No mês e no dia em que se celebra a Consciência Negra, dois fatos estarreceram o Brasil: o assassinato brutal de João Alberto, um trabalhador negro, espancado até a morte por seguranças do supermercado Carrefour, e o anúncio, feito pelo capitão do mato bolsonarista que preside a Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, da exclusão de expoentes da cultura e da arte brasileiras, como Martinho da Vila, Milton Nascimento, Elza Soares, Gilberto Gil, da lista de personalidades notáveis da instituição.
Os dois acontecimentos tiveram reações imediatas dos brasileiros, declarações de repúdio e enormes manifestações contra o racismo, exigindo justiça.
Se a turbulência das praças
arrastarem as multidões
amotinadas pela fome
lá estará o meu grito de rebeldia.
Em homenagem ao mês da Consciência Negra, a João Alberto, e às personalidades excluídas da lista da Fundação Palmares, não poderíamos deixar de lembrar e homenagear o fundador do Congresso Nacional Afro-Brasileiro, o poeta Eduardo de Oliveira (06/08/1926-12-07-2012), que em todo seu brilhante percurso de vida e militância contra o racismo e o preconceito, honrou a negritude.
Para isso, nada mais propício do que fazer chegar aos leitores o poema de sua autoria, “Lamento Negro” (do livro Banzo/1965), cujos versos nos dizem tanto e com tanta profundidade desse nosso Brasil atual, ameaçado pelo obscurantismo e pelo ódio dos “senhores de escravos” que, não por muito tempo, estão encastelados no poder.
“Não mais farei versos bonzinhos/ para o agrado dos meus novos senhores./ Escuta, “Capitão do Mato”:/ Daqui por diante/ só cantarei o destino da gente/ que estua em meu sangue de negro./ Meu poema terá o gosto amargo/ do desespero do meu povo”.
Ser negro é sentir a pujança telúrica
das raças infelizes.
O poema abaixo foi reproduzido de uma homenagem no Instagram ao professor Eduardo de Oliveira pelo projeto Negros do Bixiga, com ilustração da artista Gabi Barbosa.
ANA LÚCIA
Lamento Negro
(Fragmento)
EDUARDO DE OLIVEIRA
Eu sinto em minhas veias
o grito dos cafezais.
Enxergo em minhas mãos a sombra
dos meus irmãos
vergastados pelo chicote
dos senhores da terra.
Aqueles que carregam o Brasil nas costas
não têm túmulos
nem legendas;
seu sono não é velado,
seu nome ninguém conhece.
Hoje eles seguem a sina
de uma sorte inglória…
de um destino obscuro.
Como as grandes noites
que se debruçam no parapeito
do tempo, para espiar o mundo,
a minha raça vem contemplando
e trabalhando para a ventura alheia,
debruçada na grande noite
do desespero.
Hoje, se o progresso despeja-se
pelos jardins do meu tempo,
a Pátria que agora é minha
chora prantos de café.
A pátria de hoje
É um pedaço de tristeza
e de soluço dos meus avós,
atirada pelas tumbas sem legendas.
Os meus ancestrais
foram vassalos dela…
escravos dela
e se esqueceram de viver.
A grandeza da minha terra
tem seus pés fincados
na alma da minha gente,
na fome da minha gente,
oculta nos presídios,
nos mocambos, nas favelas,
na hemoptise que escreve com sangue
a sorte da minha raça.
Não mais farei versos bonzinhos
para o agrado dos meus novos senhores.
Escuta, “Capitão do Mato”:
Daqui por diante
só cantarei o destino da gente
que estua em meu sangue de negro.
Meu poema terá o gosto amargo
do desespero do meu povo.
[…]
Se a turbulência das praças
arrastarem as multidões
amotinadas pela fome
lá estará o meu grito de rebeldia.
Ser negro é sentir a pujança telúrica
das raças infelizes.
Senzalas, ritos, cafezais
são símbolos de ontem
que relembram escravidão.
Favelas, salários, sindicatos,
são emblemas de agora, chicoteando
o rosto de meus irmãos. […]
(Banzo, 1965)
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