
É compreensível o recato de certos órgãos de imprensa – e certas figuras públicas – na referência ao senador Chico Rodrigues como aquele que “escondeu dinheiro na cueca”.
O caso, evidentemente, foi bem além – ou bem abaixo – da cueca.
Na verdade, o caso é tão escatológico, tão despudorado, que torna-se difícil encontrar um modo educado – possível de ser mencionado, digamos, em uma família mais ou menos normal – para descrever os recônditos do senador onde o dinheiro foi encontrado.
É tudo, concordamos, muito nojento. A tal ponto que alguém lembrou do suplício que deve ter sido para os agentes e o delegado da Polícia Federal, lidar com a situação dentro da casa do senador.
Daí, os noticiários revelarem uma pudicícia que parecia, até há pouco, tão fora de moda quanto a palavra pudicícia.
Entretanto, esse mais fundo enterramento do dinheiro público e da moral política governista, revela muito sobre o que é o bolsonarismo. Trata-se de algo mais tosco, mais sem decência e mais sem limites que todas as ondas de corruptos anteriores.
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), tem razão ao dizer que o desvio de dinheiro destinado ao combate da epidemia de COVID-19 é algo que, em matéria de tipologia criminal, vai além da corrupção, aproximando-se do assassinato.
Porém, no caso do “amigo de 20 anos” de Bolsonaro, existe ainda um elemento extra: a sofreguidão por dinheiro que não respeita, nem ao menos, certas inibições que são comuns à maioria das pessoas.
As ligações freudianas entre dinheiro e fezes, ou “fase anal” e sovinice ou ganância, ultrapassaram o plano psicológico e se tornaram reais, no sentido material da palavra.
Existe algo mais primitivo e mais truculento do que isso?
Expressões vulgares como a famosa imagem de políticos ou especuladores “enchendo o rabo de dinheiro”, deixaram de ser imagens para se tornarem um fato do cotidiano.
Mas não é esse o mesmo fundo baixo, o mesmo submundo, dos negócios do gabinete de Flávio Bolsonaro, dos depósitos de Queiroz na conta da primeira-dama, da lavagem na chocolataria do zero-um, das compras de imóveis sempre em dinheiro vivo?
Chico Rodrigues é próximo de Bolsonaro e família não apenas na corrupção, mas no farisaísmo – quase que se poderia dizer, farisaísmo alucinado, tão distante o que se diz é da realidade. Aliás, é o oposto da realidade.
O senador dos cofres absconsos é o amigo que, segundo Bolsonaro, tinha “quase uma união estável” com ele (v. HP 15/10/2020, Bolsonaro confessa “união estável” com senador que ocultou R$ 30 mil nas nádegas).
Chico Rodrigues era tão amigo de Bolsonaro que até mesmo abrigava o parceiro inseparável de Carlos Bolsonaro, o priminho Léo Índio, em seu gabinete, com um salário de R$ 23 mil – e é sintomático que ninguém tenha perguntado sobre o que fazia Léo Índio no gabinete de Rodrigues, pois já estava explicado: o que ele fazia lá, era receber R$ 23 mil por mês.
Esse é, também, o mesmo senador que, em discurso em que apoiou ardorosamente Bolsonaro, no mês de fevereiro do ano passado, disse que “a palavra que nosso País mais precisa hoje é ordem. Ordem para acabar com a corrupção que se instalou em tantos setores da vida do nosso tão amado Brasil e que tem contaminado pelo mau exemplo levas e mais levas de políticos, servidores públicos e empresários que não têm o mínimo pudor e vergonha de causar tantos danos ao nosso povo”.
Causa espécie, portanto (ou, para usar uma expressão muito adequada do ex-jogador Casagrande, “eu fico assustado com o que acontece no Brasil”), ver senadores indignados com a decisão do ministro Barroso de afastar o senador por três meses do Congresso Nacional – apesar da decisão sobre isso necessitar de referendo do próprio Senado.
Por exemplo, disse o senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), em áudio enviado ao grupo de mensagens dos senadores: “Não tem nada que desabone Chico Rodrigues. Espero que o Davi [Alcolumbre, presidente do Senado] realmente tome providências e dê amparo legal ao nosso amigo e companheiro”.
Depois de classificar de “absurda” a decisão de Barroso, o senador goiano diz que “não podemos aceitar de forma alguma” e chama Chico Rodrigues de “nosso amigo e companheiro de todas as horas” (para o leitor que quiser conferir, eis o áudio gravado pelo senador Vanderlan Cardoso, recuperado pelo site “O Antagonista”).
Onde nós estamos? Ou aonde nós chegamos?
Com Bolsonaro, sua família e seus parceiros (“quase uma união estável”), estamos, ou chegamos, ao mais baixo estado civilizatório – vale dizer, moral – da nossa História.
Trata-se de um patamar mais baixo que aquele, retratado por Macedo, do governo colonial corrupto do Conde da Cunha, vice-rei do Brasil, e seu degenerado lugar-tenente, Alexandre de Meneses. A propósito, o povo do Rio de Janeiro recitava, na época (1763-1767), alguns versinhos que têm algo a ver com o assunto atual:
Um dia o conde da Cunha
Em dois seu nome cortou:
Do primeiro se enjoou,
O segundo nada impunha;
Mas o Meneses matreiro
Dele fez comprida unha,
Furtando o u do primeiro.
(v. Joaquim Manuel de Macedo, As Mulheres de Mantilha)
Mas isso foi há mais de 250 anos, há mais de dois séculos e meio, quando o Brasil era uma colônia de Portugal.
A distância no tempo, demonstra o quanto Bolsonaro e seu governo são uma regressão ética, moral e civilizatória. A começar por mandar às favas (sejamos educados) qualquer valor republicano. Regredimos, nesse campo, ao pior período do Brasil-colônia.
Mas, talvez, estejamos sendo injustos: não consta que o conde da Cunha, apesar do nome, tenha realizado uma proeza como a do senador Chico Rodrigues no governo Bolsonaro.
CARLOS LOPES