
“E hoje é dia de agradecer à 322ª Divisão de Rifles do Exército Vermelho
pela Libertação de Auschwitz”
Lucia Chermont
(historiadora, ex-pesquisadora do
Arquivo Histórico Judaico Brasileiro)
“Todo ser humano que ama a liberdade
deve ao Exército Vermelho
mais do que conseguirá pagar em uma vida”
Ernest Hemingway
Na manhã de 27 de janeiro de 1945 a 322ª Divisão de Rifles do Exército Vermelho avançou sobre os portões de Auschwitz-Birkenau para libertar os sobreviventes do maior campo de extermínio nazista
“Havia um cheiro tão forte que era impossível aturar por mais de cinco minutos. Meus soldados não conseguiam suportá-lo e me imploraram para que fôssemos embora. Mas tínhamos uma missão a cumprir”, relatou, 60 anos depois, o comandante daquela divisão. Anatoly Shapiro, então com 32 anos, que foi quem tomou a iniciativa de abrir os portões do campo.
Auschwitz-Birkenau, era um complexo de campos de concentração e extermínio localizado em território polonês, próximo a uma das maiores cidades do país ocupado, Cracóvia.
“Não tínhamos a menor ideia da existência daquele campo”, relatou Shapiro.
“Entramos ao amanhecer de 27 de janeiro. Vimos algumas pessoas de pé em roupas listradas – eles não pareciam humanos. Eram pele e osso, somente esqueletos.
“Quando dissemos a eles que o Exército soviético os havia libertado, muitos sequer reagiram. Não conseguiam falar ou mesmo mexer a cabeça.
“Não tinham calçados. Seus pés estavam envoltos em trapos. Era janeiro e a neve estava começando a derreter. Até hoje não sei como conseguiram sobreviver”.
“Quando chegamos ao primeiro pavilhão, estava escrito que era para mulheres. Entramos e vimos uma cena horrível.
“Mulheres desnudas e mortas jaziam perto da porta. Suas roupas tinham sido removidas pelas sobreviventes. Havia sangue e excremento pelo chão”.
“A história era semelhante nos alojamentos infantis. Havia apenas duas crianças vivas em um deles. E elas começaram a gritar ‘Não somos judias! Não somos judias’. Elas eram judias, mas estavam com medo de serem levadas para as câmaras de gás. Nossos médicos as tiraram dos alojamentos para serem limpas e alimentadas”.
Mas Shapiro contou que as tentativas de ajudar os prisioneiros de Auschwitz nem sempre eram bem-sucedidas. “Abrimos as cozinhas e preparamos refeições leves. Algumas das pessoas morreram porque seus estômagos não podiam mais funcionar normalmente”, prossegue Shapiro em seu depoimento.

“Estávamos furiosos e nossa ira estava especialmente voltada para os alemães (capturados durante a batalha na região de Auschwitz). Os soldados queriam matar todos”, destaca Shapiro acresecentando que os oficiais soviéticos não permitiam as chacinas de prisioneiros alemães.
Shapiro também explicou que os alemães tinham destruído tudo conectado a experimentos com seres humanos que fizeram em Auschwitz. Incluindo pacientes.
“Em 18 de janeiro, os alemães reuniram todas as pessoas que conseguiram e as obrigaram a marchar nuas e famintas para um outro campo de concentração. Nossos serviços de inteligência estimaram que eram 10 mil pessoas”.
Essa caminhada final foi denominada “Marcha da Morte”, Shapiro avaliou que aqueles que não conseguiram fugir morreram nas estradas em meio à neve.
“Vi os fornos e as máquinas de matar. As cinzas (dos mortos) eram espalhadas pelo vento”.
“Se pudesse enviar uma mensagem para as próximas gerações, ela seria que não permitissem novamente o que aconteceu”.
Acredita-se que um milhão e meio de pessoas morreram apenas em Auschwitz, executadas ou vitimadas por fome, doenças ou exaustão pelos trabalhos forçados.
“ESTÁ FRIO”
O químico Primo Levi (preso pelos nazistas quando integrante da Resistência Italiana), depois de escapar de Auschwitz tornou-se escritor para denunciar os horrores nazistas.
Ainda no campo de Auschwitz, Levi escreveu*:
“Está frio: nevou novamente em abril, o vento sopra gelado dos Cárpatos, será frio mesmo no verão, e ficamos o dia inteiro ao ar livre, mesmo na chuva. Após a primeira semana, a fome já é uma obsessão, e será nossa fiel companheira até o final: à noite, todo o campo só sonha em comer. O despertador é às quatro horas, dormimos em dois por beliche, 200 em cada pavilhão de madeira: no campo somos 10.000, fala-se todas as línguas da Europa. Quem fica levemente doente é colocado alguns dias para descansar: os doentes graves desaparecem, eles vão para um campo a 10 km daqui, onde tudo é muito bem organizado e a câmara de gases tóxicos e o crematório funcionam sem interrupção. Mas nem precisa estar doente: apenas estar fraco ou muito velho, ou mesmo apenas ter um momento de azar: as seleções continuam em intervalos irregulares, em uma fração de segundo se julga se estamos ou não aptos a fornecer mais trabalho útil. Quatro milhões de judeus cruzaram a soleira da câmara de gás. Por três anos a Chaminé obscureceu o céu. Mas tudo acontece de forma metódica, da maneira mais econômica: antes da cremação, são removidos os dentes de ouro dos cadáveres, as cinzas, como material fosfatado, vão para as estações experimentais de agronomia”.
Já livre, Levi conta os últimos momentos aterradores em Auschwitz e o instante preciso em que começou a se sentir livre: “Em janeiro de 1945, os russos marcharam com suas forças sobre Cracóvia: no dia 17, os alemães decidiram evacuar a área, reuniram todos os válidos e os arrastaram com eles. Poucos deles se salvaram: alguns foram mortos pelos alemães, parte deles morreu de frio e fome. Eu havia contraído cinco dias antes escarlatina e fiquei: é difícil não pensar em um milagre; nunca tinha ficado doente antes. Parece que as SS também tinham ordens para nos eliminar, futuros acusadores: eles não tiveram tempo. Fomos abandonados à nossa sorte por 10 dias, éramos 800; durante este período, 200 morreram de fome, frio e doenças. No décimo primeiro dia, vimos a primeira patrulha russa”.
NAZISTAS BATEM EM RETIRADA
O professor Luigi Biondi, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp), Campus Guarulhos, descreve e analisa aspectos centrais do horrendo morticínio nazista, em depoimento de fevereiro de 2020. Escolhemos alguns trechos de seu trabalho.
“No dia 27 de janeiro de 1945, uma patrulha avançada da 322ª divisão de fuzileiros do Exército Vermelho da União Soviética entrava no campo de extermínio de Auschwitz- Birkenau.
“Cerca de 700 deportados ainda estavam no campo, sobretudo crianças e doentes, e por isso foram deixadas ali, pois alguns dias antes os soldados da SS, força armada alemã, corpo de elite do Partido Nazista, que dirigia os campos de concentração, havia levado embora todos os internados que podiam caminhar em direção a outros campos, em uma chamada Marcha da Morte. Era pleno inverno da Europa centro-oriental, com neve, gelo e temperaturas frequentemente abaixo de zero.
“O Exército Vermelho estava realizando o avanço mais profundo dentro da Alemanha: faltariam ainda três meses para o fim derradeiro do Reich alemão e do poder nazista.
“Auschwitz não foi o primeiro campo de extermínio a ser libertado, uma vez que os soviéticos já haviam entrado nos campos de Majdanek e Belzec no verão de 1944, mas os alemães não haviam deixado sobreviventes e tinham destruído boa parte das instalações.
“O campo de concentração de Auschwitz-Birkenau foi o principal local de aprisionamento e progressivo extermínio construído pelo governo alemão com a finalidade de eliminar para sempre os judeus europeus — a chamada ‘solução final do problema judaico’.
“Além destes, muitos milhares de pessoas que não eram judeus, de diversos países europeus ocupados pelos alemães, da França, Itália, Holanda, e Rússia, foram também aprisionadas e mortos ali: ciganos, homossexuais, prisioneiros de guerra, majoritariamente poloneses e soviéticos, padres católicos, e muitos opositores religiosos e opositores políticos, em grande parte social-democratas e comunistas, inclusive alemães.
“O campo de Auschwitz era um complexo de campos de concentração, trabalho e extermínio, com os grandes subcampos de Auschwitz I e II, Birkenau e Monowitz, onde foram mortos mais de um milhão de pessoas, quase totalmente judeus, egressos de todas as partes da Europa.
15 MIL CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO
“O governo alemão manteve entre 1940 e 1945 quase 15.000 campos de concentração, trabalho, aprisionamento ou de extermínio, localizados sobretudo nos ex- territórios da Polônia ocupada. Nesses campos e em ações diversas de repressão sobre a população durante a guerra, foram assassinadas pelos nazistas ao menos 15 milhões de pessoas. Dessas, mais de 42% eram judeus, 25% civis eslavos (sobretudo russos, poloneses e ucranianos), 20% soldados soviéticos, 10% opositores políticos.
“Como foi possível o horror desse imenso genocídio programado é a pergunta e a reflexão que muitos fazem ainda hoje. Diversos historiadores, seguindo reflexões de Hannah Arendt, explicam isso com a força de um poder totalitário racista que tornou o ato de provocar a morte e a violência generalizada e desumana em banalidade cotidiana.
“Sejam imbuídos da estupidez racista, seja pelo medo da repressão do Estado e dos seus superiores, muitos acabam participando de um genocídio como este, submetidos ao poder sem controle, autoritário, ditatorial, cuja função criminosa é transformar seres humanos sob seu domínio ideológico e de terror em homicidas em série, chafurdando na indiferença ao sofrimento alheio.
“Os historiadores, em geral, concordam sobre o que chamamos de ‘possibilidade histórica do genocídio’, alerta o professor Biondi.
Afinal, como disse o já citado escritor judeu italiano, Primo Levi, sobrevivente do campo de Auschwitz: “se aquele horror aconteceu, ele é real e possível, e pode acontecer de novo”.
“Considerando o contexto do momento”, prossegue o professor, “aquela conjuntura do conflito militar e da ocupação, por parte da Alemanha e de seus aliados (Itália, Hungria, Bulgária e Romênia) de quase toda a Europa, foi o que tornou operativo um programa de assassinato em massa dos diferentes seres humanos nas normas estabelecidas pelo governo nazista, seja por motivos étnicos, religiosos ou políticos, tendo os judeus como os principais alvos de aniquilamento físico imediato.
“A guerra e a ocupação militar, além de acirrar os conflitos entre ocupantes e ocupados, colocou os alemães também em contato com os países da Europa Oriental, majoritariamente eslavos e onde também residia a maior parte da população judaica da Europa. Ambos, eslavos e judeus, eram considerados pelos nazistas racialmente inferiores, levando-os então a pensar programas mais efetivos de subjugação, aprisionamento, discriminação e eliminação progressiva, com o objetivo de povoar essas regiões principalmente com alemães e alguns subjugados.
“Foi o que ocorreu de forma planejada somente a partir de 1942, após a Conferência de Wansee, que reuniu em Berlim diversas autoridades do partido nazista e do governo, para a realização da chamada Solução Final e a ativação dos campos de extermínio, planejados para a eliminação física imediata em massa. De fato, desde 1933 (ano de início do governo de Hitler) até o começo da guerra, o sistema de campos de concentração havia sido montado na Alemanha para aprisionar e controlar basicamente os opositores políticos, não estando claro ainda quais medidas definitivas teriam sido tomadas para expulsar ou eliminar os judeus alemães, que eram, no país, uma pequena minoria.
“Os interesses capitalistas e a crise econômica recessiva que antecedeu a guerra – em parte pelas penalizações financeiras impostas à Alemanha após a Primeira Guerra – também jogaram um papel importante na implementação da política de genocídio, pois empresas alemãs de todo tipo se aproveitaram cientemente do trabalho escravo dos deportados nos campos de concentração. Todos os adultos hábeis para o trabalho eram empregados em fábricas ou canteiros de obras, em condições de trabalho desumanas, muitos morrendo dentro de um ou dois anos por inanição e cansaço. ‘Os mataremos de trabalho’, disse certa vez Himmler, o chefe das SS. Ao lado do campo de Monowitz, por exemplo, os deportados construíram o maior estabelecimento químico da Europa da época, de propriedade da empresa IG Farben (fabricante do gás mortífero Ziklon, usado nas câmaras de gás) .
“Crianças, idosos, doentes e fracos fisicamente eram eliminados dentro de poucos dias ou até horas desde a chegada ao campo, em câmaras de gás, e seus corpos queimados, sendo que algumas crianças eram ‘salvas’ em um primeiro momento por serem selecionadas como cobaias para todo tipo de experiência médico-científica.
PARA NÃO ESQUECER
Na luta para impedir que aquela tragédia seja esquecida ou se repita foi decidido tornar Auschwitz e outros campos de extermínio parte do patrimônio memorial material contra o terror nazista, o horror da supremacia racial e social, qualquer que ela seja. Uma advertência de que não existem povos superiores e nações abençoadas, como expresso na Carta das Nações Unidas e ensinado por parte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
A crise capitalista em curso, que tem como um de seus componentes o fosso que se exacerba, na situação econômica, entre os países ditos desenvolvidos e os em desenvolvimento, o desemprego grassando mesmo nos paíse ditos desenvolvidos, o recuo em relação ao Estado de bem-estar social e os fluxos migratórios – provenientes de países africanos em crise e da América Central – começam a permitir o ressurgimento de uma mentalidade fascista e sua retórica entre setores que perderam espaço enquanto classe média e outros marginalizados, milicianos entre eles.
Neste ponto, vale lembrar com repúdio o comportamento de amplos setores no interior da maioria judaica de Israel mergulhados hoje em uma concepção supremacista racial com base na qual discriminam, agridem e assaltam os palestinos, um comportamento execrável tanto mais inaceitável quando se trata de descendentes de comunidades que atravessaram aquele horror com base em uma similar visão racista e supremacista ariana.
O GOLPE FASCISTA FRACASSADO NOS EUA

Sobre o perigo dessa excrecência composta de marginalizados basta ver o putsh do Capitólio comandado por Trump e seguidores o que, apesar do fiasco, mostra até onde estão dispostos a ir. Invadiram o Congresso norte-americano, empastelaram o gabinete da presidente da Câmara, a deputada democrata Nancy Pelosi, enquanto um grupo entoava pelos corredores do prédio que abriga as duas Casas Legislativas dos Estados Unidos, “Enforquem Pence”, referindo-se ao vice-presidente até aquele momento do país, Mike Pence, execrado por Trump por se negar a participar com ele da tentativa frustrada de golpe fascista.
A respeito disso tudo não precisamos ir longe; infelizmente para nós, o atual desgoverno de Bolsonaro é expressão desse catastrófico fenômeno e, diante do dano que já causou à sociedade brasileira (mais de 220 mil mortos pela Covid-19, devido ao menosprezo com relação à doença, à negação da ciência como norte para enfrenta-la, o recurso a panaceias inoperantes como a cloroquina) e à luz de fenômenos históricos a exemplo da bestialidade nazista e frente ao risco para a sociedade brasileira que sua retórica e comportamento fascistas, mesmo depois de tudo o que aconteceu no passado, demanda uma reação clara, unida, em defesa da ciência, da razão e sobretudo da democracia.
ATO EM MEMÓRIA
Neste sentido, um grupo de organizações judaicas brasileiras, incluindo o Observatório Judaico de Direitos Humanos no Brasil Henry Sobel e organizações jovens judaicas, a exemplo do Hashomer Hatzair (Jovem Guarda) e Ichud Habonim Dror (União dos Construtores da Liberdade), realizarão (dia 31, a partir das 18:00) uma cerimônia denominada “Em Memória das Vítimas do Holocausto – Combatendo o Negacionismo” na busca de expor a insanidade dos que negam tanto o fato histórico da ocorrência da barbárie nazi-fascista, quanto a história e a ciência nos dias de hoje e fazer um alerta para as consequências do ressurgimento de vertentes fascistas antissemitas no mundo e em nossa sociedade.
O ato será concluído com uma palestra sobre a pandemia e o negacionismo proferida pelo epidemiologista e professor titular da USP, Paulo Lotufo.
PARTICIPE DO EVENTO:

*Carta e depoimento do químico e escritor italiano, Primo Levi (1919-1987), sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, publicados pela revista italiana La Stampa (21-02-2019). A tradução é de Luisa Rabolini.