Na tarde de 17 de dezembro de 1941, em ato celebrado na Universidade Autônoma do México o poeta chileno e futuro Nobel de Literatura, Pablo Neruda, leu seu ‘Canto a Bolívar’ – a data marcava o 111º aniversário da morte dele, aos 47 anos.
Canto que desde então brilha como signo de esperança e atualidade, e um poderoso retrato daquele que passou à história como “O Libertador”:
Eu conheci Bolívar em uma longa manhã,
em Madrid, na boca do Quinto Regimento
Pai, lhe disse, és ou não és, ou quem és?
E, olhando para o Quartel da Montanha, ele disse:
“Desperto a cada cem anos quando o povo desperta”.
O poema completo, na voz do presidente venezuelano Hugo Chávez, que duzentos anos depois desfraldou a bandeira de Simon Bolívar, pode ser ouvido em registro da Telesur, aqui reproduzido.
LIBERTADOR
Completaram-se 237 anos do nascimento de Bolívar no dia 24 de julho. Ele ganhou a alcunha de O Libertador ao comandar uma campanha assombrosa que, de vitória em vitória, cruzando montanhas e pântanos, libertando uma cidade após outra, abriu o caminho para seu retorno a Caracas, de onde partira após a queda da primeira república venezuelana.
Muito rico de berço, herdeiro de numerosos escravos, tudo fazia provável uma vida de ócio e futilidades. Mas a roda da história, o iluminismo, a ascensão da burguesia, a decadência do império espanhol e as guerras napoleônicas conspiraram para tornar um filho da elite ‘criolla’ – isto é, de descendentes de espanhóis nascidos no Novo Mundo -, em comandante de povos pela emancipação e profeta da integração latino-americana.
Uma vida marcada pelo inesperado. Perdeu o pai aos dois anos e a mãe aos nove, foi criado pelo avô e depois por um tio, que assumiu o papel de tutor. Teve como preceptor dois intelectuais, que o introduziriam nas ideias iluministas, Simón Rodriguez e Andrés Bello. Aos 13, já tinha patente de tenente na milícia. Aos 14 anos, estava na Europa, completando a educação em meio à efervescência das ideias trazidas pela Revolução Francesa e, antes, pela independência dos Estados Unidos.
Recém casado em 1802, um ano depois estava viúvo, aos 19 anos – a esposa, que trouxera da Espanha, morreu de febre amarela.
Voltou à Europa, onde reencontrou Rodríguez, que estava a seu lado em Roma em 1805 quando fez a célebre promessa, aos 22 anos, de “não dar descanso ao meu braço, nem repouso à minha alma, até que sejam rompidas as amarras que nos oprimem por vontade do poder espanhol”. O local – o Monte Sacro – tinha sido palco do protesto de plebeus contra a aristocracia na Roma antiga.
Estranhos tempos, em que Beethoven, que tinha feito uma dedicatória da sua terceira sinfonia, “Heroica”, a Napoleão, a rasurara indignado, depois que este se fizera coroar imperador. A história escrevendo certo por linhas tortas.
As mesmas tropas napoleônicas que, ao invadirem Portugal, levaram à fuga da família real e da corte para o Brasil, que culminaria na Independência.
A ocupação da Espanha por Napoleão Bonaparte, que colocou no trono espanhol o irmão mais velho, o ‘rei José I Bonaparte’ – ‘primeiro e último’, se zombaria depois -, desencadeou a revolta no país, com cidades amotinadas criando juntas, desconhecendo o impostor e combatendo a invasão.
Movimento que logo se estendeu às colônias espanholas, com a declaração dos cabildos, o que acabou evoluindo para juntas autônomas em relação a Madri.
Posto para correr o monarca-irmão francês e derrotado Napoleão, quando as cortes espanholas resolveram que era hora de restaurar o ferrolho colonial, o alegre trem da história já tinha partido e não tinha mais volta.
No continente americano, já havia duas repúblicas, os Estados Unidos e o Haiti, este liberto dos franceses e da escravidão. Foi o Haiti heróico – primeira república governada por negros – que apoiou Bolívar na hora mais difícil. A bandeira da libertação dos escravos foi abraçada por Bolívar, o que resultaria na abolição da escravidão nas ex-colônias espanholas antes do Brasil.
“A ARTE DE VENCER SE APRENDE NAS DERROTAS”
Uma das frases mais conhecidas de Bolívar é que “a arte de vencer se aprende nas derrotas”. Foram muitas. Teve de deixar Caracas por três vezes. Miranda, o precursor, que ele próprio fora trazer do exílio em Londres, se rendeu aos espanhóis em 1812. Bolívar escapou por pouco. A primeira e a segunda república tombaram sob forças maiores.
Chefes militares e políticos locais mantinham constantes conflitos. Foram muitas as divergências com Francisco Santander, o principal dirigente proveniente da Nova Granada.
Uma das suas ideias centrais, a de que era imprescindível unir, ampliar, marchar para a ‘Pátria Grande’, ele começou a exercitar ao lograr unificar as forças pró-libertação de Nova Granada.
O que acabou conduzindo à criação da “Grã Colômbia”, reunindo o que hoje são quatro países, Colômbia, Venezuela, Equador e Panamá.
Ao esforço de Bolívar correspondeu, no Prata, atual Argentina, a campanha de libertação encabeçada por San Martin, e no Chile, por Bernardo O’ Higgins.
O fim da dominação colonial espanhola na América do Sul acabou por se decidir nos embates no Peru, com Bolívar marchando desde o norte para Lima, e Antonio José de Sucre derrotando os espanhóis na Batalha de Ayacucho, em 1824. As províncias do Alto Peru se uniriam em um novo país, batizado em sua homenagem, e cuja constituição escreveu, a Bolívia.
PRAGA IANQUE
Em 1826, ele definiria uma verdade em vigor até hoje: “Os Estados Unidos parecem destinados pela Providência a espalhar a praga da miséria pela América em nome da liberdade.” Ditado de mesmo sentido era corrente entre os mexicanos: “longe de Deus e perto demais dos Estados Unidos”. Desde 1823, estava em vigor a ‘Doutrina Monroe’ – a da “América para os norte-americanos”.
A tentativa de um congresso pan-americano, no Panamá, gorou, com apenas poucas ex-colônias enviando delegados. Bolívar presidiu a Grã Colômbia de 1819 até 1830, quando se viu forçado a renunciar. Meses depois, morreu de tuberculose. Sucre havia sido assassinado pouco antes.
Após sua morte, a Grã Colômbia se desfez. Seis anos depois, a república centro-americana deu lugar a várias pequenas repúblicas, Nicarágua, Costa Rica, El Salvador, Honduras e Guatemala. O Panamá surgiria depois, amputado da Colômbia, uma república sob encomenda dos barões das finanças norte-americanos que queriam o canal construído.
Depois, como relatou um célebre general de marines, o Caribe e as ex-colônias espanholas na América foram assaltadas, uma, duas, várias vezes, para atender banqueiros e investidores. Um bandido norte-americano chegou a se proclamar ‘presidente’ da Nicarágua.
Acabaram decidindo pela desagregação do projeto de ‘Pátria Grande’ as economias dependentes da metrópole, os séculos de escravidão indígena e negra, o esmagamento da indústria e ausência de instrução, os interesses particularistas, o caudilhismo e as renovadas pressões externas.
O Brasil, com a centralização trazida pela vinda da família real, e pelo tirocínio de José Bonifácio de Andrada e a mão estendida, depois da espada, de Caxias, escapou à fragmentação, num longo processo em busca da identidade de nação, que passaria pelo 13 de maio de 1888, proclamação da República no ano seguinte, República Velha, até à maioridade com a Revolução de 30.
PÁTRIA GRANDE
Nos anos recentes, através de processos como a Unasul (União das Nações Sul-Americanas), Mercosul e Celac (Centro de Estados Latino-Americanos e do Caribe), a bandeira da integração latino-americana voltou a ser empunhada, principalmente após a derrota da imposição do acordo do Alca, o tratado de virtual anexação econômica aos cartéis e bancos norte-americanos.
Nos últimos tempos, anões, vendilhões e clones de Trump andaram dançando sob a batuta de Washington. Até decretaram fechada a Unasul e se lambuzaram naquilo que já foi conhecido como a ‘Organização dos Escravos Americanos’.
Após duras derrotas, vai-se se reaprendendo o caminho para a unidade e para a vitória.
No Chile, o povo arrancou a Constituinte, para erradicar a carta de Pinochet; na Bolívia, a mobilização isolou o golpismo, garantiu as eleições e a vitória com Arce.
A Argentina já despachou Macri. Lopez Obrador e Alberto Fernandez não faltaram à Bolívia na hora mais negra. No Brasil, a eleição se tornou um fiasco para os candidatos a prefeito de Bolsonaro.
Ainda há chão pela frente – ainda mais em tempo de pandemia.
“ATÉ À ESPERANÇA NOS CONDUZ TUA SOMBRA”
Mas, como expresso no poema de Neruda, a figura imensa de Bolívar segue velando pela Nossa América.
“Os malvados atacam tua semente de novo:
cravado em outra cruz está o filho do homem.
Mas até à esperança nos conduz tua sombra”
Na homenagem a Bolívar, Neruda, que fora cônsul chileno na Espanha Republicana, também registra a atualidade de Bolívar, com sua convocação pela soberania e contra a tirania, diante da horrenda sujeição da Espanha aos fascistas de Franco e ao garrote vil.
“Junto à minha mão há outra e há outra junto dela,
e outra mais, até o fundo do continente escuro.
E outra mão que tu não conheceste então
vem também, Bolívar, a estreitar a tua.
De Teruel, de Madrid, de Jarama, de Ebro,
do cárcere, do ar, dos mortos da Espanha
chega esta mão vermelha que é filha da tua”.
Vai além, e funde a luta de Bolívar de um século antes, com a jornada em curso das forças civilizatórias contra o horrendo fascismo e, apesar da dureza da situação, pressagia a vitória da liberdade e da fraternidade.
“Teus olhos que vigiam além dos mares,
além dos povos oprimidos e feridos,
além das negras cidades incendiadas,
tua voz nasce de novo, tua mão outra vez nasce:
teu exército defende as bandeiras sagradas:
(…)
Libertador, um mundo de paz nasceu em
teus braços.
A paz, o pão, o trigo do teu sangue nasceram:
de nosso jovem sangue vindo do teu sangue
surgirá paz, pão e trigo para o mundo
Que faremos.”
Fazia apenas seis meses que as hordas nazistas haviam invadido a União Soviética. Na luta dos povos unidos contra a tirania fascista – também lá estavam nossos pracinhas da FEB -, o genial poeta apreende a espada renascida de Bolívar.
“Capitão, combatente, onde uma boca
grita liberdade, onde um ouvido escuta,
onde um soldado vermelho rompe uma frente parda,
onde um laurel de livres brota, onde uma nova
bandeira se adorna com o sangue de nossa insigne aurora,
Bolívar, capitão, se divisa teu rosto.”
80 ANOS
No próximo ano, estarão se completando 80 anos da apresentação ao público dessa obra prima de Neruda.
De certa forma, o “Canto a Bolívar” de Neruda é como um prólogo de seu “Canto a Stalingrado”, que escreveria no decorrer da batalha que decidiu o destino da guerra e da Humanidade, seguido pelo “Canto de Amor a Stalingrado”, “Novo Canto de Amor a Stalingrado” e, já em 1949, encerra o ciclo com seu “Terceiro Canto de Amor a Stalingrado”.
A primeira leitura do “Canto a Stalingrado” foi feita também na capital do México, em um ato público da Sociedade de Amigos da URSS no dia 29 de setembro de 1942, apenas um mês após o início da batalha pela cidade: “mesmo que morras, não morres”. Então, Stalingrado já estava em ruínas pelos bombardeios alemães, com quase 100 mil mortos.
No “Terceiro Canto de Amor a Stalingrado”, Neruda estampa em curtos versos o significado da batalha:
“Aqui se cortou o nó
que apertou a garganta
da história”.
E mais:
“Stalingrado ensinou ao mundo
a suprema lição da vida:
nascer, nascer, nascer,
e nascia
morrendo,
disparava
nascendo,
se ia de bruços e se levantava
com um raio na mão”.