EDUARDO DE AZEREDO COSTA (*)
Um domingo recheado de motivos para que sentássemos à frente da TV esperando a programação anunciada: a HORA da ANVISA!
A minudente relatora, prata da casa, muito cedo tirou qualquer dúvida: as solicitações de uso emergencial a serem apreciadas e votadas seriam aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No entanto, dessa vez não eram decisões a portas fechadas, havia um país presente no ato. Um certo nervosismo na leitura era natural, mas o texto estava escrito.
O que, além de citações de leis e portarias, estaria lá? Como a instituição e o governo chamariam para si a autoridade legal perante a população era também esperado: com o conhecimento e a ciência de seus quadros. Mas como fariam política de governo com bases técnicas? Não dava. Afinal tinham reduzido o conflito a duas vacinas, uma de iniciativa do governo federal e uma de um governo estadual. Limpe-se o assunto e se reduzia a duas instituições centenárias desses governos. Unidas na aparência, nem tanto no contexto, afinal as nomeações dos dirigentes dessas instituições cabem aos respectivos governos.
Desse modo, a leitura dos detalhes das aprovações descerraria o não dito diretamente.
E a mão pesada seriam os termos condicionados na liberação da CoronaVac, obrigando o Diretor do Butantan a apresentar uma solicitação de prazo para atender ao pedido de dados de sorologia de voluntários da fase 3 e não da fase 2 do estudo. O que claro que pode e será feito, pois consta do protocolo do estudo do Butantan, mas caduca a necessidade por análise interina e com os dados de eficácia já disponíveis.
Aliás, quiseram deixar clara a diferença de estimativas de eficácia, como se o resultado de 50% de uma fosse comparável com a de 70% da outra. Sobre isso silenciaram. O estudo de fase 2/3 da AstraZeneca (do qual não participou a Fiocruz) tinha definição de casos, diferente, só incluindo quatro sintomas para então fazer o teste (no caso de Brasil e UK – embora citado no relatório, o estudo da África do Sul não teve os dados incluídos na publicação da AstraZeneca).
Além da maior exposição ao risco do estudo do Butantan, esse incluía casos já com 14 dias da segunda dose e sintomas gerais desde diarreia, vômitos etc., que às vezes aparecem fazendo com que nos outros estudos (da Pfizer também) ficasse dentro dos não sintomáticos, não estudados de modo sistemático. A comparabilidade mais próxima seria dos 78% do Butantan para os casos leves, moderados e graves com os 72% da AstraZeneca. Há mais a comentar, mas não cabe aqui. Apenas pequenas falhas técnicas na pressa da análise.
A HORA do ESPANTO veio da análise do outro pedido. Não, a vacina em questão não era a da Fiocruz, está terá o IFA produzido e certificado na China a pedido da AstraZeneca, mas a do Serum Institute não teve o certificado. A licença emergencial é só para as duas milhões de doses adquiridas com muita insistência do governo federal para tentar ter a primazia na aplicação da primeira dose e não ficar inerte perante as iniciativas do governo de São Paulo. A importação deve ter sido feita pela Fiocruz, que protocolou o pedido já que, por razões que desconhecemos, ainda não produziu os primeiros lotes nas suas instalações.
Para aprová-la, citaram uma inspeção de boas práticas para outras vacinas de um ano atrás (janeiro de 2020), antes da pandemia. E ficaram faltando as boas práticas das sementes (para a matéria-prima da parte produzida pela AstraZeneca). Mas isso ficou irrelevante para seu veredito. E o pior: a vacina não veio ainda e pelo menos teoricamente, como importada que é, teria de passar pelos testes do INCQS/Fiocruz (Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde).
Com a fala do segundo voto, soubemos que a vacina da Universidade de Oxford e do laboratório AstraZeneca se chama na Índia de Covishield (escudo contra covid). Enfim, autorizado o uso emergencial de um quantitativo em importação que vai precisar passar por controle de qualidade, por pelo menos 15 dias (ou não?).
Dentro de todo o resto, um alerta oportuno que não pode ser burocratizado: é fundamental, sempre, e mais nessa situação de vacinas novas com autorização emergencial, a vigilância das reações adversas, responsabilizando o Butantan e a Fiocruz cada qual por sua vacina.
No entanto, o fato de que os controles de cada estudo tiveram aplicação de vacinas diferentes devia ser alertado. A do Butantan usou o Anatox Tetânico, velho e conhecido, cuja utilização ajuda a simular a mesma dor no local de aplicação da vacina, mantendo cego para o voluntário a que grupo pertence, sem que tanto no grupo vacinado como no controle tenha havido reação adversa severa; enquanto a Covishield usou a vacina conjugada para meningite, uma vacina de reatogenicidade alta, que exige uma atenção maior.
Assim, não foi pontuado pela Anvisa que houve 79 eventos adversos severos no grupo Chadox1 (89 no grupo controle) e que dois foram considerados ligados à vacina experimental, além de um na vacina de controle. Apesar de haver apenas 2 casos graves de reações em vacinados, tais casos representam mais do que uma reação adversa severa por 10 mil observados.
Além da produção e aplicação das vacinas, as instituições de saúde terão o dever de notificar e investigar todas as reações à aplicação das mesmas, separando de qual vacina foi, quando ambas estiverem sendo aplicadas.
Por fim, no domingão, além do autoelogio institucional, uma especialidade brasileira, que veríamos de novo na HORA da VACINA na TV do Governo de São Paulo, sobrou a humorística ou maliciosa insubordinação do governo paulista às ordens da Anvisa, transformada em aparato da diretoria para poupar um presidente perverso e perdido.
E para nós, disciplina e confiança de que o pessoal da saúde seja bem treinado para as suas nobres funções, fundamentais para o restabelecimento da vida e alegria que os brasileiros tanto precisam.
(*) Eduardo de Azeredo Costa é médico-sanitarista e PhD em epidemiologia.