“O BC já possui a autonomia de que precisa. Tirar a escolha de seu chefe, por parte do presidente, no início de seu mandato, dado o poder do mercado financeiro no mundo atual, e mais ainda na economia brasileira, será a entrega do galinheiro à raposa”, afirma o economista Nelson Marconi
Os aliados de Bolsonaro no Congresso Nacional decidiram exumar o projeto de autonomia do Banco Central do então ministro de Planejamento do primeiro governo da ditadura, Roberto Campos, o avô do atual presidente do Banco Central Roberto Campos Neto, oriundo do espanhol Santander, onde trabalhou por mais de 16 anos.
Roberto Campos ficou conhecido como “Bob Fiels” por seu alinhamento à política neoliberal que defendia entre outras coisas o o aumento de juros e a derrubada do crescimento econômico como remédio contra a inflação, o arrocho salarial, corte de gastos, as privatizações, o fim do Estado e o alinhamento aos EUA.
Segundo o relator do projeto que estabelece a autonomia do Banco Central na Câmara, deputado Silvio Costa Filho (Republicanos-PE), o parecer sobre o texto já foi chancelado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo próprio presidente do BC, Roberto Campos Neto, e o tema vai à votação em plenário na quarta-feira (10).
O discurso é o mesmo: manter a inflação sob controle às custas da fome e da miséria do povo brasileiro e a “boa governança monetária do país”, ou seja, submeter a política monetária ao interesse do sistema financeiro. Para isso, o mandato do presidente não poderá coincidir com o da presidência da República, assim como não poderá demitir o presidente do BC.
Para o economista Nelson Marconi, professor da FGV-EAESP, o projeto de autonomia do BC será a entrega do galinheiro à raposa. “Tirar a escolha de seu chefe, por parte do presidente, no início de seu mandato, dado o poder do mercado financeiro no mundo atual, e mais ainda na economia brasileira, será a entrega do galinheiro à raposa. É a única explicação para essa proposta”, afirmou em artigo no portal Disparada que reproduzimos a seguir.
O Banco Central já possui toda a autonomia de que precisa
Por Nelson Marconi
A política monetária é um dos instrumentos mais importantes de política econômica. Através dela, define-se a taxa de juros, que é uma das principais variáveis utilizadas para controlar o nível de atividade e de emprego e a inflação.
O Banco Central define não só a taxa juros, mas o volume de crédito, a taxa de câmbio, enfim, dentre outras variáveis que vão exercer muita influência sobre o emprego e os preços. Isso afeta a vida de todo mundo. E como funciona hoje a autonomia operacional do Banco Central, que já existe?
O Conselho Monetário Nacional (CMN) define a meta de inflação para os anos seguintes. Se a meta for baixa, e a produtividade não se elevar, o ajuste se dará sobre o nível de emprego da economia. É bom que todos saibam disso. O contrário certamente também é verdadeiro.
Uma vez definida a meta de inflação, o Banco Central já possui a autonomia necessária para definir a taxa de juros e as demais variáveis citadas acima que auxiliarão no controle do nível de atividade, emprego e inflação. Na verdade, o que é necessário aperfeiçoar é:
1) Quem define a meta? Hoje é o presidente do BC e o Ministro da Economia, apenas, o que é muito restritivo;
2) A forma e alcance da responsabilização dos gestores da política monetária;
3) O próprio regime de metas, no tocante à forma como a inflação deve retornar à meta quando há uma alta.
Agora, se isso já existe, o que pretende o projeto que será votado no Senado? Há aperfeiçoamentos em relação à legislação atual, mas o ponto principal, que é um absurdo, consiste em definir que o presidente da República não possa nomear o presidente do Bacen no início de seu mandato.
O presidente da República poderia nomear um de seus principais colaboradores da política econômica, uma posição fundamental, ocupada por alguém que precisa ter afinidade com o projeto de desenvolvimento para o qual o presidente terá sido eleito, só no 3º ano de seu mandato.
Se quem define a meta de inflação é o CMN e o BC já possui a autonomia operacional que precisa, para que isso? Na verdade, implicitamente, está se afirmando que o presidente não tem condições de propor a política econômica, e quem reuniria essas condições seria um grupo de técnicos iluminados do BC. É como se a decisão técnica pudesse ser fosse dissociada da política. Não existe essa dissociação. É um absurdo que o presidente só possa escolher o ocupante de um cargo tão importante no 3º ano de seu mandato.
O BC já possui a autonomia de que precisa. Tirar a escolha de seu chefe, por parte do presidente, no início de seu mandato, dado o poder do mercado financeiro no mundo atual, e mais ainda na economia brasileira, será a entrega do galinheiro à raposa. É a única explicação para essa proposta.
E mais, o grupo que decide a meta de inflação, que deve se somar à do emprego, precisa ser ampliado. Outros atores do setor produtivo devem ser escutados. É uma decisão muito importante para a sociedade e não pode ser definida por uma dupla apenas.
***
A ideia da independência do BC – na verdade, é disso que se trata – está baseada, supostamente, na crença de que a ação do Banco deveria ser “blindada” de influências políticas. À primeira vista, pode parecer razoável para muita gente, mas não é.
O BC administra uma parte importante das políticas macroeconômicas – a monetária, a cambial e a creditícia. E hoje, cada vez mais, a política monetária está vinculada às decisões da política fiscal (que não cabem ao BC) e não há como dissociá-las. A inconsistência da política econômica poderá ser gritante.
Agora imaginem um governo eleito democraticamente, com um determinado compromisso econômico junto ao país, que não consegue implementar as diretrizes macroeconômicas necessárias porque o presidente do Bacen, que só mudaria no 3º ano do mandato do governo, é contrário.
O presidente do BC teria um poder imenso sem ser eleito por ninguém. Logo, o projeto de independência do BC está, implicitamente, considerando o seguinte: a democracia tem seus limites; não deve invadir o território da política econômica, cujas decisões deveriam ser restritas aos técnicos do BC.
É um pouco estranho para uma democracia, não? Os países que adotam esse modelo passaram nos últimos anos por vários momentos em que faltou coordenação entre as políticas monetária e a fiscal. E a realidade têm mostrado que essa ausência de coordenação não é boa.
O BC também regula o sistema financeiro. Portanto, a sua tarefa de regulador deveria, essa sim, ter maior autonomia, a exemplo das demais agências reguladoras. Dai pergunto: algum ponto do projeto toca nessa questão? Não!
A quem interessa essa maior autonomia na política monetária, inclusive sem a contrapartida de maiores cobranças por resultados? O BC já possui a autonomia necessária, conforme explicado acima. E faço mais uma pergunta: por que esse é o primeiro projeto, junto com a lei do regime de câmbio, que o novo presidente da Câmara quer votar? Maia dizia que havia outros prioritários, e ele tem razão.
Tendo a achar que a resposta está na priorização que o centrão precisa atribuir a esse tema por ter recebido “algum” apoio da banca. Afinal, por que tanta pressa em um projeto tão polêmico e, a meu ver, danoso? A fatura já começa a ser cobrada.
Mais uma vez, fica claro que, para a turma de sempre, o problema do presidente em (falta de) exercício não é a incompetência e irresponsabilidade, mas apenas o descumprimento da agenda liberal.
Obs.: o projeto de lei sobre o mercado de câmbio não pode prever a possibilidade de contas em dólar para pessoas físicas. E os casos para as pessoas jurídicas devem ser muito restritos. Do contrário, teremos uma dolarização forte, coisa que nunca tivemos, nem no período de hiperinflação.