Histeria diante da possibilidade de denúncias das mentiras usadas para atacar a Síria leva EUA a censurar participação do ex-presidente Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ)
A questão da manipulação, pelos países ocidentais, da Organização para a Proibição de Armas Químicas, que veio à tona no ano passado quando inspetores da organização responsáveis pelo trabalho de campo em Douma, na Síria, denunciaram que suas conclusões haviam sido ignoradas ou adulteradas, voltou à tona no Conselho de Segurança da ONU no dia 6 de outubro, com o veto, de parte dos EUA, pela primeira vez na história do organismo, de um convidado, no caso o brasileiro José Bustani, primeiro diretor-geral da OPAQ.
Bustani, que foi derrubado do cargo em 2002 por complô montado por Washington, por atrapalhar os planos de invasão do Iraque ao convidar o país árabe a aceitar inspeções, era convidado da presidência rotativa do Conselho neste mês de outubro, que cabe à Rússia, e a reunião tinha o objetivo de discutir o chamado ‘dossiê químico da Síria’, principalmente Douma.
Proibir o ex-diretor geral da OPAQ de falar foi uma “vergonha e desgraça”, denunciou o embaixador russo Vassili Nebenzia. “O que aconteceu agora é uma prova mais triste de que as delegações ocidentais temem a verdade incômoda”, acrescentou.
A Rússia divulgou em sua página na ONU a declaração de Bustani na íntegra. Votaram com Washington a França e o Reino Unidos (aliás, cúmplices no ataque ilegal à Síria), mais Bélgica, Alemanha e Estônia. Sob o pretexto do “ataque de Douma’ e à revelia da Carta da ONU, o regime Trump, mais Macron e May, bombardearam a Síria com uma enxurrada de mísseis (sucateados pela defesa antiaérea propiciada pelos russos).
Na semana anterior, o Conselho havia ouvido o professor do Massachussetts Institute of Tecnology e expert em armas, Ted Postol, e o inspetor da OPAQ que comandou a investigação in loco em Douma, e cujas descobertas foram censuradas e adulteradas, Ian Henderson.
O motivo da participação de Bustani era fazer um apelo ao atual diretor, Fernando Arias, para que ouvisse os inspetores cuja denúncia se tornou pública e, ao mesmo tempo, advertir que “a independência, imparcialidade e profissionalismo de parte do trabalho da organização está sendo seriamente comprometida, possivelmente sob pressão de alguns Estados membros.”
Memorando interno dos inspetores que foram ao local, e que foi vazado, revela que os recipientes com gás cloro provavelmente foram colocados no local do “ataque” e não despejados do céu pela ‘aviação síria’.
O que foi excluído do relatório final, do qual foram afastados os investigadores originais, e uma autoridade da OPAQ ordenou a remoção “de todos os vestígios” da opinião divergente, de acordo com o WikiLeaks.
Como Bustani assinalou ao se apresentar, “fui destituído do cargo após uma campanha orquestrada pelos Estados Unidos em 2002 por, ironicamente, tentar defender a Convenção de Armas Químicas. Minha remoção foi posteriormente considerada ilegal pelo Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho”.
O diplomata brasileiro acrescentou que a OPAQ continua em seu coração. “Aceitei o cargo de Diretor-Geral justamente porque a Convenção de Armas Químicas não era discriminatória. Tive imenso orgulho da independência, imparcialidade e profissionalismo de seus inspetores e equipe mais ampla na implementação da Convenção de Armas Químicas”.
Ele registrou ainda que, na OPAQ, “nenhum Estado Parte deveria ser considerado acima dos demais e a marca registrada do trabalho da Organização era a imparcialidade com que todos os Estados Membros eram tratados, independentemente de tamanho, poder político ou influência econômica”.
As circunstâncias que cercam a investigação da OPAQ sobre o alegado ataque químico em Douma, Síria, em 7 de abril de 2018, são “particularmente preocupantes”, enfatizou o diplomata. São – acrescentou – preocupações que emanam “do próprio coração da Organização, dos próprios cientistas e engenheiros envolvidos na investigação Douma”.
Ele lembrou como, em outubro de 2019, a convite da Fundação Courage participou de um painel, junto outras personalidades internacionais das áreas de direito internacional, desarmamento, operações militares, medicina e inteligência, convocado para ouvir as preocupações de um inspetor da OPAQ referentes ao incidente de Douma.
Como destacou Bustani, o especialista “forneceu evidências convincentes e documentais de conduta altamente questionável e potencialmente fraudulenta no processo investigativo”, o que levou o Painel, em uma declaração pública conjunta a manifestar “alarme sobre práticas inaceitáveis na investigação do alegado ataque químico em Douma”.
O Painel apelou ainda à OPAQ que permitisse que “todos os inspetores que participaram da investigação Douma apresentem e relatem suas observações divergentes em um fórum apropriado dos Estados Partes da Convenção de Armas Químicas, em cumprimento ao espírito da Convenção”.
O próprio Bustani, que sempre considerou a OPAQ um paradigma do multilateralismo, registrou ter ficado pessoalmente muito perturbado pelo testemunho e evidências apresentadas.
Ele acrescentou esperar que a explicitação dessas preocupações catalisassem “um processo de renascimento do órgão, para que voltasse a ser independente e não-discriminatório”.
Em Novembro do ano passado, carta aberta da Fundação Courage conclamou à restauração da integridade da OPAQ e reconquista da confiança pública. Petição que tinha como signatários figuras como Noam Chomsky, Professor Emérito do MIT; Marcello Ferrada de Noli, Presidente dos Médicos Suecos pelos Direitos Humanos; Coleen Rowley, denunciante e Personalidade do Ano em 2002 pela Time Magazine; Hans von Sponeck, ex-secretário-geral adjunto da ONU; e o diretor de cinema Oliver Stone.
Bustani assinalou que, quase um ano depois, “a OPAQ ainda não respondeu a esses pedidos, nem à crescente controvérsia em torno da investigação Douma. Em vez disso, ela se escondeu atrás de uma parede impenetrável de silêncio e opacidade, tornando impossível qualquer diálogo significativo”.
Na única ocasião em que a OPAQ abordou as preocupações dos inspetores em público – acrescentou o primeiro diretor-geral da organização -, foi apenas para acusá-los de quebra de sigilo.
“Obviamente, os inspetores – e de fato todos os membros da equipe da OPAQ – têm a responsabilidade de respeitar as regras de confidencialidade. Mas a OPAQ tem – como responsabilidade primária – assegurar fielmente a implementação das disposições da Convenção de Armas Químicas (Artigo VIII, parágrafo 1)”.
“Sem transparência não há confiança”, alertou Bustani. “E a confiança é o que une a OPAQ. Se os Estados-Membros não confiarem na justiça e objetividade do trabalho da OPAQ, sua eficácia como fiscalizador global de armas químicas ficará seriamente comprometida”, sublinhou.
Transparência e confidencialidade “não são mutuamente exclusivas”, apontou Bustani. Mas alertou que a confidencialidade não pode ser invocada “como cortina de fumaça para comportamento irregular. A Organização precisa restaurar a confiança pública que já teve e que ninguém nega agora está diminuindo. É por isso que estamos aqui hoje”.
Bustani reiterou que “não seria apropriado aconselhar ou até mesmo sugerir como a OPAQ deveria fazer para reconquistar a confiança pública”, mas disse que gostaria de fazer “um apelo pessoal” a Fernando Arias, atual diretor-geral da OPAQ.
“Os inspetores estão entre os ativos mais valiosos da Organização”, observou. “Como cientistas e engenheiros, seus conhecimentos especializados e contribuições são essenciais para uma boa tomada de decisão. Mais importante ainda, suas opiniões não são contaminadas pela política ou pelos interesses nacionais. Eles contam apenas com a ciência. Os inspetores da investigação Douma têm um pedido simples – que eles tenham a oportunidade de se reunir com você para expressar suas preocupações pessoalmente, de uma maneira que seja transparente e responsável”.
“Este é certamente o mínimo que eles podem esperar. Com grande risco para eles próprios, eles ousaram se manifestar contra possíveis comportamentos irregulares em sua Organização, e é sem dúvida do seu, da Organização e do interesse mundial que você os escute. A própria Convenção demonstrou grande capacidade de previsão ao permitir que os inspetores apresentassem observações divergentes, mesmo em investigações de alegados usos de armas químicas (parágrafos 62 e 66 da Parte II, Ver. Anexo). Este direito é, e cito, “um elemento constitutivo de apoio à independência e objetividade das inspeções”.
“Ouvir o que seus próprios inspetores têm a dizer seria um primeiro passo importante para reparar a reputação prejudicada da Organização. Os inspetores dissidentes não alegam estar certos, mas querem ter uma audiência justa. De um Diretor-Geral para outro, respeitosamente solicito que conceda a eles esta oportunidade. Se a OPAQ está confiante na robustez de seu trabalho científico sobre Douma e na integridade da investigação, então ela tem pouco a temer em ouvir seus inspetores. Se, no entanto, as alegações de supressão de evidências, uso seletivo de dados e exclusão de investigadores-chave, entre outras alegações, não são infundadas, então é ainda mais imperativo que a questão seja tratada de forma aberta e urgente”.
“O mundo precisa de um cão de guarda de armas químicas confiável. Tínhamos um, e estou confiante, Sr. Arias, de que providenciará para que o tenhamos novamente”.