Tempos de pandemia despertam a curiosidade sobre outras pandemias.
Já publicamos – em março do ano passado – a descrição de Boccaccio, no “Decameron”, da peste que assolou Florença no ano de 1348.
Relendo agora o que escrevemos, foi uma surpresa lembrar que, quando publicamos o grande escritor italiano, estávamos apenas havia duas semanas encerrados em casa, evitando socialmente, pela distância, maior propagação da Covid-19 (v. HP 29/03/2020, Decameron: a peste em Florença pela pena de Giovanni Boccaccio).
Agora, estamos há quase 10 meses.
Foi, então, que nos bateu – nas mãos e nos olhos – o terceiro volume das memórias de Pedro Nava, “Chão de Ferro”, publicado em 1976.
Nava, além de grande escritor mineiro, foi um dos mais conceituados médicos brasileiros.
Nascido em Juiz de Fora, Pedro Nava, em 1918, quando a “gripe espanhola” chegou, em outubro, ao Brasil, estava no Rio de Janeiro, onde era aluno do glorioso Colégio Pedro II (Nava estudava no internato, no Campo de São Cristóvão).
A “espanhola” matou, no Brasil, cerca de 35 mil pessoas, em país cuja população não ia além de 29 milhões de habitantes. A maior parte dos mortos (mais ou menos 15 mil) foram no Rio de Janeiro, então, nossa maior cidade (com um pouco menos de um milhão de moradores). Nada menos do que 4/5 da população adoeceram de gripe na capital do Brasil.
O espantoso, além disso, foi o pouco tempo em que isso se deu. Irrompido em outubro de 1918, já nas primeiras semanas de novembro, o surto da pandemia estava, no Brasil, em maré minguante.
As memórias de Pedro Nava são essenciais para o conhecimento do Brasil daquela época. Não existe outro retrato realizado com tal estilo.
Quer o leitor um exemplo, que nada tem a ver com a gripe espanhola (exceto por aquilo de que alguns cariocas foram privados)?
Eis como, no mesmo livro (“Chão de Ferro”), Nava descreve a origem e o próprio prato mais característico da culinária (ou será “gastronomia”?) brasileira:
“Com licença, um parêntese. No meu Baú de Ossos referi, repetindo Noronha Santos, que a feijoada completa é prato legitimamente carioca. Foi inventado na velha rua General Câmara, no restaurante famoso de G. Lobo, cujo nome se dizia contraído em Globo. Grifei, agora, o inventado, para marcar bem marcado seu significado de achado. Realmente não se pode dizer que ele tenha sido criação espontânea. É antes a evolução venerável de pratos latinos como o cassoulet francês que é um ragout de feijão-branco com carne de ganso, de pato ou de carneiro — que pede a panela de grés — cassolle — para ser preparado. Passando os Pireneus, é ainda com o feijão-branco, com um toucinho imaculado e com ebúrnea pele de porco que os castelhanos urdem suas judias-à-la-bretona. O nome mesmo mostra que o acepipe veio de fora e das Gálias. Seguindo o caminho das invasões ele atravessa Tui, Ciudad Rodrigo, Badajos, Huelva — ganha Tavira, Elvas, Guarda e Valença do Minho para espalhar-se em Portugal na forma do guando cozido com porco e paio. Mestre Lobo da rua General Câmara tomou dessa muda europeia, plantou e ela pegou aqui, no tronco da feijoada-completa-hino-nacional. Suas variantes brasileiras radicam principalmente em usar o feijão mais comum na região e em juntar ao porco ritual outras carnes, miúdos ou os legumes encontradiços nos locais. A falação é a mesma, só difere o sotaque. Conheço essas recriações de gênio. A maranhense e piauiense, que saboreei na casa de tio Ennes e de tia Eugênia e que reencontro na fabulosa cozinha de Nazaré e Odylo Costa, filho. A cearense, de minhas tias paternas e de minha prima Rachel de Queiroz. A pernambucana, de d. Maria Augusta e do seu José Peregrino Wanderley Cavalcanti — pais de meu irmão Joaquim Nunes Coutinho Cavalcanti — o sempre bem lembrado. A baiana, da tia de minha mulher, d. Elvira Couto Maia Penido, com a suntuosidade de sua rabada; dos anteparos de sua costela de vaca; do seu arco-íris de louro, açafrão, gengibre, cravo, coentro, cebola, salsalho; e com seu fogo de artifício pimenta-malagueta curtida no dendê. A mineira, de minha Mãe; a paulista, de d. Luísa Novo Rodrigues. As ecléticas, fazendo aliança Pernambuco-Minas-Rio, como a de Maria do Carmo e José Nabuco, ou só Minas-Rio como a de minha casa, na Glória, por obra e graça de artistas exímias, como Adélia Maria da Conceição e Rosalina Ribeiro; ou como novamente as da casa de minha Mãe, já no Rio, quando ela abjurou o feijão-mulatinho para converter-se ao preto, ao bom, ao feijão de Uberaba. Louvo a todas, louvo essa irmandade toda, saravá! mas peço perdão de dizer que a melhor — mas a melhor mesmo! ainda é a ortodoxa, católica-apostólica-romana, a carioca de Gêlobo-Globo — sacramento que comunguei na cozinha egrégia de meu tio Heitor Modesto de Almeida! na cozinha insigne de seu Maneco e d. Isaura — respectivamente seu pai e sua madrasta.
“Ninguém para preparar o grande prato como meu citado tio Heitor. Ele próprio ia escolher o feijão mais igual, mais preto, mais no ponto, grãos do mesmo tamanho e do mesmo ônix. Ele mesmo é que comprava o lombo, a carne de peito, a linguiça e os ingredientes de fumeiro com que ia compor e orquestrar. A couve mais verde, a farinha mais fresca e o torresmo mais escorregadio. Seu grande truque era cozinhar sem esmagar um só grão e depois de pronto, dividir em dois lotes. Tomava de dois terços e tirava seu caldo, peneirando. Um terço, esse sim! era amassado, passado, livrado das cascas, apurado e esse caldo grosso é que ia ser novamente misturado aos grãos inteiros. Era assim que em sua casa não se via a desonra da feijoada aguada. Toda a carne fresca, a seca e a de fumeiro eram cozidas no caldo mais ralo tirado da primeira porção. Só o lombo era sem contato, desobrigado de outro gosto senão o de sua natureza, o da vinha d’alho em que dormira e o das rodelas de limão que o guarneciam. Quando havia enfiada de feriados, o Modesto preferia preparar de véspera porque, sustentava, a feijoada dormida e entranhada era mais saborosa. Foi ao estro de sua mesa que pus em dia a melhor maneira de degustar a imensa iguaria. Prato fundo, já se vê, de sopa. Nele se esmagam quatro a cinco (mais, menos) pimentas-malaguetas entre verdes e maduras, frescas ou danadas no vinagre. Tiram-se-lhes carocinhos e cascas, deixa-se só a linfa viva que é diluída no caldo dum limão. Esse corrosivo é espalhado em toda a extensão do prato. Então, farinha em quantidade, para deixar embeber. Retira-se seu excesso que volta para a farinheira. Sobre a crosta que ficou, vai a primeira camada do feijão e mais uma de pouca farinha. Edifica-se com superposições de couve, de farinha, de feijão, de farinha, das carnes e gorduras, e do respaldo mais espesso cobertura final de farinha. Espera-se um pouco para os líquidos serem chupados, aspirados, mata-borrados e come-se sem misturar. Sobre o fundo musical e uniforme do feijão, sentem-se os graves do fumeiro, o maestoso do lombo, as harmonias do toucinho e os agudos, os álacres, os relâmpagos, os inesperados do subsolo de pimenta. E só. Um prato só. É de boa regra não repetir a feijoada completa. Um prato. Um só porque o bis, como o deboche — é reprovável.
“A polivalência, a adaptabilidade do feijão permitem sua combinação com tudo quanto é legume, com todas as carnes, todos os peixes, mariscos, crustáceos e até as massas como provou Joaquim Nunes Coutinho Cavalcanti, com suas famosas macarronadas-ao-feijão, que deitaram raiz nas cozinhas ítalo-brasileiras do Oeste Paulista. Essa versatilidade dos feijões é que permite a combinação das feijoadas regionais brasileiras a qualquer farinha. A grossa, farinha-de-pau do Maranhão. A fresca ou a torrada. Simples ou com farofa de ovo ou de torresmo, ou dos dois. A farinha de milho seca, na sua pasta de angu, ou na pulverulência úmida do cuscuz de sal. Meu tio Modesto aconselhava a de mandioca, simples, sem torrar ou então a de sal grosso, folha de cebola miúda, embolada na hora com água fervendo. E fora disto, só couve. Isso de feijoada completa com arroz ou com laranja é heresia: o primeiro abranda e a segunda corta o gosto. E este deve ser conservado dentro da exuberância e do exagero da sua natureza barroca. Barroco — eis o termo. Porque como obra de arte (e levando em conta que “…Baudelaire avait bien dit que les odeurs, les couleurs et les sons se répondent…”) a Feijoada Completa Nacional está para o gosto como os redondos de São Francisco de São João-del-Rey, a imobilidade tumultuária dos Profetas de Congonhas do Campo e a Ceia de Ataíde, no Caraça, estão para os olhos. Ainda barroco e mais, orquestral e sinfônico, o rei dos pratos brasileiros está para a boca e a língua como, para o ouvido — as ondulações, os flamboaiantes, os deslumbramentos, os adejamentos, a ourivesaria de chuva e o plataresco dos mestres mineiros de música sacra e do Trio em dó maior para dois oboés e corninglês — Opus 87 de Ludwig van Beethoven. Filosófica, a feijoada completa pelo luto de sua cor e pelos restos mortais que são seus ingredientes é também memento. Depois dela, como depois da orgia, a carne é triste. Não a do prato, a nossa, a pecadora. Patriótica, ela serve tanto à unidade nacional como essa língua assim “dulcíssona e canora” que Portugal nos ofertou. É por estas razões que me excedi falando da feijoada. Todas as vezes que dela como — volto à que nos era servida uma vez por semana no internato do Colégio Pedro II, volto a minha adolescência e ao mundo mágico que a cercou. Devo esse traço de cultura (que ficou sendo escravo de minha memória involuntária), à virtuosidade culinária do nosso Urso–Branco. Tenho pena de não saber seu nome de gente para colocá-lo na minha gratidão, ao lado dos de João Ribeiro, Silva Ramos, Floriano de Brito, Badaró e Lafayete Rodrigues Pereira, de quem me veio outra nutrição — a do espírito” (Pedro Nava, “Chão de Ferro”, Livraria José Olympio, 1976).
[“Urso-Branco” era o apelido de um cozinheiro do Colégio Pedro II, um português, famoso, entre outras razões, pela feijoada que preparava para os alunos.]
O leitor conhece, fora esses três parágrafos, algum outro texto sobre a feijoada mais… saboroso?
Nós, não conhecemos.
O mesmo, em outro sentido (pois não se pode chamá-la de saborosa), pode-se dizer da descrição que Nava faz da epidemia de gripe espanhola. Quando a praga invadiu as ruas e casas do Rio, o então aluno do Pedro II encontrava-se refugiado na casa de seu tio, Ennes de Souza.
A República Velha, sobretudo após a Revolução de 30, que a encerrou, é um dos períodos que menos deixou saudades em nosso povo.
Entretanto, como se pode ler no relato de Nava sobre a epidemia de 1918, os próceres daquele momento de nossa história eram verdadeiros pais da Pátria, se comparados aos elementos de estatura microbiana que, no governo Bolsonaro, levaram o país a uma catástrofe sanitária, durante a pandemia de Covid-19.
Mais ainda, considerando que os meios – inclusive o estágio da ciência – de enfrentamento da epidemia eram imensamente pouco desenvolvidos, se comparados aos atuais.
Por mais injusta – como registra Pedro Nava – que fosse a substituição do Dr. Carlos Seidl, na Diretoria de Saúde, pela principal, após a morte de Oswaldo Cruz, figura médica da época, Carlos Chagas, o governo mostrou a sua preocupação com a vida da população. Chagas e Seidl eram profissionais altamente conceituados – e homens envolvidos com o destino do país e de seu povo.
Algo muito diferente dos ignorantes, prepotentes e incompetentes que foram colocados por Bolsonaro no Ministério da Saúde.
C.L.
P.S. – Quando a epidemia terminou, até o presidente da República eleito, Rodrigues Alves, fora levado pela “espanhola”. Nessa morte do presidente houve algo em comum com o povo brasileiro.
1918: a gripe espanhola no Rio de Janeiro
PEDRO NAVA
Ora, numa noite em que estávamos assim discreteando, o Ernesto chegou tarde, trazendo más notícias dos nossos médicos. Corria o boato de que havia uma espécie de epidemia a bordo do La Plata, mortes, vários doentes hospitalizados em Orã. Que essa peste lavrava na Europa, na África, podia chegar aos nossos portos. A notícia não impressionou muito e foi pouco comentada. A Eponina levantou da mesa cantarolando e foi para o quarto. A sinhá Cota e o Paulo desceram. O Ernesto tornou a sair com o noivo da prima. Tia Eugênia foi deitar o Gabriel. Ficamos na sala só eu e a Nair, quando tio Ennes, bocejando, foi para o vale de lençóis. Eu já me preparava para recolher quando a dona da casa reapareceu e chamou a mim e à sobrinha para a sala. Sentou-se à janela com a Nair e eu já sabia o que tinha de fazer. Coçar-lhe as costas. Era tarefa que ela impunha a todos os meninotes que passavam a seu alcance. E olhem que não era trabalho dos mais fáceis. Para manter o porte ela não desabotoava senão o alto da blusa. Metia-se a mão e logo se encontrava a rigidez do colete. E tinha-se de fazer os movimentos, dedos apertados entre espartilho e pele. E ela exigia coçada para valer. Ponha força nisto, sinhozinho. Mais para baixo, mais, mais um tiquinho. Agora vá andando para a direita e subindo um pouco. Aí mesmo. Com força. Belisque. Assim não. Pegue uma rosca maior de gordura e aperte até ela escapulir. Isso. A seu lado a Nair pensava calada e olhando a fachada de Santo Afonso – imensa, fantasmal e se diluindo na noite escura. O sino deu as doze. Meia-noite! ora essa, chega, sinhozinho. Vá se deitar, boa noite. Levantamo-nos os três, fechamos as janelas e íamos tomar o corredor quando a Nair parou, Será verdade? aquela história de peste, Neném. Estávamos os três diante dos espelhos venezianos que reproduzindo um a imagem do outro, faziam de nossos vultos multidão se perdendo para os infinitos de dois imensos túneis. Nada, minha filha, aquilo tudo é exagero do Ernesto… Passei pela porta fechada da Eponina e ainda ouvi sua voz cantarolando em surdina o cateretê da moda.
Nós tínhamos, fora do Brasil, dois grupos auxiliares dos Aliados: a Esquadra de Patrulha, comandada pelo Almirante Pedro Max de Frontin, e a Missão Médica, chefiada por Nabuco de Gouveia. Ambos foram atingidos pela pestilência que grassava na Europa, Ásia e África quando entraram em portos do primeiro e terceiro continentes. No princípio pouco se soube do que se passava nos nossos vasos de guerra, o segredo sendo guardado com mais cuidado que no La Plata, saído daqui a 18 de agosto, conduzindo nossos médicos e que deve ter se infectado a 29 do mesmo mês, quando tocou em Freetown, Serra Leoa, onde grassava a moléstia reinante. Mais um pouco e a viagem começou a ser o inferno que nos descrevem Álvaro Cumplido de Santanna e Mário Kroef nas suas reminiscências. A 9 de setembro os primeiros corpos são jogados ao mar. A 22 chegam telegramas contando as desgraças da Missão Médica, o que é confirmado, oficialmente, a 27, quando Nabuco dá notícia de Influenza entre seus comandados. Nesse dia o Nestico chegou em casa com um monte de boatos que pouco impressionaram. Entretanto o demônio já estava em nosso meio, ainda não percebido pelo povo como a desgraça coletiva que ia ser, mas já tendo chamado a atenção das autoridades sanitárias, pois a 30 de setembro Carlos Seidl põe a funcionar um serviço de assistência domiciliar e de socorro aos necessitados. Estava reconhecido o estado epidêmico. A 3 de outubro, o diretor de Saúde Pública alerta os portos e determina as medidas de profilaxia indiscriminada. Nesse dia chega à Guanabara mais um barco eivado — o Royal Transport. Antes, a 14 de setembro, o Demerara tinha entrado com doentes a bordo. Provavelmente outros tinham antecipado esses transportes, sem chamar a atenção, mas já contaminados e contaminando. A doença irrompeu aqui em setembro, pois em fins desse mês e princípios de outubro, as providências das autoridades abriram os olhos do povo e este se explicou certas anomalias que vinham sendo observadas na vida urbana; tráfego rareado, cidade vazia e meio morta, casas de diversão pouco cheias, conduções sempre fáceis, as regatas, as partidas de water-polo e futebol quase sem assistentes, as corridas do Derby e do Jockey com os aficionados reduzidos ao terço. É que no meio da população, como naquela festa do Príncipe Próspero, insinuara-se – não a Morte Vermelha de Poe mas a Morte Cinzenta da pandemia que ia vexar a capital e soltar como cães a Fome e o Pânico que trabalhariam tão bem quanto a pestilência. It is not deaths that make a plague, it is fear and hopelessness in people — diz Powell. E o que ia ser visto no Rio de Janeiro daria toda razão ao médico americano.
Synochus catarrhalis era o nome de uma doença epidêmica, clinicamente individualizada desde tempos remotos e que periodicamente, cada vez com maior extensão, assola a humanidade. Essa extensão está relacionada à velocidade sempre crescente das comunicações. Seu contágio já andou a pé, a passo de cavalo, à velocidade de trem de ferro, de navio e usa, nos dias de hoje, aviões supersônicos – espalhando-se pelo mundo em dois, três, quatro dias. Quando passou pela Itália (na epidemia de 1802 que tão duramente castigou Veneza e Milão), recebeu nome que fez fortuna: influenza. O termo pegou, passou para linguagem corriqueira e lembro de tê-lo ouvido empregado por minha avó materna, em Juiz de Fora, na minha infância – a Dedeta não pode ir às Raithe porque está de cama com uma influenza; ou – a Berta está calafetada dentro do quarto, de medo da influenza. O nome gripe vem do meio do século passado e foi primeiro empregado por Sauvages, de Montpellier, tendo em conta o aspeto tenso, contraído, encrespado, amarrotado – grippé – que ele julgou ver na cara de seus doentes. Parecendo ser da entidade em questão, a literatura médica está cheia da descrição de surtos epidêmicos de que alguns assumiram aspeto pandêmico, assolando todas as grandes aglomerações humanas, como o de 1733, que marca a primeira passagem oceânica de mesma epidemia propagada da Europa à América; os de 1837, 1847, 1889 e finalmente o de 1918 que varreu o mundo, causando maior número de mortes que a Primeira Grande Guerra. Diziam que sua mãe era a trincheira e seu pai, aquele filho da puta do kaiser. Seu nome de batismo foi Influenza espanhola ou mais simplesmente Espanhola. Não, seus pais não foram a conflagração europeia e o imperador Guilherme II. Ela nasceu da influência, desta coisa imprecisa, desprezada pelos modernos mas entretanto existente – que são as coincidências telúricas, estacionais e atmosféricas responsáveis pela chamada constituição médica de determinadas doenças no tempo – a constitutio dos clássicos, com que se traduziu para o latim a palavra grega χατάστασιζ que aparece em vários trechos de Hipócrates exprimindo as vicissitudes dos ares, dos lugares, das estações e sua responsabilidade na gênese das moléstias. Pois sínoco de catarro, influenza, gripe ou como queiram chamá-la – a espanhola instalou-se entre nós em setembro, cresceu no fim desse mês e nos primeiros do seguinte. No dia 11 de outubro, já era problema tão grave que Carlos Seidl pede ao seu ministro autorização para contratar pessoal extraordinário que permitisse à Saúde Pública funcionar a contento na emergência que se desenhava. Tornou-se calamidade de proporções desconhecidas nos nossos anais epidemiológicos nos dias terríveis da segunda quinzena de outubro e sua morbilidade e mortalidade só baixaram na ainda trágica primeira semana de novembro. Comecei a sentir o troço numa segunda-feira de meados de outubro em que, voltando ao colégio, encontrei apenas onze alunos do nosso terceiro ano de quarenta e seis. Trinta e cinco colegas tinham caído gripados de sábado para o primeiro dia da semana subsequente. Chegamos ao colégio às nove horas. Ao meio-dia, dos sãos, entrados, já uns dez estavam tiritando na enfermaria e sendo purgados pelo Cruz. À uma hora o diretor Laet, o Quintino, o médico da casa, o Leandro e o Fortes passaram carrancudos nos corredores e foram se trancar no Salão de Honra. Às duas, assistíamos a uma aula do Thiré, quando entrou o próprio chefe de disciplina. Disse umas palavras ao nosso professor que logo declarou sua aula suspensa e que, por ordem do diretor, devíamos subir para os dormitórios, vestir nossos uniformes de saída e irmos o mais depressa possível para nossas casas. O colégio fechava por tempo indeterminado. Sobretudo que não nos demorássemos na rua. Voltei rapidamente para Major Ávila, 16. Quando eu saíra de manhã, tinha deixado a casa no seu aspeto habitual. Quando cheguei, tinham caído com febre alta e calafrios a Eponina, o Ernesto, a sinhá Cota e o Gabriel. Forma benigna, parecendo mais simples resfriado.
Conforme as condições especiais do terreno, segundo a resistência dos indivíduos ou o point d’appel de sua zona mais fraca – a influenza apresentava-se assim benigna, ou assumia as fisionomias que foram chamadas de pneumônica, broncopneumônica, gastroentérica, coleriforme, nevrálgica, polineurítica, meningítica, meningo-encefalítica, renal, astênica, sincopal e fulminante. Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em poucas horas, levando a vítima às sufocações, às diarreias, às dores lancinantes, ao letargo, ao coma, à uremia, à sincope e à morte em algumas horas ou poucos dias. Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível já não era o número de causalidades – mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva. Como na calamidade de Paris, em 1889, quando a gripe atirara ao leito dois terços da população, no Rio a doença surpassou-se e derrubou, numa grande gala hedionda, quatro quintos dos cariocas no chão, na cama ou na enxerga dos hospitais. Competiu, aos vinte por cento restantes de convalescentes ou sãos, aguentar a cidade que vacilava à beira do colapso. Numa espécie de loucura todos os boatos eram acreditados; transmitidos de um a um; multiplicados pela imprensa, de um para cem, para mil, para dez mil. No dia 17 de outubro Seidl pedia em vão a censura dos jornais e no dia 18 assistia-se ao crime de sua demissão. Foi substituído por Chagas que fez as únicas coisas possíveis na emergência: dotar a cidade do maior número de leitos para os desamparados. Distribuir socorro, remédio, leite, gêneros.
Em casa de Ennes de Souza os jornais eram lidos alto, à noite, em roda da mesa, e por eles tínhamos notícias dos horrores por que passava o Rio de Janeiro naquele período terrível. Verdadeiros ou falsos os boatos era como se fossem realidade pelo impacto emocional que causavam. Descrevia-se a fome. Os ataques às padarias, armazéns e bodegas por aglomerados de esfaimados e convalescentes esquálidos, roubando e tossindo. Dizia-se de famílias inteiras desamparadas – uns com febre, outros com fome; da criança varada, sugando o seio da mãe morta e podre; dos jacás de galinha reservados para os privilegiados, para a gente da alta e do Governo, passando sob a guarda de praças embaladas aos olhos de uma população que aguava. Seria verdade? Era. Posso testemunhar contando o que passei, o que passamos, na casa em que estava – pura e simplesmente fome. Conheci essa companheira pardacenta. Lembro que depois de um dia de pirão de farinha, de outro engambelado com restos de cerveja, vinho, licores e azeite – do alvorecer do terceiro, sem café da manhã nem nada e da saída de um Nestico recém-curado, pálido e barba grande, de um Ennes de Souza cara fechada, chapelão desabado, sem gravata. Ambos dispostos a tudo. Sobraçavam cestas de vime, iam armados de bengalório e ao fim de uma campanha de horas, voltaram. O Ernesto trazia um saco de biscoitos Maria, um pedaço de toucinho e uma latinha de caviar; seu tio, uma dezena de latas de leite condensado. Durante três dias essa foi a alimentação de sãos e doentes – severamente racionada pela tia Eugênia, como num naufrágio e como se a casa de Major Ávila fosse a jangada dos escapados do Méduse. Além da comida, eram disputados os remédios. Faltavam, mas essa falta não teria agravado muito a situação, se olharmos numa crítica retrospectiva o que foi o tratamento da gripe naquela época. Codeína, terpina, benzoato de sódio. Pós de Dower. Poção alcoólica de Todd. Vá lá. Sempre servia. Mas a questão é que a grande maioria dos médicos ativos na ocasião era de homens nascidos e criados dentro da tradição da “biliosa palustre” e do quinino – que logo reinou com a potestade que vemos hoje outorgada aos antibióticos, aos anti-inflamatórios, aos corticosteroides. Forma gástrica, quinino. Nervosa, quinino. Renal e urêmica, quinino. Pneumônica e broncopneumônica, quinquinquinino quinquinquinino. Além dos sofrimentos da doença – vinham os da panaceia: zoeiras nos ouvidos, vertigens, surdez, urinas de sangue, vômitos. Não tinha importância. Estava nos livros. Uma das indicações é também a gripe. E tome quinino. As opiniões médicas dividiam-se. Uns queriam os sais básicos e achavam os neutros inoperantes. Era Hipócrates dizendo sim. A metade preferia os sais neutros e tratava de homicidas os colegas que prescreviam os básicos. Galeno dizendo não. A adinamia, a tendência sincopal, o colapso eram tratados a essência de canela, óleo canforado, cafeína, esparteína e digital. Ou então, com o velho álcool: champanha, vinho do Porto ou a alternância, cada duas horas – ora dum copázio de leite, ora duma palangana de grog. Fórmulas industriais bestas fizeram verdadeiras fortunas. Os jornais proclamavam as excelências do Contratosse e do Quinium Labarraque. Na busca de uma medicação eficaz, de um preventivo que valesse, apelou-se até para a vacinação jenneriana! O governo abriu postos para sua administração onde a aglomeração, como as das distribuidoras de leite, de alimentos e as procissões imensas de São Sebastião, das Irmandades de Nossa Senhora das Dores e São Pedro da Gamboa – só serviam para juntar gente, para favorecer o contágio.
Mas quem prescrevia as drogas de que falamos acima eram os médicos e esses também adoeciam e morriam. Quando os clínicos não deram mais para o repuxo entraram em cena os cirurgiões, os parteiros, os laboratoristas – fazendo também de internistas. Os doutores viviam exaustos. Começavam às cinco da manhã e varavam o dia examinando, receitando, comendo do que havia nos armários dos doentes, entravam trabalhando noite adentro e chegavam em casa meia-noite, uma da madrugada. Agenor Porto contou-me que para poder repousar tinha de recolher-se deitado no fundo do landaulet e coberto por sacos de lona. Na sua porta o chauffeur era parado pelo magote de desesperados que o esperavam. O doutor? O doutor? Ficou em casa de um doente passando muito mal. Só assim ele entrava, tomava um copo de vinho, caía na cama vestido e às cinco, ele e o Abel já estavam sendo sacudidos e acordados pela Donana. Saíam, barba por fazer, e retomavam a dobadoura. Os doentes de nossa casa foram inicialmente tratados por velho e célebre parteiro, que as circunstâncias tinham arvorado em clínico. Era o famoso dr. Samico – o dr. Henrique Cesídio Samico – o criador da Tesoura de Samico, utilizada quando era necessário sacrificar o feto para salvar a mãe. Mais tarde eu veria usar o astucioso instrumento que em vez de cortar ao ser fechado, fazia-o ao ser aberto. Seu provecto inventor era cearense e nascera em 1845. Tinha, portanto, setenta e três anos feitos, quando entrava na casa de Ennes de Souza para receitar o infalível quinino e os clisteres de café que seu mestre Torres Homem aplicava nas febres álgidas. Era baixote, atarracado, cabelos en brosse, barbicha e bigodes muito grisalhos. Capengava duma perna, no gênero deixa-que-eu-chuto.
Tanto quanto posso lembrar essa claudicação, creio que seria a de alguém sofrendo da anca. Quando ele não pôde mais, foi substituído por um certo dr. Guimarães médico muito moço, que quando chegava, parecia estar vindo, não das ruas da Tijuca, mas saindo das páginas de Molière. Estudava para Austregésilo, Couto e Chico de Castro. O ponto do braço onde ele ia dar uma injeção virava logo “campo operatório” (Não toquem! Não me infeccionem o campo operatório!), penico era “urinóculo”, copo “cupa” e traque “ruptus” (tem emitido ruptus?). O Nestico casquinava dizendo que não sabia que peido tinha nome tão bonito. Nos momentos solenes de responder às perguntas angustiadas da família, fazia-o em estilo castigado e falando clássico. Mas voltemos ao pandemônio dos jornais.
Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noticiavam o número nunca visto dos doentes e cifras pavorosas do obituário. As funerárias não davam vazão – havia falta de caixões. Até de madeira para fabricá-los, ao ponto dum carpinteiro do subúrbio atender encomendas fazendo os envelopes com tábuas do teto e do soalho de sua casa. Alças de corda. Ganhou fortuna. Quando ataúde havia, não tinha quem os transportasse e eles iam para o cemitério à mão, de burro sem rabo, arrastados, ou atravessados nos táxis. No fim os corpos iam em caminhões, misturados uns aos outros, diziam que às vezes vivos, junto com os mortos. Havia troca de cadáveres podres por mais frescos, cada qual querendo se ver livre do ente querido que começava a inchar, a empestar. No agudo da epidemia, num dia em que não havia mais jeito de transportar tanto morto, o chefe de polícia já dava o desespero quando a solução veio do Jamanta, o célebre folião, figura de prol do Carnaval carioca. Já falei desse enteado de Artur Azevedo, chamado José Luís Cordeiro e que era funcionário exemplar da chefatura da rua da Relação. Ele conhecia admiravelmente o seu Rio de Janeiro e por um desses caprichos de boêmio aprendera, em passeatas noturnas, a dirigir bondes. Pediu e obteve dos seus superiores um bagageiro com dois taiobas e vasculhou com eles a cidade de norte a sul – Fábrica das Chitas, Tijuca, Andaraí, Aldeia Campista, Vila Isabel, Méier, Engenho de Dentro, Piedade, Cascadura, Penha Circular, Benfica – apregoando que todos pusessem para fora seus mortos (Bring out your deads!). Bonde e reboques cheios de caixões empilhados e de amortalhados em lençóis, o motorneiro solitário batia para o Caju. Descarregava. O dia já ia alto mas ele voltava a nove pontos, varejava Laranjeiras, Flamengo, Botafogo, Jardim Botânico, Ipanema, Copacabana – pegando mais defuntos. Lotava. Já noite, passava a sinistra composição como o Trem Fantasma ou o navio de Drácula – entupida da carga para o São João Batista. Fez isso uns dois ou três dias que marcaram para sempre sua lembrança. Quem me referiu esse heroísmo desconhecido do Jamanta foi seu irmão Aluísio Azevedo Sobrinho.
Bem ou mal, como era possível, frescos ou já decompostos, quando os pobres mortos chegavam aos cemitérios não havia gente suficiente para enterrá-los. Era muito defunto para os poucos coveiros do trivial – assim mesmo desfalcados pela doença. Foram contratados amadores a preços vantajosos. Depois vieram os detentos. Espalharam-se então horrores. Descreviam-se os criminosos cortando dedos aos cadáveres, rasgando-lhes as orelhas para roubar os brincos, os anéis, as medalhas e os cordões que tinham sido esquecidos. Às moças mortas, arrancavam as capelas e levantavam as mortalhas para ver as partes. Que curravam as mais frescas antes de enterrá-las. Melhores as que estavam ficando moles: eram tiradas dos caixões e comidas de beira-de-cova. Referia-se que, se no meio de monturo de mortos aparecia algum agonizante mandado por engano, acabavam-no a golpes de pá na cabeça ou mais simplesmente, enterravam-no vivo. Que um dia o acúmulo de insepultos foi tal que queimaram-nos aos montões nos fundos do cemitério. Até as covas eram tomadas de assalto, como as que meu cunhado, o então comandante Paulo Penido, mandara cavar, no Caju, por fuzileiros para os marinheiros mortos de uma belonave americana que chegara atochada deles. Parece que era o couraçado Pittsburgh. Pois quando os defuntos chegaram, era tarde. Tinha sido tudo invadido. Meu cunhado mandou abrir outras, largas e bem fundas, e nelas enterrou os macabeus que trouxera, aos dois, três e quatro em cada buraco. Antigamente, no Cemitério de São João Batista, havia, de cada lado e no meio das quadras da direita e da esquerda, dois belos círculos ajardinados. Desapareceram durante a gripe, transformados em grandes valas comuns. Depois é que se regularizaram as ruas e os defuntos anônimos deram lugar aos mortos mais categorizados das SPs de hoje. A sineta de entrada nos cemitérios não parava de bater, quase enlouquecendo os vivos das casas próximas. A Santa Casa, diziam, para aumentar seus lucros no comércio dos caixões, criava mais fregueses, ministrando aos hospitalizados tisana letal que ficou celebrada na crença popular e na literatura de cordel como o Chá da meia-noite… “Aqueles dias” – escreveu Pedro Dantas (Prudente de Morais, neto) – “ninguém que os tenha vivido poderá jamais esquecê-los.” Sim. Era de ver as ruas vazias cortadas de raro em raro pelos rabecões e caminhões de cadáveres. Pelo bagageiro do Jamanta. Um ou outro passante andando como se estivesse fugindo e trazendo no rosto a expressão das figuras do quadro de Edvard Munch: Angst. Isso mesmo, angústia: faces de terror, crispações de pânico, vultos de luto correndo, pirando, dando o fora e, no fundo, um céu vangogue sangue ocre. Só que para quem viveu aqueles tempos – sua lembrança não vem com nenhuma cor viva como as daquela tela. Nenhuma tinta matinal, diazul, púrpura crepúsculo, prata luar – tudo é dum cinza pulverulento, dum roxo podre, poente de chuva, saimento, marcha fúnebre, viscosidade e catarro.
No meio dessa balbúrdia, um dia entrou porta dos Ennes adentro – quem? meu avô materno, o nosso Major em carne e osso. Vinha como se fosse da Lua pois descera de Minas quando lá apenas começava a epidemia. Estava de passagem para o Ceará, pretendia mudar-se para lá e ia sondar o terreno. Seguia licenciado. Se gostasse, pedia remoção. Embarcava no dia seguinte e como tinha vontade de conhecer o Pão de Açúcar, seu caminho aéreo, e não soubesse andar direito na cidade, vinha me buscar para servir-lhe de cicerone. Satisfeitíssimo fui vestir meu uniforme azul e batemos para a Praia Vermelha. Fiquei assombrado com o vazio das ruas e com as poucas pessoas que as cruzavam, no maior número carregadas de negro e luto. Espantou-me o aspeto da praça da República. Um deserto. Tornei a vê-la assim, muito mais tarde, quarenta e seis anos depois, no dia 1º de abril de 1964. A revolução triunfara mas corriam os boatos mais alarmantes: revide a qualquer hora, levante comunista, os morros iam descer sobre a cidade, haveria assaltos, ataques às casas, saques, o diabo. Fui a meu consultório de Viúva Lacerda, 27, esvaziei o cofre e levei o que havia para guardar em casa de meu sócio. Era na Tijuca, mais seguro que minha casa, à Glória. Fui. Voltei pelo Mangue e ao chegar em frente à Central medi o pânico da cidade pelo deserto que havia defronte do Ministério da Guerra. Aquele vácuo restituiu-me o de 1918, o mesmo que eu vira de bonde, em companhia do Major. Voltemos para trás e para o passeio que íamos fazer. Subi na esperança de recuperar o azul que vira ano passado com meus primos Maria e Joaquim Antônio. Nada. O sol me parecia não dourado mas dum amarelo sujo como o do pó de arear talheres. O céu era uma abóbada de pedra-pomes: a luz do dia, de dura, parecia areia nos olhos. Doía. O ar respirado, eu o sentia árido. Roncavam meus intestinos e uma vaga dor de barriga começou a me atormentar junto com a de cabeça. À hora da descida, dormi no bondinho e tive o sonho angustioso da escada que fugia debaixo dos meus pés. Acordei tiritando e o Major concordou que eu estava com a testa muito quente. Encontramos um táxi, meu avô ficou no seu hotel perto da praça Mauá, deu o endereço do tio Ennes e pagou a corrida até lá. Já tive de descer amparado pelo chofer que entregou-me escaldando à Eponina, que viera atender à porta. Desci com ela e quando entrei no cômodo que nos servia de dormitório já lá encontrei, espichado, o Paulo. A Eponina, o Ernesto, a sinhá Cota e o Gabriel estavam convalescendo e agora caíamos mais dois no mesmo dia. E ambos com a forma intestinal. Ardíamos em febre. Eu não parava de rolar escada abaixo senão para abrir pálpebras pesadas, ver o escritório como que iluminado à luz negra e tornar a começar a cair os degraus grátis de minha temperatura. O dr. Guimarães receitou quinino, magnésia fluida e dieta absoluta. Só água e chá o dia inteiro e à noite – só à noite! – um copo de leite bem açucarado e engrossado com araruta. Começaram os dias de alucinações, suor e merda. Essa não parava, nem os vômitos. Era a forma gastrintestinal diagnosticada em mim e no Paulo. Recebemos os maiores penicos que havia na casa e vivíamos sentados neles. Eu perdera toda a vergonha da Eponina que caridosamente os tirava, lavava, trazia limpos e defumava o escritório empestado por dois, com alfazema na brasa – como quarto de parturiente. Nos intervalos víamos a figura dos parentes à nossa cabeceira. Revezavam-se nos assistindo exemplarmente. Todos. Tio Ennes, tia Eugênia, Nair, Ernesto, sinhá Cota e principalmente a Eponina dando água, dando chá, dando remédio, rindo, animando, levando os penicos cheios até à borda e trazendo-os limpos e reluzentes como luas. Ela chamava-os elegantemente os bacios. Assim tratados e mimados pela Pupu, começávamos a melhorar e já prestando atenção ao ambiente, eu e o Paulo notamos o sumiço de todos e nossa enfermeira rareando nas suas aparições. E sentíamos um sapateado contínuo no assoalho, em cima. Era a mesma barulhada dia e noite como se o Donnerwetter e o Verdun gambadassem sem cessar, no corredor. Quando a febre passou e começamos a curar, percebi que aquilo não era mais ilusão dos ouvidos e interpelei a Eponina. Ela respondeu com a verdade. Era a Nair que caíra e estava piorando sempre. Mais um dia, o Paulo levantou-se. Mais dois e subi me arrastando. Estava bom: só que muito fraco, tão fraco que no primeiro dia tive uma espécie de desmaio. Fui para a janela da frente, sentei, em uma hora vi descerem três enterros malacompanhados por Barão de Mesquita e entrei para fugir da vista triste da rua vazia, só animada de vez em quando pela passagem dum funeral. Vim devagar pelo corredor, a porta da Nair estava aberta, parei, olhei e fiquei aterrado. Não era a moça radiosa que eu conhecia. Aquela pessoa discreta que não gargalhava e que apenas sorria; que não alteava a voz, que cochichava, tão baixo falava como um canto bocca chiusa; a pele de camélia, os lábios de pétala vermelha, os cabelos prodigiosos – tudo mudara e era como se eu a visse outra, como se outro ente, outra coisa, uma espécie de demônio estivesse entaipado dentro dela. Envultada pelo sínoco, tomada da influência, seus cabelos tinham perdido o brilho e o suor colava-os às têmporas escavadas; os olhos brilhavam, mas como brasa, da vermelhidão do que fora o seu branco e estavam estranhamente desviados, como num estrabismo; tinha as pálpebras inchadas, as narinas inchadas, as maçãs do rosto carmesins e contrastando com a palidez da testa, do contorno da boca e dos lábios gretados e de cor azulada. Emitia um gemido gutural e entrecortado, ardia em febre, sufocava, parecia sofrer terrivelmente. O dr. Guimarães desconcertado já não sabia em que forma de gripe colocar a da Nair pois parece que ela tinha manifestações de todas. Em torno dela tumultuavam as providências. Fui para a sala de jantar onde sua mãe estava em lágrimas, em lágrimas tia Eugênia, o marido, a sinhá Cota, a Zazoca. O Ernesto tinha saído para comprar uma banheira, pois o médico recomendara imersões prolongadas para ver se cedia aquela febre despropositada que empurrava a coluna de mercúrio acima de 43 graus – o máximo marcado no termômetro. A Eponina não saía mais da cabeceira da prima.
À noite, quando o dr. Guimarães voltou, a doente continuava ardendo em febre apesar de ter passado mais de duas horas dentro da banheira. Ele falou em forma mista de gripe, forma trina, dizia, a um tempo meningo-encefalítica, broncopneumônica e gastrintestinal. E quando digo gastrintestinal creio que poderia dizer dotienentérica tal a adinamia da minha paciente. Caso grave, caso extremo, morbo extremo e – Ad extremos morbos, extrema remedia, exquisite optima – acrescentou, olhando de soslaio Ennes de Souza que, pálido de angústia, sufocado de emoção, nem ligou ao brilho e ao latinório do doutor. E ele, Guimarães, ia entrar com os grandes remédios -como mandava o aforisma. Ia dobrar a dose de quinino, ministrar o óleo canforado de seis em seis horas, o conhaque de doze em doze e começar com o Electrargol. Começou. As injeções eram dadas por um vizinho que tinha a prenda de aplicá-las, o seu Antônio Moura, morador do 14, marido da d. Olga, prima da Nausikaa. Assim os prestimosos vizinhos passaram a tomar parte na vida da casa, a gente da Amélia Sales também, outros parentes, mais amigos e o 16 vivia cheio. Creio que estas coisas se passavam a 30 ou 31 de outubro. Mal foram instituídos os extrema remedia, a doente piorou. Passou o dia primeiro numa alternativa de delíquios e de excitação; nesses urrava de aflição e dor de cabeça, tão alto que seus gritos eram ouvidos até na praça Saens Peña, até na Barão de Mesquita. Na noite de 1 para 2 eu e o Paulo dormíamos no porão o sono profundo da convalescença quando, pela madrugada, ouvimos o Nestico aos brados pelo seu Moura, de pé no muro divisório e batendo na janela do vizinho com um vasculho. Aquilo porque o portão estava fechado e havia cachorrada solta. Levantamos e subimos. A Nair estava morrendo. Em roda da sua cama, choravam desesperadamente. Toda roxa ela respirava desordenadamente. De repente parou. A Eponina já ia tirar a vela de suas mãos quando pela última vez ela tomou uma inspiração funda e expirou-a longamente, ao mesmo tempo que seu rosto ficava cor de cera e o queixo lhe caía. Acabara. Houve um clamor dentro da casa toda iluminada e aberta. Pelas janelas entrava o ar da noite e a modulação terrível dos cachorros do vizinho, do Verdun e do Donnerwetter uivando à morte. O Ernesto e eu fomos amparando tio Ennes até à sala de jantar onde ele desmoronou na sua cadeira de balanço. Olhei para ele. Vi sua face venerável arrasada como se por cima dela tivessem passado várias vidas. Chorava como criança. Senti que ele estava ferido de morte. A banheira das imersões passou arrastada para a copa. As mulheres se trancaram com a defunta. Quando abriram a porta estava tudo arrumado e esticado. Uma vela ardia à cabeceira. Saíra da mala o vestido que devia servir no casamento e vimos deitado o jacente de uma Noiva de mármore. O dia amanheceu chovendo e o Ernesto saiu para o atestado, o caixão, a essa, as formalidades. O obituário, que já estava amainando desde 30 de outubro, permitiu que tudo saísse em ordem. Só não foram arranjadas as coroas. O aparato entrou de manhã, a essa ficou na sala e dentro em pouco o ataúde branco com a moça toda de branco foi colocado ali. Tia Eugênia, lívida, fizera que todos se sentassem e mandou que todos se contivessem. Só não teve mãos na Clara que pálida como a defunta, toda de preto e envolta numa mantilha negra, lamentava-se sem parar e regava de lágrimas o rosto da filha, cujos olhos entreabertos e a boca -esboçavam um sorriso longínquo e triste como se viesse do fundo do Tempo. E vinha. A Nair já estava mergulhada no Passado, longe como as Guerras Púnicas, as Primeiras Dinastias do Egito, o rei Minos, os primeiros homens ainda errantes e miseráveis. De repente olhei para um dos espelhos venezianos e estremeci. Ele reproduzia o outro e os dois repetiam numa cripta imensa de cada lado da sala, dez, vinte, cem, mil, undesmil virgens mortas cujos rostos iam se cavando e arroxeando na medida que progredia o dia. Era de chuva grossa e perpendicular que caía sem parar desde muito cedo. Foi varando aquele Finados e chovia do mesmo jeito quando chegaram o coche funerário e um carro de praça puxado por duas pilecas escanzeladas. Afastaram os tocheiros, apagaram as velas, cresceu o cheiro de cera e tia Eugênia fixou os olhos para ver fechar o caixão, surpreender a última nesga do rosto da Nair, contemplado pela última vez. A última? Foi-se. O coche tinha cortinas brancas. Seguiu devagar, atrás dele só o carro com o noivo e o Ernesto. Mais ninguém. Andou. Estompou-se dentro das cordas d’água na direção da praça. Diluiu-se como se sumisse num aquário. Já noite chegaram os acompanhantes e o Ernesto contou que no cemitério tinham tido de pôr o caixão na cova tão cheia d’água que ele desaparecera sob aquele lençol que também sumira debaixo das peletadas das pás jogando terra. Pois essa camada de lama, com o tempo, endureceu. A Nair ficou chumbada naquela ganga e quando cinco anos depois tia Eugênia foi tirar seus ossos encontrou-a inteira e incorrompida. Só que toda escura como se fosse múmia faraônica. A estátua de mármore tornara-se estátua de bronze. O coveiro explicou que ela se conservara assim porque o ar não entrara. Era só pôr terra e voltar dentro de dois anos. Agora ia ser rápido. Foi. Dois anos depois seus ossos limpos iam para o jazigo familiar. Doce moça, repousa em paz.