Mesmo sem um levantamento rigoroso, os quadros mais conhecidos permitem perceber a preocupação sobre o lugar da mulher negra na sociedade brasileira. As opções são pessimistas: desaparecer pela miscigenação, permanecer reclusa na periferia e morros, ou aprisionar-se na cozinha, trabalhando sempre. O alienar-se da negra de Armando Vianna é, de certa
forma, a conscientização desse processo
MARALIZ DE CASTRO VIEIRA CHRISTO
O quadro de Modesto Brocos foi reproduzido na abertura do ensaio apresentado pelo diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda, no I Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres, em julho de 1911, acompanhado pela legenda “Le nègre passant au blanc, à la troisième génération, par l’effet du croisement des races”. Redenção de Cã configurar-se-ia, portanto, como demonstrativo de uma tese, mais do que interrogação sobre as condições de incorporação da mulher negra na sociedade brasileira. Rafael Cardoso levanta a hipótese de o quadro ter sido interpretado à sua época como progressista, expressão de um saber científico, ilustração didática de uma aspiração comum. O depoimento do próprio artista sobre a recepção de sua obra reforça essa hipótese:
Foi um sucesso! Bilac escreveu uma engenhosa crítica sobre a maldição de Noé, que meu quadro desvalorizava; inspirou a Coelho Neto uma composição sobre o navio fantasma – os alunos ofereceram-me uma palheta e os jornais desfizeram-se em elogios. Tudo isso foi obra dos meus amigos, principalmente de Bernardelli – o júri influído, concedeu-me a primeira medalha.
O italiano Antonio Ferrigno (1863 – 1940), em sua estada no Brasil, entre 1893 e 1905, tornou-se conhecido por pintar fazendas de café. Neste período, representou em pequenos quadros jovens negras, a exemplo de: O galanteio, apresentando uma bela mulher, carregando um cesto e uma galinha, aparentemente retornando das compras, interrompida por um homem branco; Nativa, Fazenda Santa Gertrudes – Araras, SP, onde a mesma personagem posa segurando uma ovelhinha ao colo contra um bananal; Monjolo, Fazenda Victória – Botucatu, SP, abordando o trabalho de mulheres carregando cestos; e, finalmente, Mulata quitandeira, pintado em maior formato, adquirido pelo Estado em 1902. Este último representa uma negra sentada displicentemente no chão à entrada de um casebre, onde vende ervas numa bandeja depositada sobre a soleira da porta. Aqui toda a noção de progresso é questionável. A emancipação não trouxe a prosperidade, a negra parece sucumbir inerte ao peso de uma realidade imutável.
Lucílio de Albuquerque (1877 – 1939) expôs Mãe Preta no salão de 1912, onde obteve a Pequena Medalha de Ouro com a obra Despertar de Ícaro. A tela representa uma mulher negra, igualmente sentada sobre o chão, amamentando uma criança branca, enquanto olha o próprio filho posto de lado. Há docilidade e ternura na cena, criando no expectador uma ligação afetiva com a mãe que amamenta, internalizando, contudo, um silencioso mal estar. O artista dedicou à tela três ou quatro estudos. Assim como Ferrigno, Lucílio opta por representar a negra em seu próprio ambiente paupérrimo, sem nenhum otimismo quanto ao futuro.
No salão de 1913, o italiano Gustavo Dall’Ara (1865 – 1923) expôs algumas telas sobre o Morro da Favela: Subindo o morro, Ronda à favela, e Tarefa pesada, com a qual conquistou a Grande Medalha de Prata. Artista preocupado em retratar a vida urbana em seus detalhes corriqueiros, tanto pintou as movimentadas ruas principais do Rio de Janeiro, quanto os morros que começavam a se povoar, com os excluídos do progresso. Tarefa pesada representa mulheres negras ou mulatas carregando água para a lavagem de roupas, na vizinhança de um barraco. Embora todas estejam dedicando-se à tarefa, nos identificamos com a de primeiro plano a levar, cabisbaixa, pesada lata d’água, que lhe estende o braço esquerdo. Somos espectadores ausentes da cena, não convidados a nela intervir.
As obras aqui apresentadas, plenamente aceitas pelo chamado mundo oficial das artes, representam a mulher negra como trabalhadora pobre, apartada dos confortos da vida urbana, ensimesmada e triste, refletindo muito concretamente sua condição social.
Neste contexto situamos o quadro de Armando Vianna, Limpando metais. O artista foi capaz de identificar no histórico das premiações do Salão da ENBA abertura suficiente para a temática, apresentando pequenas inovações.
A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM
O pintor insere a mulher negra como trabalhadora doméstica no interior de uma casa de família, modificando o antigo eixo que a vinculava à natureza, continuidade de sua pobre habitação. Ela ocupa quase a metade vertical da tela, entretanto, sua figura surge deslocada, imprensada entre uma mesa repleta de objetos e o armário ao fundo. Ao mostrar com virtuosismo cristais e metais sobre a mesa, em primeiro plano, o pintor faz o observador titubear entre o seu brilho e os reflexos do vidro do armário. É neste percurso que o olhar reconhece a empregada negra sem fixar-se em sua face. A cor da pele privada de reflexos não permite seu destaque rápido no quadro, embora a roupa esteja iluminada e o rosto se situe no encontro de duas diagonais.
A aproximação com outros quadros permite compreender mais precisamente as intenções do artista na construção de sua imagem.
Armando situa o personagem quase frontal ao observador, revelando-lhe a face. O pintor francês Henry Caro-Delvaille (1876-1928) em La jeune servante (c. 1900-1910) [Figura 7] explora os mesmos elementos, uma empregada doméstica a cuidar de cristais, entretanto toma o partido contrário, mostrando-a em primeiro plano, de costas, transformada numa bela, desejável mas anônima silhueta.[21] A empregada branca está ali apenas para executar o serviço.
Limpando Metais, de Armando Vianna (à esquerda), e Jennie, da artista afro-americana Lois Mailou Jones
Surpreende a semelhança entre o quadro de Armando Vianna e a tela Jennie, da artista afro-americana Lois Mailou Jones (1905-1998), pintada nos anos de 1940. Jennie representa uma jovem negra limpando peixe, também imprensada entre uma mesa e um armário. A tela foi uma das primeiras experiências da artista na tentativa de aproximar-se de temas ligados à representação de negros. Nela Lois Mailou Jones buscou, através da gravidade com a qual a jovem dedica-se à sua tarefa, revestir de dignidade o trabalho servil, como a própria pintora declarou. A negra americana ainda que possua a identidade de um nome próprio, não exterioriza seus sentimentos. Embora presa ao anonimato, a negra brasileira ergue o rosto, desprendendo-se do trabalho para pensar, talvez, sobre seu destino.