O artigo abaixo foi publicado por Graciliano Ramos em 1935, no “Diário de Pernambuco”, de Recife, edição de 10 de março.
Na última terça-feira, 27 de outubro, transcorreram 128 anos do nascimento de Graciliano, em Quebrangulo, Alagoas.
A reprodução deste artigo é, portanto, nossa homenagem.
Em outras oportunidades, já reproduzimos textos de Graciliano – alguns, já colocados em nosso site atual, outros ainda aguardando.
Desta vez, escolhemos “O romance do Nordeste” exatamente por expressar um momento essencial da literatura brasileira, após a Revolução de 30.
O romance de José Lins do Rego, Jorge Amado, Amando Fontes, Rachel de Queiroz, e, claro, Graciliano Ramos, não se impôs – e formou a prosa brasileira posterior, inclusive escritores de outras partes do país, por exemplo, um mineiro, Guimarães Rosa – sem uma titânica luta dentro da própria literatura.
A questão que diferenciava esses romancistas dos antecessores – por exemplo, de Graça Aranha, cujo Canaã leva uma estocada no texto de Graciliano (“Dois estrangeiros, perdidos nas brenhas, discutiam política, sociologia, trapalhadas com pedantismo horrível que se estiravam por muitas dezenas de folhas. Via-se perfeitamente que o autor nunca tinha ouvido nada semelhante ao palavrório dos seus homens.”) – ou dos modernistas Oswald e Mário de Andrade, era a tentativa de construir uma literatura nacional, uma literatura que viesse de dentro, que expressasse o nosso ethos, uma literatura que não fosse literatura importada da Europa escrita em português ou, no melhor dos casos, em algo mais ou menos próximo ao português do Brasil. Quando não em uma língua artificial, pseudo-popular, como fizeram alguns modernistas.
Essa tentativa do romance nordestino – aliás, inteiramente bem sucedida – sofreu ataques daqueles que não conseguiam deixar os modelos externos e faziam uma literatura que mais parecia um pastiche.
O exemplo mais característico, como está em uma das notas ao texto de Graciliano, é Octávio de Faria, autor de um interminável “romance cíclico” – A Tragédia Burguesa, do qual completou 13 volumes, dos 20 que anunciara – e oráculo literário da direita católica (Álvaro Lins, embora elogiasse o romance de Octávio de Faria, classificou sem inibições a filiação ideológica do autor, isto é, a adesão de Faria ao fascismo).
Desse grupo católico, ferozmente oposto ao romance nordestino, sobreviveria Lúcio Cardoso, autor de Crônica da Casa Assassinada. Os romances – ou, melhor, o romance – de Octávio de Faria, permanece hoje quase sem leitores (em nossa opinião, muito justamente).
O único grande artista desse grupo, tornou-se grande ao romper com ele, sob influência literária, exatamente, dos escritores nordestinos. Foi um poeta chamado Vinícius de Moraes, que, ao reunir suas obras, preferiu não colocar as da época anterior ao seu rompimento.
Extraímos o artigo de Graciliano do volume Garranchos, coleção de textos organizados por Thiago Mio Salla (1ª edição, Record, 2013). As notas, que conservamos, são do organizador.
É fora de dúvida, hoje, que Graciliano elevou o romance nordestino e brasileiro a um novo patamar artístico. A partir de 1934, com a publicação de São Bernardo, ele torna-se nosso maior romancista, sucedendo Machado e antecedendo Guimarães Rosa.
Porém, sua contribuição como crítico literário – e, mesmo, teórico da literatura nacional – permanece amplamente subestimada.
A reprodução deste artigo de 1935 é muito pouco para superar essa subestimação.
Mas é alguma coisa, nos 128 anos de nascimento do grande Graciliano (C.L.)
O romance do Nordeste
GRACILIANO RAMOS
Nestes quatrocentos anos de colonização literária recebemos a influência de muitos países. Sempre tentamos reproduzir com todas as minudências a língua, as ideias, a vida de outras terras. Não sei donde vem esse medo que temos de sermos nós mesmos. Queremos que nos tomem por outros.
Talvez seja porque entre nós é fácil um preto casar com uma branca, uma preta viver com um branco, sem casar. Os mulatinhos escondem-se dos pais e, com o intuito de clarear a descendência, sujaram-se de pó de arroz e imitaram os modos dos estrangeiros. A religião negra, a arte negra, tudo quanto a África nos podia dar foi sufocado pelo ingênuo desejo de arianizar isto depressa.
Havia em Portugal uma certa quantidade de gramáticos. Arranjamos gramáticos mais numerosos e procuramos há alguns anos escrever melhor que os portugueses. Nunca houve lugar no mundo onde se discutisse tanta sintaxe.
Tudo nos vinha de fora.
Na literatura de ficção é que a falta de caráter dos brasileiros se revelou escandalosamente. Em geral os nossos escritores mostraram uma admirável ignorância das coisas que estavam perto deles. Tivemos caboclos brutos semelhantes aos heróis cristãos e bem-falantes em excesso. Os patriotas do século passado, em vez de estudar os índios, estudaram tupi nos livros e leram Walter Scott. Tivemos Damas das Camélias em segunda mão. Tivemos paisagens inúteis em linguagem campanuda, pores do sol difíceis, queimadas enormes, secas cheias de adjetivos. Descrições. José Veríssimo construiu um candeeiro em não sei quantas páginas.1
Muito pouco — rios, poentes cor de sangue, incêndios, candeeiros.
Os ficcionistas indígenas engancharam-se regularmente na pintura dos caracteres. Não mostraram os personagens por dentro: apresentaram o exterior deles, os olhos, os cabelos, os sapatos, o número de botões. Insistiram em pormenores desnecessários, e as figuras ficaram paradas.
Os diálogos antigos eram uma lástima. Em certos romances os indivíduos emudeciam, em outros falavam bonito demais, empregavam linguagem de discurso. Dois estrangeiros, perdidos nas brenhas, discutiam política, sociologia, trapalhadas com pedantismo horrível que se estiravam por muitas dezenas de folhas. Via-se perfeitamente que o autor nunca tinha ouvido nada semelhante ao palavrório dos seus homens.
Felizmente, vamo-nos afastando dessa absurda contrafação de literaturas estranhas. Os romancistas atuais compreenderam que para a execução de obra razoável não bastam retalhos de coisas velhas e novas importadas da França, da Inglaterra e da Rússia. E como deixaram de ser obrigatórias as exibições da porta do Garnier, os provincianos conservaram-se em suas cidadezinhas, acumulando documentos, realizando uma honesta reportagem sobre a vida no interior.
O trabalho que há no Nordeste é mais intenso que em qualquer outra parte do Brasil, tão intenso que um crítico, visivelmente alarmado com as produções daqui, disse ultimamente que não é só no Norte que se faz literatura.2 Decerto.
Era indispensável, porém, que nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente.
Hoje desapareceram os processos de pura composição literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação.
E é assim que deve ser. Se o Sr. Gastão Cruls vivesse aqui, não teria podido escrever o seu Vertigem3. Apesar de médico e romancista, foi-lhe necessário estar habituado à cidade grande.
Também não seria possível a um carioca, ainda que tivesse visitado o interior do Ceará, conceber e realizar o João Miguel. Para fazê-lo a Sra. Rachel de Queiroz consumiu largo tempo examinando uma prisão da roça, registrou as palavras do cabo Salu, conversou com a Filó, viu como ela enchia o cachimbo de barro.4
O Sr. Lins do Rego criou-se na bagaceira dum engenho, e julgo que nem sabe que é bacharel. Conservou-se garoto de bagaceira, o que não lhe teria acontecido se morasse no Rio, frequentando teatros e metendo artigos nos jornais. Aqui está bem. Quando o cheiro das tachas vai esmorecendo, dá um salto a uma engenhoca, escuta Zé Guedes, seu Lula, a velha Sinhazinha.5
O Sr. Jorge Amado nasceu numa fazenda no sul da Bahia — e por isso escreveu Cacau. Instalou-se depois na ladeira do Pelourinho, 68, onde travou relações com várias criaturas que entraram na composição do seu último livro.6
Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria.
Os nossos romancistas não saíram de casa à procura de reformas sociais: a revolução chegou a eles e encontrou-os atentos, observando uma sociedade que se decompõe.
Está claro que ninguém aqui pretende haver construído monumentos. Estamos ainda no começo, mas um excelente começo que nos dá grande quantidade de volumes todos os anos.
Nessa produção excessiva há falhas, topadas, marcas de trabalho feito à pressa. Naturalmente porque estamos a correr sem nos termos acostumado a andar.
O que é certo é que o romance do Nordeste existe e vai para diante. As livrarias estão cheias de nomes novos. Não é razoável pensarmos que toda essa gente escreva porque um dia o Sr. José Américo publicou um livro que foi notado com espanto no Rio:
— Um romance do Nordeste! Que coisa extraordinária!7
Notas
1Referência ao livro Cenas da Vida Amazônica (1886), de José Veríssimo. Em Infância (1945), ao relembrar sua incursão no mundo das letras e o vaticínio de Mário Venâncio, de que teria um bom futuro como escritor, Graciliano faria remissão a tal obra: “Nunca descreveria um candeeiro como o de metal amarelo que iluminava, com azeite e difíceis pavios, duas páginas das Cenas da Vida Amazônica. Os candeeiros me passavam despercebidos. E seriam necessários” (RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1953, p. 229).
2Possível referência a Octávio de Faria, que, depois de elogiar a explosão e a vitalidade do romance nortista, transformou-se no seu mais ferrenho opositor. Antes da publicação do presente artigo de Graciliano, Faria já havia se posicionado contra os autores nordestinos ao destacar, por exemplo, como os críticos haviam silenciado sobre o livro O inútil de cada um (1933), de Mário Peixoto. Segundo ele, tal obra teria sido ocultada pelo sucesso “desorientador” dos “romances do Norte”, que dominavam o cenário romanesco brasileiro e não davam espaço para que produções sulistas de cunho mais psicológico e menos documental ganhassem visibilidade (FARIA, Octávio de. “O inútil de cada um”. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, ano IV, nº 2, novembro de 1934, p. 48). Seu repúdio à “avalanche de testemunhos” vindos da porção setentrional do país seria sistematizado, alguns meses depois, no polêmico “Excesso de Norte”. Nesse texto, vociferava que o movimento literário nacional havia se deslocado “gritantemente do Centro para o Norte”, depois de um processo que mais se assemelhava a “uma invasão, quase um delírio” (FARIA, Octávio de. Excesso de Norte. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, ano IV, nº 10, julho de 1935, p. 263). Segundo o autor carioca, tendo em vista a prevalência da onda nortista de documentação do interior do país, que dominava o mercado editorial, bons romances do Sul teriam passado despercebidos, como se não existissem, pois não se ajustavam à “mania do momento” de tematizar as mazelas e as particularidades do sertão brasileiro.
3 Livro publicado pela Editora Ariel, em 1934, cuja trama, diferentemente dos romances nordestinos aqui referidos por Graciliano ou mesmo do livro anterior do próprio Cruls (Amazônia Misteriosa. Rio de Janeiro: Castilho, 1925), desenrolava-se no ambiente citadino do Rio de Janeiro, centrando-se no exame meticuloso de uma típica família carioca. Segundo Alcides Bezerra, crítico que apresentava restrições à dita “literatura do Norte”, “Vertigem afasta-nos desse romantismo sertanejista, que já deu tudo quanto tinha de dar. É um romance da cidade, do século XX, de gente civilizada. Um romance genuinamente brasileiro” (BEZERRA, Alcides. “Análise espectral de uma família carioca”. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, ano IV, nº 4, janeiro de 1935, p. 98).
4Ambos personagens de João Miguel, segundo romance de Rachel de Queiroz, lançado em 1932, cuja história se passa num presídio, no interior do Nordeste.
5Tríade de personagens presente no romance de estreia de José Lins do Rego, Menino de Engenho (1932).
6Referência ao romance Suor (1934), sobre o qual Graciliano já havia publicado a crônica “Suor”, estampada na Folha de Minas de Belo Horizonte, em fevereiro de 1935. Tal texto também foi recolhido em Linhas Tortas (1962), com o título “O romance de Jorge Amado”.
7Este espanto pode ser observado, por exemplo, no artigo em que Tristão de Athayde saúda a chegada de A bagaceira, de José Américo de Almeida: “Temos um grande romancista novo. Não sei se velho ou novo de idade. Sei apenas que autor de um livro sensacional (…) — talvez o grande romance do Nordeste pelo qual há tanto tempo eu esperava” (ATHAYDE, Tristão de [Alceu Amoroso Lima]. “Uma revelação”. A Ordem, Rio de Janeiro, 1930. In: ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. lxxxix-xc).