Algum tempo atrás, deparamo-nos, quase por acidente, com este belo ensaio da historiadora Maraliz de Castro Vieira Christo. Originalmente uma comunicação ao XXVIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte (Rio de Janeiro, 2008), espantou-nos a sensibilidade da autora – além de seu evidente conhecimento da matéria que trata.
Hoje, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, ocorrido na última quinta-feira, iniciamos sua publicação.
Retiramos o texto do site DezenoveVinte.
Por último, advertimos ao leitor que uma das coisas mais torturantes da Internet é jamais sabermos quais são as cores reais das obras de arte – sobretudo das obras pictóricas, mas também das artes gráficas. Assim, se o leitor conhecer alguma das obras que reproduziremos e suas cores não corresponderem ao que se lembra, perdoe-nos pelo erro. O mais importante é ter uma ideia das questões a que a autora se refere.
C.L.
MARALIZ DE CASTRO VIEIRA CHRISTO
Em pesquisa sobre o acervo do Museu Mariano Procópio uma obra chama a nossa atenção, a tela de Armando Vianna (1897-1992), Limpando metais, datada de 1923, onde uma empregada doméstica negra pule pratas e cristais, com o olhar distante.
Seu autor seguiu uma carreira normal para um jovem simples do Rio de Janeiro: aos treze anos começou a trabalhar na oficina de pintura do pai, pintando placas, carrocinhas e charretes; cursou o Liceu de Artes e Ofício, o curso livre da Escola Nacional de Belas Artes, onde foi aluno de Rodolpho Amoêdo e Rodolpho Chambelland; em 1921 iniciou sua participação no Salão Nacional de Belas Artes, conquistando o prêmio viagem, em 1926, com a tela Primavera em flor, exposta há muito tempo na Galeria de Arte Brasileira Contemporânea, do Museu Nacional de Belas Artes. Sobreviveu de seu trabalho artístico pintando flores, paisagens, nus femininos, telas históricas e religiosas, falecendo em 1992, aos 95 anos (cf. José Maria Carneiro, Armando Vianna: sua vida, sua obra, prefácio Jorge Cabicieri, Rio de Janeiro: Arte Hoje, 1988).
Armando Vianna pintou Limpando metais exclusivamente para concorrer à premiação do Salão Nacional de Belas Artes, conseguindo a Medalha de Prata. Embora neto de escrava alforriada, Vianna parece não ter produzido outros quadros com personagens negros.
Aparentemente, o quadro e a carreira de seu autor não apresentam grandes apelos para manterem-se como foco de interesse historiográfico, entretanto Limpando metais possui o poder de nos interrogar sobre as representações da mulher negra em sua época.
REPRESENTAÇÕES DO NEGRO PÓS-ABOLIÇÃO
Imagens de negros povoaram as obras dos viajantes, assim como dos fotógrafos do século XIX, sendo raras as representações em pinturas a óleo. Nas primeiras décadas após a abolição, encontramos artistas que apresentaram mulheres negras em seus quadros. É difícil, entretanto, ter-se uma visão mais clara de seu significado, na ausência de um maior inventário sobre o tema. As obras que se destacam pertencem a acervos públicos, tornando-se mais conhecidas; são elas: Engenho de mandioca (1892) e Redenção de Cã (1895), de Modesto Brocos; Mulata quitandeira, de Antonio Ferrigno (c. 1893-1903); Mãe Preta, de Lucílio de Albuquerque (1912), e Tarefa pesada, de Gustavo Dall’Ara (1913).
Além do tema, essas obras possuem em comum o fato de terem, em sua maioria, participado dos Salões da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), sido premiadas e adquiridas pelo governo. O espaço oficial do mundo das artes no Brasil abria-se, portanto, para imagens sentimentais sobre a situação da mulher negra.
Nenhum dos artistas citados dedicou-se predominantemente a essa temática, representando, os quadros referidos, momentos episódicos no conjunto de suas produções. Percebe-se que se tornaram peças importantes na estratégia dos pintores para a conquista de premiação no Salão de Belas Artes. Interessante também observar que dos quatro artistas apontados apenas um é brasileiro.
O espanhol Modesto Brocos (1852-1936) representou o trabalho predominantemente feminino num engenho de mandioca, onde todos estão absortos em suas tarefas, não abrindo espaço para indagações sobre individualidades e sentimentos; um estudo de tipos, como definiu Gonzaga Duque. O quadro exposto na primeira mostra realizada pelo artista, no Rio de Janeiro, em 1892, foi adquirido pelo Estado. Também participou da Exposição Universal de Chicago, realizada em comemoração aos 400 anos da descoberta da América, entre maio e outubro de 1893.
O mesmo artista apresentou, no Salão de 1895, a tela Redenção de Cã, contemplada com a Primeira Medalha de Ouro e igualmente incorporada à pinacoteca da ENBA.
Redenção de Cã é assim descrito por Teixeira Leite em seu dicionário:
À porta de um casebre, uma ex-escrava agradece aos céus pela pele clara do netinho, sustentado ao colo pela mãe, uma jovem mulata que tem a seu lado o marido, lusitano típico. A Redenção de Cã consiste, por conseguinte, no branqueamento da raça, através de gradativos cruzamentos. Muito embora muitíssimo bem pintado, trata-se, sem dúvida, de uma das pinturas mais reacionárias e preconceituosas da Escola Brasileira (José Roberto Teixeira Leite, Dicionário Crítico da Pintura no Brasil, Rio, Artlivre, 1988, p. 435-6).