Rio de Janeiro”.
É interessante o modo como a desembargadora sintetiza as relações entre Crivella e seu operador: “A subserviência do prefeito a Rafael Alves é assustadora”.
O sinal trocado nessa descrição (é evidente que Rafael Alves, sem Crivella, é um nada, talvez nem um zero à esquerda, para usar a terminologia da moda entre os meliantes) não tira a eloquência e a contundência do resumo da desembargadora Rosa Helena Guita.
“Chega ao ponto de ele [Rafael Alves] exigir incisivamente ser ouvido, antes da tomada de qualquer decisão”, escreve a magistrada. E, mais: “Rafael Alves interfere na escolha de empresas para prestar serviços aos mais diversos setores da administração e aponta pessoas para ocupar cargos-chave”.
No celular de Alves foram apreendidas 1.949 mensagens entre ele e Crivella, “muitas delas”, nota a desembargadora, “contendo linguagem cifrada, deixando transparecer que seu conteúdo não poderia ser tratado por meios de comunicação tradicionais”.
Existe até mesmo uma mensagem de Alves ao doleiro Sergio Mizrahy, em que o primeiro anuncia que “tenho que passar no península [o condomínio onde mora Crivella], na casa do chefe, para deixar um lance lá”.
O mesmo doleiro a quem Alves se queixa do “vacilo do zero um”, quando a entrada de dinheiro roubado – dinheiro público desviado – atrasou um pouco.
FIM DOS TEMPOS
Se Rafael Alves sem Crivella era um nada, o mesmo pode-se dizer do próprio Crivella sem Edir Macedo e sua máquina de extrair dinheiro dos incautos (v. HP 19/09/2019, Onde mora o Diabo).
A pergunta: “onde está Edir Macedo nesse esquema do Crivella?”, que percorreu equipes de investigação e redações de jornais, rádios e TVs, é, portanto, natural, pois desconhece-se qualquer coisa que Crivella tenha feito na vida pública, que não seja como preposto de Macedo.
Se assim é na vida pública – e na vida familiar, pois Crivella é sobrinho de Edir Macedo – por que seria diferente nos esquemas e valhacoutos de propina advinda de sua atividade como prefeito da mais famosa cidade brasileira?
Mas é verdade que Macedo ainda não apareceu nesse esquema. Uma possibilidade é que Crivella tenha tentado algum voo solo. A outra é que o representante de Macedo seja o próprio Crivella.
São, naturalmente, suposições – sem provas que as sustentem.
O que, realmente, é fato, consiste na exposição pública das entranhas do charlatanismo pseudo-religioso.
Nesse caso, pela segunda vez em pouco tempo.
A primeira foi no caso Flordelis (v. HP 31/07/2020, Milady Belzebu: a fiel bolsonarista Flordelis e sua defesa da família).
A “pastora” Flordelis era um tremendo hit da “teologia da prosperidade” – aquela indigência infame, importada do mais degradado meio pseudo-religioso dos EUA, segundo a qual é justo usar a religião (ou, para ser exato, um transformismo “religioso”) para enriquecer às custas dos outros, antes de tudo, extorquindo os incautos e os desesperados.
Trata-se de um charlatanismo geral, em que doenças e males – físicos, psíquicos ou sociais – são tratados como possessões demoníacas, para ganho e lucro de alguns espertalhões (v. o já citado “Onde mora o Diabo”).
No passado, essas atividades de vigarista proporcionariam uma temporada na cadeia aos seus praticantes. Por muito menos houve, há não muitas décadas, quem fosse condenado por “exercício ilegal da medicina”.
Infelizmente, a invasão desse corpo estranho à nossa cultura, esse charlatanismo pseudo-religioso a partir dos EUA, fez com que a vigilância – inclusive dos médicos – fosse relaxada, além das “exegeses jurídicas” para fazer passar como religião aquilo que, sem capa ou fantasia religiosa, seria crime.
Algum leitor poderia perguntar: mas não são confusos os limites entre ciência – por exemplo, medicina – e religião?
Não, leitor, não são.
Um grande psiquiatra lembrou uma vez: nenhum pai de santo, ao se deparar com alguém sofrendo de esquizofrenia, tenta tratá-lo como um “possuído”.
Pelo contrário, o que os sacerdotes de cultos afro-brasileiros fazem é enviar quem sofre de esquizofrenia para um psiquiatra.
Isso é, exatamente, o que não fazem os sectários da “teologia da prosperidade” (ou “neopentecostalismo”).
Pelo contrário, esses últimos preferem reduzir males tão comuns quanto a depressão, ao status de possessão demoníaca. Apenas entre os brasileiros deprimidos, teríamos, portanto, 10 ou 12 milhões de possuídos pelo Diabo…
É assim – entre outros modos – que tiram dinheiro dos ingênuos e sofredores. O que é, além de desonestidade, uma covardia em dobro.
O caso Flordelis, porém, deixou a nu essa pilhagem em massa.
Até agora, dos crimes que já apareceram, da dissolução moral e dinheiro auferido com trapaça, clama aos céus como tudo era o oposto do que se dizia – a começar pela “defesa da família”.
Flordelis era (e, parece, ainda é) a típica “neopentecostal”, a adepta bem sucedida da “teologia da prosperidade”, não a fiel “neopentecostal”, mas a patrocinadora de seita “neopentecostal” (v. HP 09/09/2020, Tem que ser dito).
Crivella e Flordelis, não por acaso, são também bolsonaristas de raiz (?!). Em que outro campo político poderiam se encontrar, em tal intensa combinação, a vigarice, o obscurantismo e o crime mero e simples (ou até complicado)?
Na tradição cristã, Lúcifer ou Satã é o mal – porém, é o mal que se apresenta sob a forma de engano, de tentação, de sedução.
Pois, o objetivo do diabo é o poder sobre as pessoas e sobre as coisas. Nos versos de Milton, diz Belzebu, o sócio e lugar-tenente de Satã:
“Salve, perene horror! Inferno, salve!
“Recebe seu novo rei, cujo intelecto
“Os tempos nem os lugares podem mudar;
“Nesse intelecto seu, todo ele é;
“Nesse intelecto seu, até poderia
“Fazer do Inferno, o Céu; fazer do Céu, o Inferno.”
O Diabo é, portanto, o supremo enganador. Por quê?
O próprio Satã explica, no “Paraíso Perdido”, de John Milton:
“Reinar é a maior das maiores das ambições
“Ainda que seja no fundo do fundo do Inferno:
“Preferível é reinar no Inferno
“Que à vileza de servir no Céu.”
Não vos parece, leitor, que o Diabo se parece muito com aqueles que querem enriquecer tirando o diabo dos outros, e, assim, dominando as pessoas?
CARLOS LOPES
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