No debate de quinta-feira (22) à noite, o presidente e candidato à reeleição Donald Trump saiu sem conseguir aquilo de que precisava desesperadamente – levar às cordas o oponente democrata, Joe Biden, para reverter as pesquisas – e ainda fracassou em falar a outros que não aquele eleitorado que já o apoia.
Assim, a 11 dias do dia final do pleito, a eleição continua sendo um referendo sobre o enfrentamento da pandemia nos EUA pelo governo Trump, seu pavoroso saldo de mortos e a devastação em curso da economia sob a Covid, que levou por terra o conto do vigário de que a especulação desvairada em Wall Street era ‘a melhor economia da história do país’.
O debate ocorreu em Nashville, Tennessee, quando 47 milhões de pessoas já votaram por antecedência, um recorde absoluto, e com a porcentagem de indecisos bastante reduzida, segundo as projeções.
O último debate – na verdade, o único, já que o primeiro foi transformado por Trump quase numa briga de rua e o segundo foi cancelado – resgatou a civilidade, graças à elogiada condução da jornalista da NBC, Kristen Welker.
E, claro, das novas regras e do botão de ‘mudo’: os microfones eram silenciados durante as declarações de abertura dos candidatos sobre cada um dos seis tópicos, minimizando as interrupções e permitindo que o público entendesse o que estava sendo dito.
Com as pesquisas a seu favor – na frente no voto popular e em vantagem na disputa no colégio eleitoral, que é a que vale -, para Biden até um empate já seria de bom tamanho.
O jogo ainda não acabou porque em alguns Estados campos de batalha, aqueles que ora dão democrata, ora republicano, a diferença, embora favorável a Biden, ainda está dentro da margem de erro.
Outro aspecto em que Biden foi amplamente superior foi na capacidade de se dirigir a todos os norte-americanos, não apenas os que se identificam com ele.
Assumiu o compromisso de ser presidente de todos os norte-americanos e rejeitou a insistência de Trump de dividir o país em estados vermelhos (cor dos republicanos) e estados azuis (democratas).
INVERNO SOMBRIO
“Qualquer pessoa responsável por tantas mortes não deve permanecer presidente dos Estados Unidos da América”, afirmou Biden, sobre os 220 mil mortos da pandemia, e com o país na iminência de sofrer mais 200 mil durante o “inverno sombrio” que se avizinha.
“Um inverno sombrio. E ele não tem um plano claro, e não há qualquer perspectiva de que haverá uma vacina disponível para a maioria do povo americano antes do meio do próximo ano”, enfatizou o candidato democrata. Ele voltou a defender o uso obrigatório de máscaras e a ampliação de testes.
Na defensiva sobre a questão da Covid, Trump se virou como pôde, buscando passar que a diferença entre ele e os democratas é que estes queriam manter o “fechamento da economia”, uma cura “pior que a doença”.
Foi rebatido por Biden, que respondeu que queria “fechar o vírus”, não a economia. E que era Trump que vinha se recusando a fornecer os recursos para que os pequenos negócios reabrissem com segurança, para que as escolas reabrissem com turmas menores e mais professores, que os Estados tivessem dinheiro para contratar mais pessoal da saúde, mais professores, mais bombeiros. Que os democratas tinham aprovado o segundo projeto de ajuda emergencial, barrado pelo Senado sob controle republicano.
O candidato democrata contestou a declaração de Trump de que a vacina já estava chegando, que a epidemia estava indo embora, e lembrou que os contágios subiram para 60 mil diários, e o total de mortos voltou a subir para 1.000 por dia. “Este é o mesmo sujeito que disse que tudo terminaria na Páscoa”, assinalou.
Biden também denunciou que Trump que estava querendo acabar com o direito ao atendimento em caso de doença pré-existente, o que era mais absurdo em se tratando de uma epidemia e quando 10 milhões de pessoas e suas famílias perderam o plano de saúde, por terem sido demitidas. E aproveitou para denunciar as investidas de Trump contra a Previdência Social e o Medicare, a saúde pública para idosos.
SEM NOCAUTE
Outro aspecto do desempenho de Trump no debate foi que, apesar de toda a sua disposição, ele não conseguiu nocautear Biden com as provocações como a de que o democrata havia recebido dinheiro da corrupção da Ucrânia e da China ou que ia acabar “com os planos de saúde”. Ou ainda, com o “fracking na Pensilvânia”.
Nos últimos dias, a campanha de Trump já vinha tentando encaixar a pecha de corrupto na família Biden, com uma história escabrosa sobre um notebook que supostamente o filho Hunter teria deixado numa oficina e que comprovaria tudo.
O ponto fraco da acusação era ser feita por uma figura como Trump, que sempre se gabou da esperteza e de ganhar dinheiro fácil.
“Eu não peguei um único centavo de qualquer país. Nunca”, sublinhou Biden.
O revide dele deu para o gasto: “foi tudo plantado pelos russos” – a explicação padrão dos democratas sobre qualquer questão incômoda – e é Trump que esconde o imposto de renda e paga 750 dólares. (Enquanto, como revelou o New York Times, Trump pagou US $ 188.561 em impostos na China e manteve uma conta lá no período 2013-15).
Mas Biden acabou com a discussão ao se dirigir diretamente às câmeras, ou seja, ao público, dizendo que a questão que interessava mesmo, não era a própria família dele, ou a de Trump: “é sobre sua família. E sua família está sofrendo muito”. Só os muito ricos é que se saíram bem sob Trump, apontou.
“O MENOS RACISTA”
Depois dos maiores protestos em 50 anos nos EUA contra o racismo e das investidas de Trump contra os manifestantes, aos quais chamou de “turbas violentas”, e seus acenos aos supremacistas brancos, foi o cúmulo do cinismo o presidente bilionário se arvorar no debate de ser o “melhor presidente” para os afroamericanos “com a possível exceção de Lincoln”.
Chegou até mesmo a se declarar “a pessoa menos racista nesta sala” e a se apresentar como opositor do “encarceramento em massa dos negros”.
O que foi desmascarado por Biden, que lembrou o papel de Trump para a condenação dos cinco inocentes do Central Park. Trump é “um dos presidentes mais racistas que já tivemos na história moderna”, acrescentou.
“Ele joga combustível em cada incêndio racista”, apontou, se referindo à reação de Trump contrária aos protestos. “Ele tem um apito de cachorro [racista] que é maior do que uma buzina de nevoeiro”.
Biden também marcou pontos ao denunciar a cruel separação de mais de 500 crianças dos pais imigrantes pelo governo Trump, cujos pais não se sabe onde estão – e provavelmente foram deportados do país. Eram bebês quando foram separados. “Isso é criminoso”, afirmou. “Quem criou as gaiolas, Joe?”, revidou o republicano.
SALÁRIO MÍNIMO
Na questão da economia, Biden também teve um bom desempenho, defendendo o salário mínimo de 15 dólares a hora como um elemento imprescindível para reativar o consumo e a economia, um plano de investimento na infraestrutura, que gere empregos de bons salários através da transição para uma geração de energia mais limpa, e que dê conta da preservação ambiental.
Trump tentou atribuir a Biden a intenção de “fechar a indústria do petróleo”, “proibir o fracking”. A insistência no fracking tem como pano de fundo a necessidade de virar a Pensilvânia, onde Biden está com uma vantagem sustentada, e que tem no Colégio Eleitoral 20 votos.
“Eu faria a transição da indústria do petróleo, sim”, disse Biden, assinalando o problema da poluição. “Basicamente, o que ele está dizendo é que destruirá a indústria do petróleo”, disse Trump. “Você vai se lembrar disso, Texas? Você vai se lembrar disso, Pensilvânia, Oklahoma, Ohio?”
Biden retrucou, dizendo que vai manter o fracking, exceto em terras federais, e reiterou que o problema ambiental é global e que Big Oil precisa ser substituído, ao longo do tempo, por energia renovável.
CIVILIDADE
Nas condições de extrema polarização nos EUA, com o país dividido entre os que usam máscara facial e os de boné vermelho MAGA (Make America Great Again), prisões de milicianos que tramavam sequestro e assassinato de governadores, conclamações em comícios de “prendam-nos todos” e que as eleições “serão fraudadas”, convocação de pessoal armado para ‘fiscalizar’ locais de votação, colocação de caixas de coleta de votos piratas, chamados à ‘lei e ordem’ e contra ‘as turbas socialistas e comunistas’, ameaças de não reconhecer o resultado das eleições e berros de “mais 12 anos” na presidência, resulta que um simples debate civilizado entre candidatos é um jato de água fria em tamanha fervura e histeria.
Como destacou o professor universitário Marc Edelman no portal Common Dreams, ao final da II Grande Guerra Mundial, quando os Estados Unidos ao lado da URSS derrotaram a Alemanha nazista, “quase todos os americanos eram inequivocamente antifascistas”.
Agora – denunciou -, “para aqueles que estão no poder, ‘antifascista’ se tornou um termo de opróbrio. Isso pode ser porque o fascismo se aplica a eles também”. Os veteranos da II Guerra Mundial “devem estar se revirando nos túmulos”, concluiu Edelman, depois de lembrar que hoje “alguns de seus netos se tornaram Proud Boys, ‘milícias patriotas’ e neonazistas”.