Continuação
“No início de junho de 1961, depois de uma longa e ansiosa avaliação da situação sul-africana, eu e alguns colegas chegamos à conclusão de que, como a violência neste país era inevitável, seria irreal e errado que os líderes africanos continuassem a pregar a paz e a não-violência, em um momento no qual o governo continuava a responder pela força às nossas reivindicações pacíficas”, afirmou Nelson Mandela em sua declaração ao tribunal que o condenou à prisão perpétua por sua luta contra o apartheid na África do Sul
NELSON MANDELA
Cada perturbação apontou claramente para o crescimento inevitável, entre os africanos, da convicção de que a violência era a única saída – mostrou que um governo que usa a força para manter o seu domínio, ensina aos oprimidos a usarem a força para se opor a ele.
Já haviam surgido pequenos grupos nas áreas urbanas, que faziam espontaneamente planos para formas violentas de luta política. Então, surgiu o perigo de que esses grupos adotassem o terrorismo contra os africanos, bem como contra os brancos, se não fossem devidamente dirigidos. Particularmente perturbador foi o tipo de violência engendrada, entre os africanos, em lugares como Zeerust, Sekhukhuniland e Pondoland. Estava assumindo cada vez mais a forma, não de luta contra o governo – embora isso seja o que a motivou -, mas de conflitos civis entre africanos, conduzidos de tal modo que não se poderia esperar outra coisa, senão perdas de vidas e amargura.
No início de junho de 1961, depois de uma longa e ansiosa avaliação da situação sul-africana, eu e alguns colegas chegamos à conclusão de que, como a violência neste país era inevitável, seria irreal e errado que os líderes africanos continuassem a pregar a paz e a não-violência, em um momento no qual o governo continuava a responder pela força às nossas reivindicações pacíficas.
Não foi fácil chegar a essa conclusão. Foi só quando tudo o mais tinha fracassado, quando todos os canais de protesto pacífico nos foram proibidos, que foi tomada a decisão de iniciar formas violentas de luta política e de formar a Umkhonto We Sizwe. Nós o fizemos, não porque desejássemos esse rumo, mas unicamente porque o governo nos deixou sem outra escolha. No Manifesto da Umkhonto, publicado a 16 de dezembro de 1961, dissemos:
“Chega um momento na vida de qualquer nação em que restam apenas duas escolhas – se submeter ou lutar. Este momento chegou para a África do Sul. Não nos submeteremos e não temos outra escolha senão resistir por todos os meios em nosso poder, em defesa de nosso povo, de nosso futuro e de nossa liberdade.”
Esse foi o nosso sentimento em junho de 1961, quando decidimos pressionar por uma mudança na política do Movimento de Libertação Nacional. Só posso dizer que me senti obrigado moralmente a fazer o que fiz.
Nós, que tomamos essa decisão, começamos a consultar líderes de várias organizações, incluindo o CNA. Não direi com quem falamos, nem o que disseram, mas gostaria de tratar do papel do Congresso Nacional Africano nesta fase da luta e da política e dos objetivos da Umkhonto We Sizwe.
No que diz respeito ao CNA, ele formou uma visão clara que pode ser resumida da seguinte forma:
- O CNA era uma organização política de massas com uma função política a cumprir. Seus membros tinham se reunido nela sob a expressa política de não-violência.
- Por causa disso, o CNA não poderia assumir, e não assumiria, a violência. Isso deve ser frisado. Não é possível transformar esse organismo na organização pequena e estreitamente entrelaçada, necessária para a sabotagem. Nem isso seria politicamente justo, porque resultaria em que seus membros deixassem de realizar sua atividade essencial: a propaganda política e a organização. Também não era permissível mudar toda a natureza da organização.
- Por outro lado, em vista desta situação que descrevi, o CNA estava preparado para se afastar de sua política de não-violência, que tinha cinquenta anos de idade, na medida em que não desaprovaria a violência devidamente controlada. Daí, seus membros que realizassem tal atividade não estariam sujeitos a ações disciplinares do CNA.
Digo ‘violência devidamente controlada’ porque deixei claro que, se formasse a organização, eu a sujeitaria à orientação política do CNA, e não assumiria nenhuma forma de atividade, diferente da prevista, sem o consentimento do CNA. E, agora, vou dizer à Corte como essa forma de violência veio a ser determinada.
Como resultado dessa decisão, a Umkhonto foi formada, em novembro de 1961. Quando tomamos essa decisão e, subsequentemente, formulamos nossos planos, a herança de não-violência e harmonia racial do CNA estava muito conosco.
Sentimos que o país estava a caminho de uma guerra civil, em que os negros e os brancos lutariam entre si. Vimos a situação com alarme. A guerra civil poderia significar a destruição do que o CNA representava; com a guerra civil, a paz racial seria mais difícil do que nunca. Já tínhamos exemplos, na história sul-africana, dos resultados de guerras. Levaram mais de cinquenta anos para que as cicatrizes da Guerra Sul-africana desaparecessem. Quanto tempo demoraria para erradicar as cicatrizes de uma guerra civil inter-racial, que não poderia ser travada sem uma grande perda de vidas de ambos os lados?
Isso precisava ser levado em conta na formulação de nossos planos. Precisávamos de um plano que fosse flexível e que nos permitisse agir segundo as necessidades impostas pelos tempos; sobretudo, o plano deveria reconhecer a guerra civil como o derradeiro recurso – e relegar a decisão sobre essa questão ao futuro. Não queríamos nos comprometer com uma guerra civil, mas queríamos estar preparados, se ela se tornasse inevitável.
Eram possíveis quatro formas de violência: a sabotagem, a guerrilha, o terrorismo e a revolução aberta. Escolhemos o primeiro método – e esgotá-lo antes de tomar qualquer outra decisão.
À luz de nosso contexto político, a escolha foi lógica. A sabotagem não envolvia perdas de vidas, e oferecia a melhor esperança para as futuras relações raciais. A amargura seria reduzida ao mínimo, e, se a política fosse frutífera, o governo democrático poderia tornar-se uma realidade. Foi o que sentimos no momento, e é o que dissemos em nosso Manifesto:
“Nós, da Umkhonto we Sizwe, sempre procuramos alcançar a libertação sem derramamento de sangue e conflito civil. Esperamos, mesmo nesta hora tardia, que nossas primeiras ações despertem a todos para compreender a situação desastrosa a que a política do Partido Nacional está levando. Esperamos levar o governo e os seus partidários a terem juízo, antes que seja tarde demais, para que tanto o governo quanto suas políticas possam ser mudadas antes que se atinja o estado desesperado da guerra civil.”
O plano inicial foi baseado em uma análise cuidadosa da situação política e econômica do nosso país. Acreditamos que a África do Sul depende, em grande parte, do capital estrangeiro e do comércio externo. Sentimos que a destruição planejada de usinas de energia, e a interferência com as comunicações ferroviárias e telefônicas, tenderia a afugentar o capital do país, tornando mais difícil que os bens das áreas industriais atingissem os portos marítimos no cronograma previsto, e, a longo prazo, seria um forte dreno sobre a vida econômica do país, obrigando os eleitores a reconsiderar sua posição.
Os ataques às linhas da vida econômica do país deveriam estar relacionados com a sabotagem em edifícios governamentais e outros símbolos do apartheid. Esses ataques serviriam de fonte de inspiração para o nosso povo. Além disso, eles forneceriam uma saída para as pessoas que pediam a adoção de métodos violentos e nos permitiriam dar uma prova concreta aos nossos seguidores de que adotamos uma linha mais forte na luta contra a violência do governo.
Para completar, se ações de massa fossem organizadas com êxito, e se houvesse represálias em massa, sentimos que a simpatia pela nossa causa seria despertada em outros países e que seria maior a pressão sobre o governo sul-africano.
Esse, então, era o plano. A Umkhonto deveria realizar sabotagem, e instruções rigorosas foram dadas aos seus membros, desde o início, de que, em nenhuma circunstância, eles deveriam ferir ou matar pessoas no planejamento ou na realização das operações. Essas instruções foram referidas na evidência do ‘Sr. X ‘ e de ‘ Mr. Z ‘ [testemunhas do Estado no julgamento, cujos nomes foram escondidos].
A Umkhonto realizou sua primeira operação em 16 de dezembro de 1961, quando foram atacados prédios governamentais em Joanesburgo, Port Elizabeth e Durban. A escolha dos alvos é prova da política que descrevi acima. Tivéssemos pretendido atacar vidas, teríamos selecionado alvos onde pessoas se congregavam, não prédios vazios e usinas elétricas. A sabotagem realizada antes de 16 de dezembro de 1961 foi obra de grupos isolados e não teve ligação alguma com a Umkhonto. De fato, alguns desses atos, e vários atos posteriores, foram reivindicados por outras organizações.
O Manifesto da Umkhonto foi divulgado no dia em que as operações começaram.
A resposta da população branca às nossas ações e ao Manifesto foi caracteristicamente violenta. O governo ameaçou reagir com força e exortou seus seguidores a se manterem firmes e ignorar as reivindicações dos africanos. Os brancos não responderam sugerindo mudanças; responderam ao nosso chamado pedindo repressão armada.
Em contraste, a resposta dos africanos foi de encorajamento. De repente, havia esperança novamente. As coisas estavam acontecendo. As pessoas nos municípios [townships] ficaram ansiosas por notícias políticas. Um grande entusiasmo foi gerado pelos êxitos iniciais, e as pessoas começaram a especular sobre em quanto tempo seria conquistada a liberdade.
Mas nós, no Umkhonto, pesamos a resposta branca com ansiedade. As linhas estavam sendo traçadas. Os brancos e os negros estavam se movendo para campos separados, e as perspectivas de evitar uma guerra civil estavam diminuindo. Os jornais brancos publicavam que a sabotagem seria punida com a morte. Se assim fosse, como poderíamos continuar a manter os africanos longe do terrorismo?
Já haviam morrido dezenas de africanos como resultado de atritos raciais.
Em 1920, quando o famoso líder Masabala foi encarcerado em Port Elizabeth, 24 africanos, que se reuniram para exigir sua libertação, foram mortos pela polícia e por civis brancos.
Em 1921, mais de 100 africanos morreram no caso de Bulhoek.
[NOTA: a 24 de maio de 1921, em Bulhoek, as tropas racistas abriram fogo de metralhadora, e até mesmo de artilharia, contra os seguidores do líder messiânico Enoch Mgijima. Houve 163 africanos mortos, 129 feridos e 95 foram presos, inclusive Mgijima, condenado a cinco anos de trabalho escravo para a mineradora De Beers, uma criação do colonialista Cecil Rhodes, financiada pelos Rothschild.]
Em 1924, mais de 200 africanos foram mortos quando o Administrador da África do Sudoeste chefiou uma força contra um grupo que se rebelou contra a imposição do imposto sobre cães.
[NOTA: um dos expedientes dos colonialistas para obrigar os africanos a trabalhar para eles era arruiná-los através de impostos extorsivos e despropositados. Por exemplo, sobre a propriedade de cachorros, e até sobre esposas (a “hut tax”), em um país onde a poligamia era um costume tribal.]
Em 1º de maio de 1950, 18 africanos foram mortos a tiros por policiais, durante a greve.
Em 21 de março de 1960, 69 africanos desarmados foram mortos em Sharpeville.
[NOTA: nesse dia, os racistas abriram fogo de metralhadora, matando 69 pessoas e ferindo 180 outras, contra uma manifestação pacífica de 20 mil pessoas, que reivindicavam a abolição da Lei do Passe, que, desde 1910, confinava os negros a áreas determinadas – inclusive separando famílias (cf. Report of the Inter-Departamental Comittee on the Native Pass Laws 1920, Cape Town, 1922).]
Quantos Sharpevilles mais haveria na história do nosso país? E quantos outros Sharpevilles poderia o país suportar, sem que a violência e o terror se tornassem a ordem do dia? E o que aconteceria com o nosso povo, quando se chegasse a esse estágio? A longo prazo, sentíamo-nos seguros de nosso êxito, mas a que custo, para nós e para o resto do país? E, se isso acontecesse, como os negros e os brancos poderiam viver juntos, novamente, em paz e harmonia? Estes foram os problemas que enfrentamos, e estas foram as nossas decisões.
A experiência nos convenceu de que a rebelião ofereceria ao governo oportunidades ilimitadas para o massacre indiscriminado de nosso povo. Mas foi precisamente porque o solo da África do Sul já está encharcado com o sangue de africanos inocentes, que sentimos que era nosso dever fazer preparativos, como empreendimento de longo prazo, para usar a força com o objetivo de nos defendermos da força. Se a guerra fosse inevitável, queríamos que a luta fosse realizada nos termos mais favoráveis para o nosso povo.
A forma de luta que sustentava melhores perspectivas para nós, e menor risco de vida para ambos os lados, era a guerrilha. Decidimos, portanto, em nossos preparativos para o futuro, nos prepararmos para a possibilidade de uma guerra de guerrilhas.
Todos os brancos passam por treinamento militar obrigatório, mas nenhum treinamento é dado aos africanos. Em nossa opinião, era essencial construir um núcleo de homens treinados, que pudessem ser a liderança necessária, se a guerra de guerrilhas começasse. Tínhamos de nos preparar para essa situação antes que fosse tarde demais para fazer os preparativos adequados. Também era necessário construir um núcleo de homens treinados em administração civil e outras profissões, com o objetivo de que os africanos estivessem preparados para participar do governo deste país, assim que tivessem permissão para fazê-lo.
Nessa fase, foi decidido que eu deveria participar da Conferência do Movimento Pan-Africano de Liberdade para a África Central, Oriental e Austral, a ser realizada no início de 1962 em Adis Abeba, e, devido à nossa necessidade de preparação, também se decidiu que, após a conferência, eu fizesse uma visita a Estados africanos, com vista à obtenção de instalações para o treinamento de soldados – e que eu também solicitaria bolsas de estudos para a matrícula de africanos em universidades.
O treinamento em ambos os campos seria necessário, mesmo que as mudanças ocorressem por meios pacíficos. Seriam necessários administradores, que estariam dispostos e capazes de administrar um Estado não racial – e homens seriam necessários para controlar o exército e a força policial de tal Estado.
Foi com esse objetivo que eu deixei a África do Sul para ir a Adis Abeba, como representante do CNA. Minha viagem foi um êxito. Onde quer que eu fosse, encontrei simpatia por nossa causa e promessas de ajuda. Toda a África estava unida contra a posição da África do Sul branca, e, mesmo em Londres, fui recebido com grande simpatia por lideranças políticas, como o Sr. Gaitskell [líder do Partido Trabalhista] e o Sr. Grimond [líder do Partido Liberal].
Na África, recebi promessas de apoio de homens como Julius Nyerere, agora presidente de Tanganica; do Sr. Kawawa, então primeiro-ministro de Tanganica; do imperador Haile Selassie, da Etiópia; do general Abboud, presidente do Sudão; de Habib Bourguiba, presidente da Tunísia; de Ben Bella, agora presidente da Argélia; de Modibo Keita, presidente do Mali; de Leopold Senghor, presidente do Senegal; de Sékou Touré, presidente da Guiné; do presidente Tubman, da Libéria; e de Milton Obote, primeiro-ministro de Uganda.
Foi Ben Bella quem me convidou para visitar Oujda, o quartel-general do Exército Argelino de Libertação Nacional, visita descrita no meu diário – uma das evidências apresentadas neste julgamento.
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