Neste 16 de março, completam-se 50 anos do massacre de My Lai – o horrendo e covarde assassinato de 504 civis vietnamitas em uma pequena aldeia na província de Quang Ngay, mulheres, crianças, bebês e idosos, por soldados da ocupação norte-americana – que, ao se tornar público um ano e meio depois através de denúncia do ex-artilheiro de helicóptero Ron Ridenhour e da investigação do jornalista Seymour Hersh, chocou o mundo, isolando ainda mais a agressão ao Vietnã e, dentro dos EUA, impulsionando enormemente o movimento contra a guerra e pela retirada das tropas.
Dos civis mortos, 50 tinham 3 anos de idade ou menos; 160 tinham entre 4 e 12 anos; e 49 eram adolescentes. Um dos companheiros de armas de Ridenhour, que esteve em My Lai, após lhe contar o que vira, resumiu: “foi um tipo de coisa nazista”.
No mesmo dia, houve outro massacre, de 90 civis, na vizinha My Khe. Um mês e meio antes, a Ofensiva do Tet havia acabado com os delírios de Washington de “vitória próxima” no Vietnã, encurralando o partido da guerra e deixando certos círculos racistas ainda mais apopléticos.
Foram horas de martírio insano em My Lai, com aldeões e suas crianças sendo abatidos a tiros, corpos empilhados em valas, estupros, choupanas queimadas, porões onde alguns tentavam se abrigar sendo explodidos com dinamite, gado morto e poços envenenados, em que se sobressaiu o tenente William Caley, que convenientemente se tornaria no bode expiatório para, como depois em Abu Graib, ser dito que não se tratava de uma cadeia de comando de genocidas em uma guerra de agressão, mas simplesmente de algumas ‘maçãs podres’.
A meta da operação era arrasar até o chão a aldeia, tida como reduto do vietcong, matar o gado e as galinhas, e, supostamente segundo a ‘inteligência militar’, os civis não estariam lá porque teriam ido para o mercado e haveria ‘resistência feroz’ dos vietcongs. Ordens subentendidas por Caley como uma licença para matar geral, dentro do princípio de que aldeão morto é um vietcong morto (variante de índio bom é o índio morto).
Como registrou Ridenhour, as ações da companhia Charlie e de mais outras duas da Força-Tarefa Barker, apoiados por um batalhão de artilharia e outro de helicópteros, era supervisionadas de perto “por uma cadeia de comando composto por quase 20 altos oficiais norte-americanos, incluindo dois generais”.
Não havia como negar os crimes de guerra: além dos testemunhos, surgiram fotos com civis desarmados clamando por suas vidas em Mi Lai e, logo depois, vistos mortos aos montões. Depois de escapar de pena capital e prisão perpétua, Caley ficou apenas três anos e meio em prisão domiciliar.
Como as fake news não são de hoje, no dia seguinte ao ataque o New York Times registrava a vitória na “Batalha de Dailong”, próximo da capital da província de Quang Ngay, enquanto o registro de combate contra “Pinkville” – como os invasores chamavam My Lai por causa da cor no mapa de ataque – asseverava que haviam sido mortos “128 vietcongs” e capturadas “três armas (inimigas)”.
Desde Wounded Knee, até No Gun Ri, na Coreia, na década de 1950, o massacre jamais deixou de ser parte do american way of war. No Vietnã, a Operação Phoenix da CIA matou mais de 26 mil ativistas da resistência à ocupação e torturou a muitos mais. Mas My Lai havia sido tão grotesco, que até mesmo o Pentágono se viu, na ten-
tativa de evitar que a coisa fedesse mais, a instituir um inquérito, a Comissão Peers, após cartas de Ridenhour ao Pentágono, ao Congresso e ao governo Nixon.
“Conquanto o massacre de My Lai fosse a extensão lógica das menores mas bem mais numerosas atrocidades do dia a dia que eu tinha testemunhado como artilheiro de helicóptero, ouvir a história vindo dos lábios de alguém que eu conhecia e confiava, alguém que tinha estado lá, que vira e participara naquilo, me abalou, afirmou o ex-militar.
A descrição de um “um tipo de coisa nazista” é bem apropriada para um episódio que está nos autos, em que o tenente Caley interpelou dois soldados do seu pelotão porque “ainda não os tinha matado?”, recebendo como resposta que haviam entendido que só deveriam mantê-los sob guarda. “Não, quero-os mortos. Quando eu disser fogo … atire neles”.
Um júri absolveu depois um dos militares que mais notoriamente implicados na carnificina, o sargento Charles Huton – que confessara ter metralhado civis desarmados – sob o argumento de que ele não sabia que as ordens que recebera “eram ilegais” – isto é, revogando a jurisprudência estabelecida em Nuremberg sobre crimes de guerra. Alguns soldados norte-americanos se recusaram a participar da orgia de sangue e maldade, como o sargento Michael Bernhardt, e os militares a bordo de um helicóptero – Hugh Thompson, Larry Colbrun e Glenn Andreotta –, que se arriscaram interferindo para salvar a vida de cerca de 20 pessoas, inclusive um garoto de oito anos, tirado de uma pilha de cadáveres.
Esgotadas as tentativas mais ousadas de encobrimento, o Pentágono pediu ao general Peers que suavizasse seu relatório e não se referisse às vítimas como idosos, mulheres, crianças e bebês” mas sim como “vítimas não-combatentes”. E que, no lugar de “massacre”, Mi Lai fosse descrito como “uma tragédia de grandes proporções”.
Apesar do massacre de My Lai, do agente laranja, do napalm, da Operação Phoenix, do bombardeio de ‘cachorro doido’ ao Norte, e de tantos outros crimes hediondos de guerra, o povo vietnamita forçou o governo ianque a negociar e a retirar suas tropas em 1973. Em 1975, Saigon, hoje Ho Chi Minh, em homenagem ao patriarca da restauração da nação vietnamita, foi libertada, enquanto os últimos lacaios personificavam aquela cena patética da fuga do telhado da embaixada norte-americana, para o exílio dourado nos EUA – enquanto o Vietnã se reunificava após décadas de luta patriótica.
ANTONIO PIMENTA