O professor Eduardo Costa, epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), apresenta em seu artigo “Tiro pela culatra” uma análise dos últimos acontecimentos envolvendo as pesquisas de vacinas contra o novo coronavírus.
Ele apresenta uma visão panorâmica das principais vacinas em desenvolvimento hoje em todo o mundo.
Em sua opinião, Bolsonaro tentou atingir a CoronaVac, vacina desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan, maior produtor de vacinas do Brasil, mas acabou reforçando o apoio à vacina chinesa.
“Bolsonaro projeta petardo contra a Coronavac e comemora por ter acendido o pavio de repercussão mundial favorável à mesma”, diz ele.
“Tudo isso inevitavelmente consolidou o prestígio internacional da Coronavac, em especial após a intervenção, no mesmo dia, do Comité Internacional ‘sugerir’ à ANVISA a retomada do estudo de imediato.
A velha e boa tecnologia é nossa maior esperança em termos de vacina à vista e a curto prazo”, conclui.
Segue o artigo na íntegra
TIRO PELA CULATRA
EDUARDO COSTA (*)
Bolsonaro projeta petardo contra a Coronavac e comemora por ter acendido o pavio de repercussão mundial favorável à mesma.
A interrupção brucutu do estudo de fase 3 da vacina da Sinovac em parceria com o Instituto Butantan disparou reações não alinhadas ao bolsonarismo, inclusive na grande mídia nacional, questionando a medida, a ponto de um ministro do Supremo Tribunal Federal dar prazo de 48 horas para a ANVISA justificar a ação apresentada com roupagem técnica, mas claramente manipuladora.
O ataque bolsonarista, para além de visar a China, também defendia o pré-pago investimento na vacina de Oxford-AztraZeneca, que tivera eventos suspeitos em voluntários, descartados depois de investigações do Comité Internacional de Acompanhamento dos Estudos Clínicos.
Tudo isso inevitavelmente consolidou o prestígio internacional da Coronavac, em especial após a intervenção, no mesmo dia, do mesmo Comité Internacional “sugerir” à ANVISA a retomada do estudo de imediato. De fato, setores que pretendem parecer que não a levam em consideração, por não estar disputando uma corrida de tecnologia genética moderna, como as grandes companhias farmacêuticas, ao contrário do discurso por cooperação para enfrentar a pandemia, estão em Guerra ferrenha por prestígio e Mercado.
“BIG PHARMA” COM BAIXO FATURAMENTO
Há mais de duas décadas a “big pharma” vem reivindicando medidas para aumentar os baixos faturamentos de quem produzia vacinas. No final do milênio passado o faturamento era de apenas 3% do total, em grande parte porque havia produção e desenvolvimento estatal em muitos países e porque o preço unitário de produção de vacinas é baixo pelo volume e desnecessidade de gastos elevados de marketing.
A estratégia de expansão privada incluía tornar, além da proteção de patentes, mais rigorosas as boas práticas de desenvolvimento e produção de vacinas chanceladas pela OMS. O Banco Mundial entrou diretamente no assunto não só pelo financiamento, como até pela indicação e ocupação de cargos em instituições científicas e grupos de trabalho de saúde de organismos internacionais.
Nada disso havia ao tempo dos sucessos da erradicação da varíola, da eliminação da pólio e da raiva humana, do controle da febre amarela, tétano, coqueluche, difteria, rubéola, sarampo, caxumba, hepatite A e B, rotavirus, meningite tuberculosa, meningite meningocócica e por aí vai.
POUCAS NOVIDADES NO MILÊNIO
Aceitando tudo como uma evolução inovadora, surpreende as poucas novidades desse milênio, entre elas, as para o papilloma virus e o haemophilus merecem destaque. A maioria das inovações foram de processo: novas tecnologias para as mesmas vacinas ditas antigas, com um pouco menos de reações adversas ou maiores vantagens econômicas. As tentativas para parasitos mais complexos como a malária e a shistossomíase foram frustradas, como está sendo para o HIV.
O desafio da Dengue até agora é a marca mais decepcionante com a colocação no mercado brasileiro da vacina da Sanofi, sabidamente de baixa eficácia, especialmente nas crianças, recomendada agora só para quem já teve a doença! No entanto, o silêncio sobre a promissora vacina do Butantan-NIH, desde o governicho Temer, é ensurdecedor.
Paralelamente foram sendo substituídas vacinas desenvolvidas e produzidas nacionalmente por importação ou por absorção de novas tecnologias de multinacionais, como aconteceu no Brasil. Sem foco, muitos projetos de instituições científicas nacionais não saem dos laboratórios.
Mais recentemente, a partir do 11 de setembro, os EUA deslanchou uma Guerra contra o terrorismo, aí incluído o biológico. CDC e Walter Reed Foundation foram reforçadas para estudos afetos à segurança biológica. Um dos projetos desenvolvidos foi o relacionado ao estudo dos impactos da pandemia de 1918/19 de gripe “espanhola”.
Nos anos de 2007/08 foram publicados tais trabalhos que analisaram a mortalidade nas cidades dos Estados Unidos objetivando avaliar se houve de influência de medidas não farmacológicas para seu controle.
CONHECIMENTOS GERADOS NA ÁSIA
Quase todas as reações iniciais para controle da COVID-19 no mundo ocidental foram baseados nesses estudos. O conhecimento gerado na China por mais de uma razão, ideológica, política e econômica, foram praticamente ignorados, mas influenciaram as ações em geral bem sucedidas dos países asiáticos.
Antes, de 2004 em diante, começaram os alertas de pandemias originárias da China de vírus da gripe. Primeiro foi o SARS-CoV que desapareceu e logo a gripe aviária, que claramente não tinha potencial epidêmico pela alta letalidade e baixíssima transmissão entre humanos. No entanto, o Brasil adquiriu por precaução 9 toneladas de um pó de oseltamivir estimulado pela OPAS, pelo “risco”.
Mais tarde, seria a vez da gripe suína, que parecia dar o “agora sim!” para exercícios de controle a nível populacional. Vacinas incluindo esse novo vírus da gripe, em processo clássico, foram desenvolvidas e são atualizadas até hoje. Mas, ao mesmo tempo, novas compras de oseltamivir sem comprovação de eficácia foram feitas e vendidas país afora.
Não se sabe o que foi feito com as 9 toneladas do pó branco, difíceis de encapsular ou comprimir.
Nesse interim a África já enfrentava novo surto de Ebola vírus. E esforços estavam sendo feitos para desenvolver uma vacina por vários países. Com alta letalidade, o controle se baseava no isolamento dos doentes e proteção individual. O pior surto de Ebola ocorreu entre 2013-16. Ao final tinha-se mais de uma vacina, mas a epidemia foi controlada sem seu uso.
SURTOS DE EBOLA E MERS FORAM CONTROLADOS ANTES DA VACINA
Do mesmo modo, a vigilância na Ásia sobre novas viroses respiratórias detectou mais uma com eventual potencial pandêmico, sendo uma delas o MERS (SARS-CoV-1) síndrome respiratória do oriente médio. Aqui também as promissoras vacinas com tecnologias genéticas, não puderam ser concluídas, pois o surto foi controlado antes de ficarem prontas.
Assim chegamos hoje de volta a buscar vacinas novas para uma pandemia que, de fato, aconteceu. Já temos cerca de 10 meses e ela não se extinguiu com medidas gerais não farmacêuticas.
As grandes farmacêuticas transnacionais que haviam investido nessas tecnologias de ponta agora podiam retomar seus projetos com boa parte do caminho já feito e ainda sem o retorno esperado. Vale dizer que grande parte dos investimentos para o Ebola, que se reconhecia sem grande futuro mercadológico foram na maior parte das vezes obtidos por doações de fundos internacionais.
Em 10 de janeiro de 2020, a China deu o verdadeiro tiro de largada para a corrida tecnológica/industrial para tratamento, reagentes e vacinas, ao disseminar no mundo científico o código genético do SARS-CoV-2.
CHINA ABRIU O CÓDIGO GENÉTICO DO SARS-COV-2
Com o incentivo da OMS e de vários financiadores foram catalogados cerca de 200 projetos para desenvolvimento de vacinas. A maioria deles partindo de novidades baseadas nos estudos recentes para Ebola e MERS.
Vários artigos desde julho têm colocado a lista e as tecnologias usadas nos dez projetos de vacina mais adiantados do mundo. Baseado nos mesmos em setembro divulgamos uma revisão sobre o assunto* que sumarizamos, além de acrescentar mais uma uma tecnologia que acreditávamos não estar sendo usada.
VACINAS EM DESENVOLVIMENTO
Grupo I – Vacinas de vírus inteiro inativado: O vírus é cultivado em células de laboratório há muito estudadas (que já servem de cultivo para outros vírus vacinais) sofrem o tratamento para inativação, isto é, não se replicarão mais. Esse vacinas são muito seguras, não há possibilidade de produzir uma infecção, podendo ser aplicadas em gestantes e mesmo em pessoas imunodeprimidas. São as mais antigas desde a contra a raiva, tétano e muitas outras. Requerem mais de uma dose. A Coronavac da empresa Sinovac está nesse grupo. Replicagem em células de laboratório Vero e inativação química. Conservação em temperatura de geladeira domestica.
O Instituto Butantã anunciou de início que não haverá royalties a pagar para que receba a tecnologia de produção. Espera poder entregar para o Ministério da Saúde 46 milhões de doses, a partir de dezembro, quando estará apto a seguir produzindo.
Há ainda outras vacinas adiantadas com o vírus inativado menos comentadas no Brasil, inclusive mais duas chinesas. Desconhecemos se alguma usa o SARS-Cov-2 atenuado, método de vacinas virais como da febre amarela e do sarampo que dão longa imunidade com dose única.
Gupo II – Vacina que utiliza um outro microorganismo (vetor) para “expressar” o antígeno vacinal: são vacinas que por engenharia genética modifica um agente que produzirá o antígeno vacinal. São já clássicas as que usam bactérias e fungos como vetores, como a da Hepatite B. Costumam exigir várias doses para consolidar a imunidade.
A partir de esforços para produzir uma vacina contra o vírus Ebola e outra para a MERS foram usados vírus respiratórios humanos benignos (adenovírus do resfriado comum) não replicantes para expressar os antígenos virais. As variantes do vírus que foram bem-sucedidos para a produção dessas vacinas foram os conhecidos como Ad5 e Ad26. O adenovírus usado é inativado, tornando-se não replicante. Há algumas vacinas em fase 3 de estudos com essa tecnologia:
A – A vacina da CanSino (estatal chinesa), utiliza o Ad5 como vetor. Resultados das fases 1 e 2 já foram publicados, estando em desenvolvimento a fase 3 em vários países.
Resultados preliminares mostram ser segura e de imunogenicidade alta. Utilizará também duas doses.
B – A vacina da Jonhson&Jonhson utiliza o Ad26 como vetor. Ainda não conhecemos resultados preliminares de fase 3 que estão sendo realizados em vários países. A Jansen (Johnson&Johnson) está realizando testes no Brasil.
C – A chamada vacina russa, é do Instituto Gamaleya. Utiliza na primeira dose o antígeno obtido com o Ad5 ou Ad26 de vetor e na segunda dose com o Ad que não foi aplicado na inoculação inicial, o que produziria uma imunidade maior e mais duradoura. Uma das vantagens seria que se a primeira injeção produzir alguma imunidade relacionada ao vetor poderia neutralizar parte do efeito da segunda, se fosse utilizado o mesmo vetor.
Os resultados da fase 1 e 2, agora já publicados, segundo comentaristas da John Hopkins, publicados na Lancet, coloca desafios a outras vacinas. Um deles é que a vacina foi produzida não só na forma líquida, como liofilizada, que permite utilização em condições de conservação mais precárias dos países tropicais mais pobres. (A liofilização foi um importante desenvolvimento de cientistas soviéticos na década de 1960 que usado para a vacina de varíola permitiu a erradicação da mesma no mundo).
Estudos de fase 3 em processo, inclusive no Brasil por acordo com o Laboratório Tecpar.
D – A vacina em desenvolvimento mais conhecida no Brasil e possivelmente na Europa pelo apoio que teve, usa um adenovírus não replicante também, porém, não humano, de chimpanzé (ChAdOx1). É a dita de Oxford, desenvolvida em parceria com a biofarmacêutica britânica AstraZeneca (essa tecnologia ainda não teve nenhuma vacina aprovada comercialmente).
O Governo brasileiro, tomando por base a capacidade produtiva de Biomanguinhos/Fiocruz, adquiriu antecipadamente (antes do início da fase 3) 100 milhões de doses e a tecnologia de produção por cerca de 300 milhões de euros, que estariam disponíveis para aplicação em janeiro e dezembro. Os termos do contrato foram denunciados na imprensa mundial e nacional por serem muito restritivos ao Brasil.
Grupo III – O último grupo se refere às que modificam a estrutura genética do vírus reforçando sua capacidade de produzir os anticorpos específicos. São obtidos por ‘espelhamento’ da estrutura do vírus que é RNA para que se comporte como um vírus de DNA. A partir daí são transferidos para um vetor celular para a produção dos antígenos capsulares. Seriam vacinas do tipo DNA ou mRNA, “m” representando mensageiro. As possibilidades futuras de poderem ser usadas em certos tipos de câncer dão esperança.
A – A Moderna americana propõe para a Covid-19 o uso de adenovírus modificado não replicante para cultivo em bactéria e subsequente processo semelhante às demais recombinantes. Ainda não foi aprovada por entidades reguladoras de qualquer país.
Porém já cumpriu a fase 1 e 2 de testes clínicos e está em início de fase 3.
B – A Pfizer surpreendeu ao divulgar recentemente, junto com resultados preliminares estimulantes da fase 3, que seu projeto mRNA pretende fazer com que as próprias células humanas produzam os antígenos que seu próprio sistema imunitário se defenderá produzindo anticorpos. Essa possibilidade tem críticos por precaução, por eventuais efeitos tardios, difíceis de detectar em estudos de curta duração, como são os de fase 3.
GRUPO IV – Outras vacinas em pesquisa são as chamadas ocas, isto é utilizam apenas a capa do vírus ou peptídeos da mesma (VLP). Nesse grupo estão as Soberanas de Cuba e também uma em desenvolvimento pelo Laboratório de Imunologia da USP.
MESMO COM VACINA SERÁ NECESSÁRIA VIGILÂNCIA
Mesmo com a expectativa de sucesso de mais de uma vacina, será pouco provável que produzam imunidade duradoura, ou seja precisarão de reforço ou revacinação, e também que sejam igualmente eficientes em todos os grupos de idade. Isso significa que será muito importante implementar uma vigilância epidemiológica rápida e efetiva.
Portanto, cremos que nenhuma delas, a não ser que uma mutação viral atenue de maneira importante o SARS-CoV-2 circulante no Brasil, eliminará isoladamente a COVID-19 do Brasil de imediato. Primeiro porque as quantidades necessárias farão estender o período a mais de um ano para imunizar a todos os grupos de idade e, segundo, porque a vigilância epidemiológica e uso da vacina na contenção de surtos a cargo do SUS precisará ser eficiente.
Eduardo de Azeredo Costa, MD, MPH, PhD
* Costa, EA – Vacinas para que te quero.
EAC Rev– Rio, 11/11/2020
(*) Eduardo Costa é epidemiologista e professor da Fiocruz