(HP 27/03/2015)
No dia 25 de março de 1884, o Ceará tornou-se a primeira província do Império do Brasil a abolir a escravatura. Daí por diante, seria chamado “Terra da Luz”.
O texto que publicamos hoje – em verdade, alguns trechos retirados do livro “A Abolição no Ceará”, do historiador Raimundo Girão – descreve as atividades da Sociedade Cearense Libertadora a partir de 1881, com o engajamento no movimento abolicionista de Francisco José do Nascimento, conhecido como Chico da Matilde, e, logo em seguida, nacionalmente, como Dragão do Mar.
Dragão do Mar se tornaria símbolo da liberdade não somente para os abolicionistas, mas também para os republicanos – que só em parte, na época da libertação do Ceará, eram também abolicionistas (da mesma forma que muitos destes eram monarquistas). O fato é interessante: no ano em que o Ceará aboliu a escravidão, o comandante da Escola de Tiro de Campo Grande, Rio de Janeiro, tenente-coronel Antonio de Sena Madureira, convidara Dragão do Mar para visitar a sua unidade e promovera homenagem ao bravo negro cearense, pelos seus feitos na luta contra a escravidão. Recusando-se a dar explicações ao ministro da Guerra, Franco de Sá, o coronel foi punido e enviado para a então longínqua província do Rio Grande do Sul, como comandante da Escola de Artilharia de Rio Pardo. O episódio é mais longo do que o nosso espaço, porém, basta dizer que o comandante de armas e governador da província do Rio Grande do Sul era o marechal Deodoro da Fonseca (entre outros livros, os fatos da “questão militar” foram bem expostos por Celso Castro em “Os Militares e a República”, Jorge Zahar Ed., 1995).
Quanto a Raimundo Girão, foi – e ainda é, apesar de falecido em 1988 – um dos maiores historiadores cearenses. Foi também político, inclusive prefeito de Fortaleza (1933-1934).
C.L.
RAIMUNDO GIRÃO
Certo número de escravos devia seguir pelo vapor “Espírito Santo”, da antiga Companhia Brasileira de Navegação, a zarpar no dia 27 [de janeiro de 1881]. Pedro Artur e José do Amaral depressa recorreram ao liberto José Luís Napoleão, chefe de capatazia no porto e detentor das simpatias dos companheiros de serviço e dos jangadeiros em geral, graças à sua bondade e prestimosidade, assim como à de sua mulher, a preta tia Simoa, “de coração angelical e alma pura, que acabou seus dias recebendo os carinhos da família de Henrique José de Oliveira.”
Napoleão comprara a própria liberdade e, com as economias que chegou a juntar, também a de quatro irmãs, bem como a de outros co-mártires do cativeiro. Toda a submissa bondade africana como que se apurava no cadinho do seu coração generoso. E por isso não recusou o convite, antes aceitou o apelo com ostensivo e sereno gosto e mais satisfação íntima por ver-se instrumento também do sagrado desígnio de acabar de vez a dor e a vergonha dos grilhões e do tronco.
A noite de 26 não os deixou dormir, nem a muitos mais – Antônio Cruz, Antônio Martins, José Teodorico, Antônio Bezerra, Isac do Amaral, João Carlos Jataí. Aos três últimos coube aliciar gente, em maior quantidade possível, para achar-se na praia na hora do embarque. Da greve dos jangadeiros se encarregaram os outros. E, se viesse a falhar, aos elementos aliciados do povo tocaria promover desordem momentânea, de modo a poderem fugir os escravos.
Mais de mil e quinhentas pessoas “de todas as classes e condições” afluíram ao local no dia 27 e foi com o espanto dos traficantes de negros que se ouviu o clamor — “No porto do Ceará não se embarca mais escravos!”
“Esta resposta terminante e decisiva — comenta o Libertador — partiu ao mesmo tempo de todos os lábios. Não se sabe quem primeiro a proferisse. Era uma idéia que estava em todas as inteligências, um sentimento que brotava em todos os corações.
“É de ver como desapontados ficaram aqueles indesejados negociantes e, por mais que recorressem a oferecimentos de toda sorte, até mesmo às ameaças, nada obtiveram. Repelidos, vaiados, provocaram a interferência oficial para garantir-lhes o direito de mandar a sua mercadoria e para tanto veio à praia um oficial, com praças da polícia, mas sem proveito qualquer. Apenas, muito cedo, haviam embarcado nove peças, porém dessas os libertadores, por meios legais, retiraram algumas, entre elas, do vapor ‘Pará’, uma infeliz mãe ‘seminua e quase morta a fome,’ com quatro filhas, despachadas no Maranhão para o Rio de Janeiro – todos desembarcados ‘debaixo da bandeira brasileira, ao som da música e ao ribombar de foguetes.”
No dia 30 havia de levantar ferro o “Espírito Santo” e – descreve ainda o Libertador – lá acorreram à praia os srs. Telésforo Caetano de Abreu, José da Fonseca Barbosa e os italianos Vicente Ferreira e irmão, levando consigo 38 criaturas humanas para exportá-las ao mercado do Sul. Novamente se recusaram os marítimos, apesar de pingues promessas de suborno e a cena se reproduz, com a vinda dos policiais, que nada adiantam. O próprio Inspetor da Alfândega e o Agente da Polícia Marítima se negam a transportar nas suas lanchas aqueles infelizes.
Houve a acusação de que os da Libertadora haviam subornado os jangadeiros mediante dinheiro farto. Porém nada mais se deu do que natural recompensa de prejuízos ocasionados pela suspensão dos seus trabalhos lucrativos, do seu pobre ganha-pão. E o dinheiro não foi abundante, pois Isac do Amaral confessa que, para tal fim, os libertadores se cotizaram, cabendo a José do Amaral e João Cordeiro quinhentos mil réis, cada um, e, também a cada um, duzentos mil réis a Pedro Borges, Frederico Borges, João Jataí, Antônio Bezerra e a ele Isac.
Restava aos negros melhor destino e os liberteiros o deram. Jataí, Bezerra e Isac – os três mosqueteiros, como eram apelidados, – souberam-nos guardados em prédio situado na esquina das atuais avenidas Pessoa Anta e Alberto Nepomuceno; e, noite avançada, penetram ali, pelos fundos da casa, ocupados por um capinzal. Comunicando-se, em silêncio, com os escravos, acertaram com eles encher a casa de capim seco e simular um incêndio, ao mesmo passo que outros da Libertadora, principalmente José Marrocos, conjuravam tipos populares (José Basófia, José da Hora e Piau) para, na hora do fogo, provocarem o alarme.
Pela madrugada o incêndio começou. E, ao repicar dos sinos da Sé e da Igreja da Prainha, e ainda ao som das cornetas da Polícia, o povo se aglomerou em torno. Arrombadas as portas, verificou-se, com maior decepção dos traficantes, constantemente apupados, que a mercadoria havia fugido.
O “Espírito Santo” não os levou, e alguns que não estavam no incêndio foram transportados para Aracati, em cujo porto pretendiam embarcá-los.
Pedro Artur e José Napoleão alcançaram aquela vitória, mas a tradição lhes perdeu os nomes, que é preciso repor no lugar devido. Instado por José do Amaral para dirigir a campanha no campo praieiro, escusou-se o liberto escondido na sua exagerada modéstia, com esta resposta: “Seu Zezinho, tem aqui um que serve para o que o senhor quer: — é o Chico da Matilde.”
Chico da Matilde não era outro que Francisco José do Nascimento, aracatiense, homem de cor, exercendo o mister de Prático da Barra e encarregado do serviço de lanchas do comendador Luís Ribeiro da Cunha. Napoleão empurrava-o para a fama desde aquele momento, porque, consultado sobre a sua solidariedade à cruzada redentora, sem demora Nascimento a deu, embora com a reserva de que não poderia ir muito adiante, considerada a natureza do seu emprego. No entanto, pôs, ali mesmo, à disposição da causa, as duas jangadas que possuía.
O INTERIOR
Reduzido a pó o bastião mor da fortaleza escravista, cairiam, pouco a pouco, os demais redutos de resistência.
Quando terminou o ano, o somatório era de todo animador.
Soure (3 de junho), Pedra Branca (8 de junho), Pereiro (27 de setembro), Vila Viçosa (29 de setembro), Canindé (4 de outubro), S. Benedito e S. Pedro da Ibiapina (11 de outubro), Várzea Alegre (22 de outubro), Pentecoste (8 de dezembro) – eis a série cronológica das conquistas.
Na libertação de Canindé o trabalho coube a Cruz Saldanha, seu filho ilustre. A Libertadora fez-se representar por ele, Antônio Bezerra, Frederico Borges, José Marrocos e as senhoras Francisca Nunes Cruz, Joana Antônio Bezerra, Maria Teófilo de Morais, Maria Nunes Façanha e Lina Josefina Bezerra. Aproveitaram o dia do padroeiro – o São Francisco miraculoso – para que tivesse o ato repercussão retumbante, como de fato aconteceu.
Para ali convergira um grupo de escravos, uns vinte foragidos do Piauí, e apelaram para os libertadores na sua aflição de fugitivos, entre rogos desesperados.
“Os pretos continuavam a chorar e maldizer-se, – conta Antônio Bezerra – quando o Dr. Frederico Borges concordou com os demais companheiros presentes que se atendesse ao pedido daqueles infelizes. Mandou vir papel e, ordenando ao 1° Secretário que escrevesse o que ele mandasse, começou a passar de um para outro lado da sala, ditando as cartas seguintes, que foram todas do mesmo teor: ‘Nós abaixo assinados, membros da terrível associação Libertadora Cearense, restituímos à liberdade o cidadão Fulano, e ordenamos-lhe se, pretendendo voltar à terra de sua residência, o seu ex-senhor quiser obrigá-lo ao cativeiro, o poderá matar com uma faca bem grande que lhe atravesse o coração de uma banda para a outra. Canindé 5 de outubro de 1883’ (Assinaturas).
Os pretos riram de verdadeira alegria e quase no mesmo dia voltaram para donde vieram e não tardou que eles chegassem a Fortaleza em plena liberdade, pois que os seus senhores, em vista daquele documento, não os quiseram mais conservar em sua companhia.
Era o absurdo batendo o absurdo, comenta Bezerra.
Meses antes os libertadores haviam enfrentado, outra vez de peito aberto, a reação do governo, no caso do Conselheiro Antônio Marcelino Nunes Gonçalves, do Maranhão, que desejou reembarcar uma escrava escape de bordo e nisso interessou o Chefe de Polícia, Dr. Benjamim de Oliveira Melo. Obtida ordem de habeas-corpus, pela Libertadora, em favor da preta Francisca, aquela autoridade se negou a cumpri-la. O Juiz, Dr. Joaquim Barbosa Lima, representou contra o Dr. Benjamin ao Tribunal de Apelação, que o mandou processar.
A escrava não embarcou, afinal.
Mas, para compensação de tudo, viera presidir à Província o Dr. Sátiro de Oliveira Dias, médico baiano. Tomou posse no dia 21 de agosto e confirmou no cargo a sua profissão de fé abolicionista, feita em 1869 na inauguração da Libertadora Baiana Sete de Setembro. Consultado sobre sua nomeação, por intermédio do Ministro da Justiça, Dr. Prisco Paraíso, explicara-lhe que iria para o Ceará com o intuito decidido de tomar a iniciativa na questão da escravatura, porém não aceitaria a indicação, se tal pudesse ferir a posição do governo geral em face do problema.
“Esperei a resposta e não a tive, esclarece o Dr. Sátiro, e levei a evasiva à conta do pode ser que sim pode ser que não, muito em voga nas altas regiões, e que, não obstante, me decidiu a tomar a resolução de embarcar para o Ceará e ali proceder de acordo com as minhas próprias inspirações.
“Quando estava isto definitivamente assentado no meu espírito – diz o ilustre ex-governante – recebi a visita do meu distinto amigo, o falecido Almirante Carneiro da Rocha, que me aconselhou a desistir da presidência. S. Excía. voltara do Norte dias antes e estivera no Ceará. — ‘Aquilo é um vulcão, disse-me textualmente. Vai talvez suceder-lhe pior que aos seus antecessores. Não vá lá!”
Mas veio.
O clima oficial, portanto, amenizou-se para a campanha, e foi à suavidade dessa temperatura que amanheceu o dia 1º de janeiro de 1884.
No dia 2, Sobral, o mais numeroso foco de cativeiro da Província, rompia os ferros, aliviando os últimos pulsos algemados. No mês de janeiro, também Trairi, Santa Quitéria, Aracati, Cachoeira, Lavras, Tamboril, Santana, Independência, Camocim, Cascavel, Morada Nova, Acaraú.
S. Bernardo das Russas e Granja a 2 e 10 de fevereiro.
Restava desferir o golpe final, que seria a 25 de março, o dia da anunciação da Virgem Santa. Passou a ser assunto quase único a preparação da gloriosa data. Antônio Martins havia escrito o Hino da Redenção, encaixado em música de composição do maestro Pedro Gomes do Carmo, e os ensaios repetiam-se.
Cantá-lo-iam as cristalinas gargantas de Maria Teófilo, Isabel Teófilo Vieira, Sabina Teófilo Padilha, Amélia Vieira Teófilo, Maria Teófilo Padilha, Benvinda Xavier de Castro, Leopoldina da Frota, Ana Dias Ribeiro, Maria Marques Porto, Maria Herculana da Silva Amorim, Maria Petronília de Aquino, Maria Alves de Oliveira, Maria Salomé da Silva e Antônia Xavier de Castro.
A notícia da magnificente comemoração corria mundo e lá de Londres, todo orgulhoso, mandava dizer Nabuco aos da Libertadora:
“Chega-me de diversas partes a notícia de que no dia 25 de março a província do Ceará ficará para sempre, livre da desonra e do opróbrio da escravidão
“Não quero que a minha voz deixe de perder-se no coro de admiração e entusiasmo com que de todos os cantos do Brasil o nome cearense será saudado naquele dia.
“Não há em nosso passado desde a Independência uma data nacional igual à que a província do Ceará vai criar.
“Longe como infelizmente me acho do Brasil, posso todavia dizer que não passou um único dia neste meu afastamento da pátria, em que a esperança de vê-la livre da escravidão não me deixasse indiferente ao meu destino individual.
“O que o Ceará acaba de fazer não significa por certo ainda — o Brasil da Liberdade; mas modifica tão profundamente o Brasil da Escravidão, que se pode dizer que a sua nobre província nos deu uma nova pátria.
“A imensa luz acesa no Norte há de destruir as trevas do Sul. Não há quem possa impedir a marcha dessa claridade.
“Honra ao Ceará!”
As lojas comerciais anunciavam os seus artigos para o dia 25 de março, e nas vésperas os preparativos se aceleraram principalmente na Praça Castro Carreira — a Praça da Estação — com o aproveitamento do pavilhão do Grande Circo Americano. Debaixo dele, armado no centro do logradouro, seria realizada a solenidade oficial da libertação, e nesse arranjo trabalhavam estafantemente a Fraternidade e Trabalho e a Classe Artística, sob a orientação de José do Amaral, Rodolfo Teófilo, Dr. Henrique Théberge, Heráclito Sousa Leão, José Severiano de Oliveira, Francisco Cerqueira Mano e Cândido Alves Maia.
A cidade não cabia dentro na concha do seu tamanho nos desabafos do seu júbilo. Adejavam sobre o seu pequeno povo as dinvidades da Alegria e da Beleza com todas as suas inspirações e magias.
O DRAGÃO
A viagem do Dragão do Mar e sua igapeba à Corte, deslizando nas águas diferentes da baía famosa, após arriada de bordo do “Espírito Santo”, meteu em alvoroço os paladinos nacionais da libertação.
Vê-se pela descrição das festas que o acontecimento acicateou os nervos do povo e o levou a maiores regalos de sua psique. O estado-maior do Abolicionismo estendeu efusivamente as mãos para receber o fogoso negro, lustroso de tez e de orgulho da missão que estava desempenhando.
A Confederação Abolicionista tinha ao seu lado a Sociedade Abolicionista Cearense no imenso cortejo que se formou, carregando as coroas de consagração que ao lobo do mar haviam carinhosamente preparado.
Nascimento agradece em lágrimas, tal a emoção que não pode dominar.
A homenagem é também à Cearense Libertadora, cujo hino é entoado delirantemente.
Depois de tudo, a jangada revolucionária vai para o Museu Nacional, colocada sobre rodas e puxada por vinte e quatro libertos, trajados de branco, com as cores da sociedade carbonária de João Cordeiro. Seria daí retirada e desapareceria.
O Imperador, em pessoa, recebe o jangadeiro no Paço de São Cristóvão, falando-lhe animadamente durante vinte minutos, sobre assuntos da Abolição.
Mas a batalha vai prosseguir ainda cruenta, porque a conjura escravista nada cedia; pelo contrário, mais se enfurece à proporção que experimenta uma derrota.
O presidente da Confederação, o indômito João Clapp, depois de ler o relatório das atividades sociais do ano de 1883 e maio de 1884, durante o qual pudera anunciar algumas “gloriosas conquistas,” — não esquece de prevenir: “Ainda temos muito que fazer e muito que sofrer.”
E adverte mais: “É possível que a cegueira do interesse particular converta as ameaças em fatos. O país inteiro está presenciando envergonhado a organização de clubes e de planos sanguinários, para reagir contra a marcha vitoriosa e pacífica das falanges abolicionistas.”
Efetivamente, no Parlamento porfiavam os escravocratas e os negociantes de negros em protelar o momento decisivo.
As correntes antípodas – abolicionistas e escravistas, sem cessar, atritam-se nas bancadas da Câmara e do Senado, e o clima ainda é visivelmente favorável à procrastinação. A remoção da montanha continuava difícil, alfinetada de estorvos de toda ordem.
As tropas da libertação, no entanto, mais se uniam e se estendiam na tática nova que os cearenses ensinaram. Os processos de combater serão agora aqueles mais audazes utilizados pelos pioneiros da Libertadora.
Patrocínio, João Clapp e Manuel Joaquim Pereira traçam planos “empregando os meios adotados na província do Ceará, para o mesmo fim.”
Daí nasceria a Confederação, com estatutos organizados pelo Tigre e por André Rebouças, servindo ela de bússola às vontades amantes da bela campanha, a cada hora mais convergentes em procura de homogeneidade indispensável.