“Interrupção dos testes com a CoronaVac foi decisão política e deixou completamente em segundo plano a questão da população”, acrescentou o epidemiologista da Fiocruz
A entrevista coletiva dos diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), nesta terça-feira (10), para explicar os motivos que levaram o órgão a interromper os testes com a Coronavac, vacina contra a Covid-19, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, reforçou a suspeita de que a agência está agindo sob controle de Jair Bolsonaro. Não houve a menor isenção do órgão ao avaliar a ocorrência de um “evento adverso grave”, na verdade um suicídio, ocorrido no dia 29 de outubro, com um dos participantes da pesquisa.
Nas primeiras horas da manhã desta mesma terça-feira, reforçando a suspeita, Jair Bolsonaro comemorava a interrupção dos testes decidido na véspera. Em resposta a um seguidor que lhe perguntou se a vacina contra a Covid-19 em desenvolvimento pela farmacêutica chinesa e pelo Instituto Butantan fosse eficaz, se ela seria comprada pelo governo federal, ele disse: “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o [governador João] Doria queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la”, escreveu o presidente como resposta. “O presidente [Bolsonaro] disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
O professor da Fundação Osvaldo Cruz, Eduardo Costa, avaliou nesta terça-feira (10), em entrevista ao HP, tanto a coletiva da Anvisa, quanto as comemorações de Bolsonaro nas primeiras horas do dia. “A Anvisa agiu claramente de modo político, visando, na medida do possível, atender aos interesses e a vontade de Jair Bolsonaro, deixando completamente em segundo plano a questão da população”, disse ele.
“Atenderam aos interesses e a vontade de Jair Bolsonaro, deixando completamente em segundo plano a questão da população”
“Não é verdade que sempre se faça dessa forma, com esse tipo de protocolo que se procurou apresentar. A interlocução é sempre importante e este caso particular se revestiu de uma precaução maior, segundo as informações que tenho, por parte do Butantan, em função de questões familiares da vítima. O suicídio é alguma coisa que se preserva, não se procura fazer ampla divulgação”, explicou Costa.
“A Anvisa minimizou o fato dela ter essa informação durante quatro dias e ter um sistema que não está funcionando. Por sinal, temos que chamar a atenção para isso. A situação, tanto da Anvisa quanto do Ministério da Saúde, está crítica. Mais de cinco dias com o sistema inacessível e não atualizado”, denunciou o epidemiologista.
“Eu convivi com situações parecidas dentro da Anvisa”, prosseguiu. “Negocistas existem lá. Mas agora o órgão é dirigido por fora, diretamente pela Presidência da República. Isso é muito grave. O Butantan não tem absolutamente culpa de nada por tudo isso que aconteceu. A Anvisa recebeu as informações na manhã de sexta-feira (06) e não fez nada. Depois não pode fazer uma reunião na segunda à tarde e resolver que vai interromper tudo desse jeito”, prosseguiu Eduardo Costa.
Sobre a comemoração de Bolsonaro, o professor da Fiocruz destacou que “Jair Bolsonaro não age como presidente, isso nós sabemos. Ele é o chefe de uma facção. Alguns podem até pensar que é de uma gangue que utilizou instrumentos inadequados, pelo menos não democráticos, para chegar ao poder, enganando a população brasileira. Ele nega os princípios básicos de um regime democrático”. “Esse comportamento de atacar o povo brasileiro vai decretar a morte desses mesmos que hoje fazem esses ataques”, disse o professor.
“Jair Bolsonaro não age como presidente, ele é o chefe de uma facção”
O que Bolsonaro fez, na realidade, foi colocar seus interesses políticos mesquinhos acima de tudo e comemorou de forma acintosa a morte de um brasileiro, no caso um suicídio. Ele disse que “mais uma vez Jair Bolsonaro ganha”. A morte não tinha absolutamente nada a ver com a pesquisa, mas a Anvisa, inexplicavelmente paralisou os testes. E Bolsonaro, numa orquestração macabra, comemorou a decisão da direção da Anvisa. Sem nenhuma prova, sem nenhum fato, disse que a vacina produzida pelo Instituto Butantan para combater a Covid-19 causa “morte, invalidez, anomalia”.
O pretexto da Anvisa para o que Dimas Covas, diretor do Butantan, chamou de uma “decisão sumária” pela interrupção dos testes, é que teria havido uma morte não explicada.
O Butantan já havia informado, dentro do prazo legal, sobre a ocorrência do fato e garantiu à agência que a morte não tinha nenhuma relação com a pesquisa.
Já se sabia que fora um suicídio, mas por respeito à decisão da família da vitima, não foram dados detalhes, o que está dentro das normas éticas de integrantes de pesquisa clinica.
Mas a Anvisa, agindo de forma diferente da que fez nos casos da AstraZeneca e Janssen, não se interessou em se informar, nem mesmo se o participante havia tomado a vacina ou placebo, e, imediatamente, interrompeu a pesquisa. E, imediatamente, Bolsonaro comemorou.
ANVISA INTERROMPEU A PESQUISA E IMEDIATAMENTE BOLSONARO COMEMOROU
E, mesmo informados oficialmente, na manhã desta terça-feira, de que a morte tinha ocorrido por suicídio, ou seja, sem nenhuma ligação com os testes da vacina, o diretor presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, aquele mesmo que participou sem máscara, ao lado de Bolsonaro, de ato contra a democracia na rampa do Palácio do Planalto em plena pandemia, não reverteu a decisão de suspender os testes. Está a fazer exigências, que não fez para as farmacêuticas AstraZeneca e Janssen. Ficou fazendo elogios rasgados a institutos estrangeiros, com um claro propósito de desdenhar o Instituto Butantan, que é responsável pela produção de mais de 70% das vacinas usadas no Brasil.
Bolsonaro já tinha protagonizado uma cena patética há alguns dias, ao desautorizar de público o seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que havia anunciado na véspera, numa reunião com 24 governadores, a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac. “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado por ela, a não ser nós. Não sei se o que está envolvido nisso tudo é o preço vultoso que vai se pagar por essa vacina para a China”, disse ele.
E prosseguiu, deixando claro que só se preocupa com seus interesses mesquinhos, em detrimento da saúde e da vida da população. “A vacina chinesa de João Doria, qualquer vacina antes de ser disponibilizada à população, deve ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa. O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Minha decisão é a de não adquirir a referida vacina”, afirmou.
Esse é o verdadeiro “fundamento” da decisão da Anvisa de suspender os testes com a vacina do Butantan.
SÉRGIO CRUZ