Antigamente, quando alguém queria esculhambar com um advogado, dizia que ele obtivera seu diploma em um curso por correspondência.
Depois, apareceu uma variante: dizia-se que o advogado a quem se queria avacalhar frequentara uma faculdade “de final de semana”.
Agora, pelo currículo apresentado ao Senado pelo desembargador Kassio Nunes Marques – indicado por Bolsonaro para substituir o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello – sabemos que tais assertivas não são mais injuriosas. A julgar pelo currículo de Kassio, indicado ao maior cargo do Judiciário, passaram, nos últimos tempos, a constituir a mais comezinha realidade.
Segundo o currículo do candidato de Bolsonaro a membro do tribunal máximo do país, ele fez mestrado, doutorado e dois pós-doutorados durante as férias.
O próprio Kassio Nunes Marques escreveu no seu currículo: “Todos estes cursos foram realizados em período de férias e sem nenhum pedido de afastamento para licença”.
Tanto o mestrado nas férias, quanto o doutorado nas férias, e mais os dois pós-doutorados nas férias, foram realizados em universidades estrangeiras.
De acordo com o currículo, entregue por Kassio Nunes Marques ao Planalto – e encaminhado pelo governo ao Senado – foi esta a trajetória da pós-graduação do desembargador:
– nas férias de 2013, 2014 e 2015, fez mestrado em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal;
– nas férias de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, fez doutorado na Universidade de Salamanca, Espanha, tendo defendido sua tese no último dia 25 de setembro, ou seja, há duas semanas.
A tese ainda não foi registrada pela Universidade de Salamanca, segundo informa o próprio desembargador.
Apesar de somente ter defendido sua tese de doutorado há duas semanas, o currículo encaminhado por Kassio Nunes Marques declara que ele concluiu dois pós-doutorados nas férias de 2017, 2018, 2019 e 2020.
Ou seja, concluiu dois pós-doutorados sem ter concluído, antes, o doutorado.
Esses títulos de pós-doutorado seriam:
– curso em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca;
– curso em Direito Constitucional e Civil pela Universidade de Messina, Itália.
Ambos feitos durante as férias, segundo o indicado por Bolsonaro ao Supremo.
Como observou o professor Diego Werneck Arguelhes, do INSPER:
“Marques mostra desconhecimento da academia ao tratar ‘pós-doutorado’ como um ‘curso’, para o qual haveria um diploma correspondente de ‘pós-doutor’. E afirma que, na Europa, seria possível ‘fazer o pós-doutorado antes do doutorado’, dentre outras desinformações” (cf. Diego Werneck Arguelhes, Análise: Títulos acadêmicos, notável saber jurídico e o caso de Kassio Marques, OESP 08/10/2020).
Quanto à sua tese de doutorado, até agora Kassio Nunes Marques não liberou o seu texto ao público.
ILIBADO
Antes de conhecida a versão encaminhada ao Senado do currículo do indicado por Bolsonaro ao STF, havia já os seguintes problemas, na versão anterior:
– pelo menos 13% da dissertação de mestrado de Kassio Nunes Marques é plágio de artigos do advogado Saul Tourinho Leal. Não eram citações, mas reproduções do texto, até mesmo com idênticos erros de digitação;
– a pós-graduação em “Contratación Pública” pela Universidad de La Coruña, Espanha, era uma falsificação.
A Universidad de La Coruña informou que o curso não existia e jamais existiu naquela instituição. Nos registros da universidade espanhola, Kassio Nunes Marques frequentou um curso de cinco dias em La Coruña.
No currículo do desembargador, esse curso de cinco dias foi transformado em “pós-graduação”, segundo ele por um “erro de tradução”…
Por fim (ou por agora): sobre o “pós-doutorado”, que mencionamos acima, em Direito Constitucional e Civil pela Universidade de Messina, Itália, Kassio Nunes Marques, imprensado pelas contestações desse “título” inexistente, confessou que frequentou “cinco dias de aula, em formato intensivo” (cf. OESP 09/10/2020, A reputação e o currículo).
REQUISITOS
O que alguém precisa para ser ministro do tribunal máximo do país, o Supremo Tribunal Federal (STF), aquele que alguns chamam de “excelso pretório”?
Segundo a Constituição da República:
“Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.”
O que corresponde à tradição brasileira, tanto quanto aos interesses da Justiça.
Não foram por outras razões que o presidente Afonso Pena indicou Pedro Lessa; ou o presidente Getúlio Vargas indicou Nélson Hungria e Orozimbo Nonato; ou o presidente Juscelino indicou Victor Nunes Leal e Cândido Mota Filho; ou o presidente João Goulart indicou Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, somente para citar alguns exemplos.
Esses, e inúmeros outros, ministros do STF foram escolhidos por serem juristas e homens honrados.
Porém, Bolsonaro disse que prefere nomear para o Supremo quem toma tubaína com ele – assim como Lula preferiu nomear um advogado seu e do PT, Dias Toffoli, que hoje é um vergonhoso bolsonarista no STF.
Em suma, seu critério é o da copa e cozinha. O que é inevitável para quem acha que a função da Justiça é proteger da lei a si próprio, aos seus filhos e aos seus asseclas, milicianos e políticos.
Daí, segundo o próprio Bolsonaro, saiu a indicação de Kassio Nunes Marques.
CARLOS LOPES