Uma nota assinada por cientistas e personalidades que integram a Fundação Coragem (The Courage Foundation) e liderada pelo embaixador, Maurício Bustani, ex-diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) e direcionada ao atual diretor da entidade, expressa preocupações sobre o futuro da Organização, por conta dos resultados enganosos e das fraudes cometidas no relatório atribuído à “Comissão de Inquérito” enviada à Síria. Distorções que visavam alegar o uso de armas químicas pelas forças sírias no acidente de Douma, em 2018.
Além disso, a nota faz críticas às tentativas da OPAQ de desprestigiar os especialistas e cientistas que se manifestaram de forma declarada contra as violações cometidas naquele inquérito.
O pedido, agora formulado pelos cientistas e personalidades, já vem sendo reiteradamente apresentado pela Síria que alerta por uma parcialidade fruto de uma ocupação da OPAQ por portadores de interesses políticos escusos oriundos dos Estados Unidos.
A nota reforça as provas e indicações já apresentadas pela Síria e outros países sobre as fraudes contidas no relatório sobre Douma.
Aliás, temos acompanhado a posição da Síria, que tem zelado para que a Organização para a Proibição de Armas Químicas mantenha o seu caráter técnico, que visa cumprir os nobres objetivos para os quais foi criada, permanecendo longe dessa parcialidade porque tais agendas afetam sua credibilidade atual e sua atuação futura.
A Síria tem reiterado veementemente, que não possui armas químicas, o que foi reconhecido pela própria OPAQ, e que apoia a rejeição terminante sobre o uso de armas químicas, seja qual for a alegação ou a parte, seja qual for o local ou contra quem quer que seja. Destaca que nunca fez e nunca fará uso de armas químicas, porque sequer as possui e, ao mesmo tempo, porque considera o seu uso antiético e desumano.
É fundamental que todos os Estados que integram a OPAQ, incluindo o Brasil, apoiem a posição síria e a nota da Courage Foundation, para salvar a OPAQ, impedindo que ela se torne um mero instrumento de interesses injustos, agressivos e escusos; para impedir que ela sirva de formuladora de pretexto a ataques que ferem a soberania e integridade territorial síria.
Enfatizamos que o caso de Douma foi nitidamente armado. Em primeiro lugar, o suposto ataque com armas químicas aconteceu no momento em que as forças sírias avançavam sobre um dos últimos bastiões ocupados pelos bandos terroristas em Idlib. Ou seja, uma fraude para tentar paralisar a libertação de território e para socorrer os terroristas que invadiram a Síria e que, àquela altura perdiam batalha após batalha.
ATAQUE À SÍRIA COM A MISSÃO DA OPAQ PRESENTE NO PAÍS
Além disso, quando a missão da OPAQ chegou à região, a convite da própria Síria – interessada em esclarecer os fatos – e se preparava para iniciar a investigação sobre os acontecimentos no local, os Estados Unidos, apoiados pela França e Inglaterra perpetraram um ataque abertamente anunciado por Trump, em abril de 2018, com 103 mísseis contra o país, especificamente em direção à área onde ocorreria a investigação.
Nada denuncia mais claramente o envolvimento externo com o incidente de Douma.
Fica a pergunta: se os Estados Unidos acusavam a Síria como se com tanta certeza acerca da responsabilidade síria no ataque químico e, por via de consequência, com suposto interesse na apuração dos fatos para asseverar sua alegação, porque bombardear a região no momento em que a missão internacional se preparava para ir ao local?
A intenção da estúpida agressão, que nos parece óbvia, era a de intimidar os investigadores dando a eles um sinal de disposição a tudo para que o relatório atendesse a seu interesse de agredir a Síria.
Vale acrescentar que nem com esse nível de violência, se conseguiu dobrar toda a equipe que realizou a investigação em Douma. Tanto assim que o inspetor-chefe da equipe da OPAQ que esteve em Douma em 2018, Ian Henderson, afirmou na ONU que o relatório final contradiz o que foi verificado por sua equipe in loco e devidamente informado à organização.
Em depoimento ao Conselho de Segurança da ONU, no dia 20 de janeiro de 2020, o chefe da equipe de inspetores de armas químicas da OPAQ que esteve em Douma afirmou que o relatório final divulgado contradiz o que foi verificado por sua equipe in loco e devidamente informado à organização.
O relatório que veio a público era “uma completa reviravolta na situação do que havia sido entendido pela equipe inteira de Douma e pela maioria da equipe”, enfatizou Henderson.
MARIA PIMENTEL*
Segue a carta na íntegra:
Nota sobre as investigações da Organização para a Proibição de Armas Químicas relativas ao alegado uso de armas químicas em Douma/Síria
Nós, que abaixo assinamos a presente nota, escrevemos para expressar a nossa profunda preocupação em relação às contínuas controvérsias e resultados políticos relacionados à Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) e suas investigações relativas à alegada agressão com armas químicas a Douma na Síria, em 2018.
Desde que a Organização para a Proibição de Armas Químicas publicou seu relatório, em março de 2019, sobre esta questão, ocorreu uma sequência de desdobramentos que provocaram sérias e substanciais preocupações sobre os métodos utilizados para a realização de tal investigação.
Dentre estes desdobramentos, foram identificadas enormes irregularidades processuais e científicas cometidas pelos investigadores da Organização encarregados do referido inquérito, além do vazamento de um grande número de documentos corroborantes e declarações contundentes fornecidas ao Conselho de Segurança da ONU. Agora está bem estabelecido que alguns inspetores seniores envolvidos com a investigação, um dos quais desempenhou um papel central, rejeitam a forma como a investigação derivou suas conclusões e a gestão da OPAQ agora é acusada de aceitar conclusões inconsistentes ou possivelmente manipuladas, com sérias implicações geopolíticas e de segurança.
Os reiterados pedidos dos inspetores para que tivessem a oportunidade de discutir suas preocupações dentro da OPAQ foram ignorados e os pedidos de alguns membros do Conselho Executivo da OPAQ para permitir que todos os inspetores fossem ouvidos foram bloqueados.
As preocupações dos inspetores são compartilhadas pelo primeiro Diretor-Geral da OPAQ, José Bustani e por um número significativo de indivíduos eminentes que pedem transparência e responsabilidade na OPAQ.
O próprio Bustani foi recentemente impedido por membros importantes do Conselho de Segurança de participar de uma audiência sobre o dossiê sírio. Como afirmou o embaixador Bustani em um apelo pessoal ao Diretor-Geral, se a Organização está confiante na condução de sua investigação sobre Douma, então não deverá ter dificuldade em atender às preocupações dos inspetores.
Até o momento, infelizmente, a OPAQ não respondeu às alegações contra ela e, apesar de fazer declarações em contrário, nunca permitiu que as opiniões ou preocupações dos membros da equipe de investigação fossem ouvidas. Na verdade, a alta administração nunca se reuniu com a maior parte da equipe de investigação. Em vez disso, contornou a questão ao lançar uma investigação sobre um documento vazado relacionado ao caso Douma e ao condenar publicamente seus inspetores mais experientes por se manifestarem a respeito.
Em um preocupante desdobramento recente, um projeto de carta falsamente alegado como tendo sido enviado pelo Diretor-Geral a um dos inspetores dissidentes vazou para um site de investigação de “código aberto” em uma aparente tentativa de difamar o ex-especialista sênior da OPAQ e revelar sua identidade. Ainda mais alarmante, em uma série de rádio da BBC4, transmitida recentemente, uma fonte anônima, supostamente ligada à investigação da OPAQ em Douma, violou os regulamentos da Organização ao dar uma entrevista à BBC na qual não apenas denegriu a imagem dos dois inspetores dissidentes, mas também a do próprio Embaixador Bustani.
É importante ressaltar que vazamentos recentes, em dezembro de 2020, evidenciaram que estas preocupações também foram mantidas por funcionários graduados da OPAQ, que apoiaram o inspetor da OPAQ que se manifestou a respeito da má prática.
A questão que se apresenta ameaça prejudicar gravemente a reputação e a credibilidade da OPAQ e minar seu papel vital na busca da paz e segurança internacionais.
Simplesmente não é sustentável para uma organização científica como a OPAQ recusar-se a responder abertamente às críticas e preocupações de seus próprios cientistas, embora esteja sendo associada a tentativas de desacreditar e difamar esses cientistas.
Além disso, a controvérsia em curso sobre o relatório Douma também levanta preocupações com relação à confiabilidade dos relatórios anteriores da FFM, incluindo a investigação do alegado ataque a Khan Shaykhun em 2017.
Acreditamos que os interesses da OPAQ serão mais bem atendidos pelo Diretor-Geral se for disponibilizado um fórum transparente e neutro, no qual as preocupações de todos os investigadores possam ser ouvidas, bem como será garantido que uma investigação científica e totalmente objetiva seja concluída.
Para tanto, conclamamos o Diretor-Geral da OPAQ a encontrar coragem para abordar os problemas dentro de sua organização relacionados a esta investigação e garantir que os Estados-Parte e as Nações Unidas sejam devidamente informados. Desta forma, esperamos e acreditamos que a credibilidade e integridade da OPAQ possam ser restauradas.
Assinaturas:
– José Bustani, embaixador do Brasil, 1º. Diretor Geral da OPAQ e ex-embaixador do
Brasil no Reino Unido e na França.
– Professor Noam Chomsky, professor Laureado da Universidade do Arizona e do Instituto MIT.
– Daniel Ellsberg, ex-funcionário do Departamento de Defesa americano.
– Professor Richard Falk, professor Emérito de Direito Internacional na Universidade de
Princeton.
– Professor Dr. Ulrich Gottstein, em nome dos Físicos Internacionais para a Prevenção da
Guerra Nuclear (IPPNW – Alemanha).
– Dennis J. Halliday, assistente do Secretário Geral das Nações Unidas de 1994 a 1998.
– Professor Pervez Houdbhoy, Universidade de Quaid-e-Azam e ex-Pugwash**.
– Dra. Sabine Krüger, química analítica, ex-inspetora da OPAQ de 1997 a 2009.
– Ray McGovern, ex-assessor presidencial pela Cia, co-fundador da Profissionais Veteranos de Inteligência para a Sanidade.
Professor Götz Neuneck – do Conselho Pugwash e presidente da Pugwash Alemanha
– John Pilger, vencedor dos prêmios Emmy e Bafta de melhor Jornalista e produtor de
Filmes
– Dirk van Niekerk, ex-chefe da Equipe de Inspeção da OPAQ, chefe da Missão Especial da OPAQ para o Iraque.
– Professor Theodore A. Postol, professor Emérito de Ciência, Tecnologia e Política
Nacional de Segurança do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
– Dr. Antonius Roof, ex-chefe de Inspeção da OPAQ e chefe de Inspeção Industrial.
– Professor John Avery Scales, professor do Conselho Pugwash e representante Dinamarquês no Conselho Pugwash
– Hans von Sponeck, ex-assistente do Secretário Geral das Nações Unidas e Coordenador
Humanitário das Nações Unidas para o Iraque.
– Alan Steadman, especialista em munições para armas químicas, ex-chefe de Equipe de
Inspeção da OPAQ e Inspetor da Comissão Especial das Nações Unidas
– Coronel Lawrence B. Wilkerson, oficial das Forças Armadas dos Estados Unidos, professor visitante da Faculdade William e do Mary College, ex-chefe de equipe do Secretário de Estado norte-americano, Colin Powell.
A Carta foi emitida da sede da missão da OPAQ para a Síria, em Haia, Holanda
*Secretária de Relações Internacionais da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil – CGTB
** As Conferências Pugwash sobre Ciência e Negócios Mundiais, em inglês Pugwash Conferences on Science and World Affairs, é uma organização internacional que congrega professores e personalidades públicas, a fim de reduzir a ameaça de conflitos armados e procurar soluções para a segurança global. Foi fundada por Joseph Rotblat e Bertrand Russell em 1957 em Pugwash, Canadá, após a publicação do Manifesto Russell-Einstein, em 1955