Por sua importância e atualidade, publicamos o texto da palestra do professor José Eduardo Cassiolato (UFRJ) sobre “A China e a Disputa pela Hegemonia Tecnológica”, parte do Webinário “China Atual”, realizado durante o Congresso da UFBA 2021, que transcorreu este ano no período de 23 a 26 de fevereiro.
“A China já tem hoje em dia a liderança tecnológica em inovação em escala mundial”, afirmou Cassiolato ao iniciar sua intervenção, procurando demonstrar como “a China chegou lá”. Ressaltou que “tecnologia, inovação, para se tornar realidade, têm que ser associadas a propostas de investimento” e enfatizou a importância da “relação investimento e desenvolvimento tecnológico/inovação” e como isso foi – e continua sendo – decisivo para o progresso do grande país asiático.
Desse debate também participaram os professores Jorge Almeida (UFBA) e Esther Majerowics (UFRN), com a coordenação do professor Renildo Souza (UFBA). Ao todo, 18 pesquisadores de várias instituições se alternaram nas mesas nos quatro dias do webinário, analisando o desenvolvimento da China sob vários ângulos.
Boa leitura.
A Redação
PROFESSOR JOSÉ E. CASSIOLATO*
A China já tem hoje em dia a liderança tecnológica em inovação em escala mundial, talvez com exceção da área de defesa, mas isso a gente pode discutir no debate.
Vou fazer um breve histórico de como a China chega lá. Vou dividir a análise em dois períodos, que vai de 1979, com a célebre proposta de transformação liderada por Deng Xiaoping, até à crise de 2007-2008, e depois, de 2008 para cá.
É importante salientar, dado que estamos em um momento de aprofundamento de uma crise crônica do capitalismo em escala global associado à pandemia, que o que a gente viu no ano passado tende a confirmar um pouco essa hipótese, que a gente está trabalhando aqui, da liderança chinesa em termos de inovação, tendo em vista a rápida resposta dada pelo sistema produtivo e inovativo chinês à pandemia, e a quantidade e qualidade dos novos produtos e processos que foram lançados como parte desse esforço enorme e que levou a China a ser um dos poucos países que, no quadro de uma queda global do PIB, teve um crescimento, pequeno pelos padrões chineses, mas positivo.
O primeiro ponto a ser apontado é que já desde 1979, com a reforma liderada por Deng Xiaoping, ciência e tecnologia são vistos pelo Partido Comunista Chinês e também pelo exército chinês como sendo a parte principal de uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo. Isto seguiu, continua seguindo e cada vez mais confirma essa tremenda transformação.
Dentro dessa estratégia, eu vou levantar dois pontos iniciais que de certa maneira condicionam um pouco esse avanço.
O primeiro, a utilização do que eu poderia chamar de complexo produtivo militar sob a liderança do exército chinês nesse processo de transformação, associado ao enorme volume de investimentos em infraestrutura.
A gente tem de lembrar que tecnologia, inovação, para se tornar realidade, elas têm que ser associadas a propostas de investimento. A relação investimento e desenvolvimento tecnológico/inovação é muito forte. E os investimentos puxaram isso de uma forma muito significativa.
Já a partir dos anos 80, a conjugação dos esforços do Partido Comunista Chinês sob a liderança de Deng Xiaoping com o Exército Chinês levou a algumas características muito específicas do desenvolvimento produtivo e inovativo chinês.
De fato, desde aquele momento, o exército chinês foi chamado a cumprir o papel preponderante na melhoria produtiva e no desenvolvimento tecnológico da China como um todo.
Na época, 30-50 mil empresas de praticamente todas as áreas da economia chinesa foram colocadas sob controle do complexo produtivo militar do exército chinês, que foi quem liderou os processos de transformação e, inclusive, de privatização, que se seguiram.
Algumas grandes empresas hoje em dia, como por exemplo a ZTE, que ao lado da Huawei é uma das líderes do 5G, se originam do complexo produtivo militar chinês.
Isso é absolutamente importante se ter claro. A guinada cada vez maior para as empresas que a gente poderia chamar entre aspas ‘privadas’, se dá sob coordenação e controle do Exército Popular da China.
O segundo ponto relevante é uma ênfase nas propostas de políticas de ciência e tecnologia, para a indústria aeroespacial. A capacitação espacial chinesa deveria ser vista não apenas como multiplicador do poder militar, mas principalmente como um fator indispensável para se organizar capacitações científico-tecnológicas em diversas áreas e setores.
Eu cito a frase de um pesquisador chinês naquele momento,“a China deve fazer de seu programa espacial o mais importante em relação a outros programas de desenvolvimento de alta tecnologia. Ao desenvolver a tecnologia industrial, podemos levar a tecnologia da informação, tecnologia biológica, tecnologia de novos materiais e novas fontes de energia e outras áreas de alta tecnologia a novas fronteiras”.
Então, há alguns princípios que guiam a estratégia tecnológica chinesa: projeto de desenvolvimento de longo prazo sob controle do Estado, com ênfase no desenvolvimento científico e tecnológico e participação ativa do exército popular. Nas primeiras décadas, o esforço, além da reestruturação da indústria chinesa, contou, por um lado, com forte apoio público à melhoria da infra-estrutura de C&T e, por outro, com a transferência de tecnologia estrangeira através da entrada seletiva de capital estrangeiro, sempre em parceria com empresas chinesas
O aumento do esforço interno chinês é de conhecimento de todos, temos o aumento significativo, na China, de qualquer variável ligada à ciência, tecnologia e educação. O número total de alunos de graduação, que era de 6,4 milhões em 1978, passa para 27 milhões em 2009, só para dar um indicador muito pequeno em relação ao resto.
Nos anos 1990, evidentemente, as transformações do capitalismo global afetam e condicionam a estratégia chinesa. A crise do capitalismo ocidental leva a aumento brutal na desigualdade, queda significativa no nível de investimentos e consequente estagnação nos diferentes mercados de consumo. Usando-se , por exemplo, a indústria automobilística, observa-se que, se você tirar a China do consumo global de automóveis, em 2019 o número de automóveis vendidos no mundo era praticamente o mesmo que em 2005. Não houve acréscimo nenhum, se tirarmos a China dessa equação.
Em primeiro lugar, temos a entrada da China na OMC. Ao mesmo tempo, as grandes empresas transnacionais ocidentais são cada vez mais submetidas à lógica de curto prazo do capital financeiro (a financeirização do nosso querido professor François Chesnais), o que as leva, entre outras coisas, a uma perda significativa da inovatividade.
O ponto aqui não é que a inovação no Ocidente cai, ela muda, se concentrando cada vez mais em melhorias em processos e produtos e não em produtos radicalmente novos. Um subproduto de tais mudanças é a perda de capacidade de engenharia, o miolo industrial norte-americano, o que se mostra particularmente relevante durante a pandemia.
Um exemplo é a falta de ventiladores pulmonares que acorreu durante a pandemia em quase todo o mundo, mas particularmente nos Estados Unidos. Este país tem as maiores empresas multinacionais de equipamentos médicos. A falta de ventiladores ocorreu apesar dos esforços do Departamento de Saúde norte-americano desde 2010 de contratar pequenas empresas de base tecnológica para desenvolver e produzir ventiladores mais eficientes econômica e tecnologicamente. Naquele ano, utilizando o poder de compra público, o Departamento de Saúde contratou uma pequena empresa, Newport Medical Instruments, repassando US$ 1 milhão para ela desenvolver ventiladores. Dois anos depois esta empresa foi adquirida por uma grande multinacional, chamada Covidien, que desiste da iniciativa e acaba com a equipe de P&D da Newport. A Covidien é posteriormente adquirida pela Medtronic, que é a maior empresa multinacional de equipamentos médicos, e 10 anos depois os ventiladores contratados pelo Departamento de Saúde ainda não existem.
A crise de 2007-2008 leva a crise global a um patamar um pouco mais elevado, e é mais ou menos na mesma época que a China lança o seu programa fundamental voltado à inovação que, junto a outros posteriores, vai levá-la à liderança tecnológica.
Esse é o programa conhecido como Indigenous Innovation [Inovação voltada ao Mercado Local]. A partir de uma percepção de que a articulação com o mercado internacional não era suficiente para a transformação tecnológica necessária, os chineses destacam a importância do que eles chamam de circulação interna. No fundo é você usar o mercado interno – que era e é o mercado de maior dinamismo na economia global – como fonte de inovatividade para aquela economia e que será fundamental para a liderança global.
E a partir daí você tem um aumento brutal na inovatividade e isso associado a um aumento brutal em qualquer indicador que a gente possa pensar ligado a ciência e tecnologia.
Só para dar um dar um exemplo – poderia dar dez ou quinze -, os gastos públicos em P&D sobre o PIB em 2007 eram 84% do observado nos Estados Unidos. O PIB chinês continua crescendo a taxas elevadas (7 ou 8%) e em 2017 a China já está em 120% em relação aos EUA.
Outros indicadores desta transformação muito rápida referem-se, por exemplo ao valor adicionado da indústria de computador e eletrônica da China que, já em 2013, passa a ser a primeira no ranking mundial. Mostrando que não é apenas a produção que se desloca para a China, mas também todo o tecido industrial, o valor adicionado, as articulações entre empresas locais e instituições locais.
A mesma coisa ocorre nas indústrias de alta e média tecnologia, de veículos, máquinas elétricas, etc. Nestas atividades, em 2006 a China apresentava um indicador de 50% do valor adicionado dos EUA, passando a 170% em 2016.
Em, 2015, um novo plano é lançado, voltado às tecnologias da chamada Indústria 4.0, apresentando uma característica muito importante. O anterior colocava a inovação de uma forma um pouco ampla e geral, mas o de 2015 já coloca a inovação de um ponto de vista específico, voltado a reformar todo o sistema de manufaturas e de fabricação chinesa.
E é neste período então que temos os chineses liderando qualquer atividade econômica do ponto de vista da capacidade produtiva e de capacidade tecnológica de inovação. Três exemplos que eu gosto de dar são eólica, solar e trens de alta velocidade. Eles não tinham nenhum quilômetro de trens de alta velocidade em 2005 e dez anos depois, a China já é responsável por 70% da quilometragem global de trens de alta velocidade e as empresas chinesas já são as líderes do ponto de vista produtivo e inovativo nesta área. Em eólica eles não tinham nenhuma empresa em 2004-2005 e, cinco anos depois, das dez maiores, cinco são chinesas. E dez anos depois, oito ou nove das principais empresas eólicas são chinesas.
Há uma série de outras características que vale a pena falar porque é muito citado, que é a ideia do capital de risco, do venture capital, das pequenas empresas de tecnologia. A primeira coisa importante que a gente tem a dizer é que uma boa parte destas empresas são spin-offs das universidades e estas universidades são dotadas da capacidade, já a partir dos anos 90, de serem donas de empresas. Então você tem empresas como a Lenovo, que ainda hoje tem 40% do seu capital pertencente à Chinese Academy of Science. E as grandes fontes de fundo de financiamento das pequenas empresas unicórnios são as empresas públicas (22% do total), as empresas privadas chinesas (35%) e o governo como um todo (17%). Então não há essa ideia de que o mercado vai resolver o problema de financiamento das pequenas empresas de base tecnológica. Essa é uma questão evidentemente importante a ser tratada.
As empresas chinesas, tanto as privadas quanto as públicas, seguem uma estratégia, até o final dos anos 2000, que era focada principalmente em engenharia reversa e licenciamento de tecnologia. A partir de então, buscam o mercado local para aprenderem a se desenvolver tecnologicamente e, apenas depois, elas partem para a concorrência no mercado global. Sempre articulado com o Estado e com o governo chinês que, digamos, induz e condiciona, proporciona mecanismos, não apenas de financiamento, mas outros tipos de mecanismos de política industrial e tecnológica que levam as empresas chinesas a adquirir outras empresas no Ocidente, instalar plantas industriais e centros de P&D em outros países. Como exemplo, uma das razões do grande salto da indústria automobilística chinesa é o fato de que as empresas chinesas adquirem capacitações no exterior, comprando praticamente todas as pequenas empresas italianas especializadas em design para automóvel. Isso acontece também em outras atividades produtivas e em outros países, inclusive no caso dos Estados Unidos.
INDÚSTRIA 4.0
Agora vamos falar um pouco das tecnologias da chamada Quarta Revolução Industrial e trazer a questão um pouco para o quadro atual. Esse quadro atual foi muito matizado por essa guerra que foi colocada a partir da penetração, da constatação da liderança por parte da Huawei, e que levou a uma série de sanções que foram feitas pelo governo norte-americano, particularmente em 2020. E a pressão em outros países, inclusive no caso brasileiro.
Depois que as pressões aconteceram, nos últimos meses do ano passado, praticamente todos os analistas dentro dos Estados Unidos e mesmo fora, mesmo conservadores, são quase que unânimes no sentido de dizer que a forma como os Estados Unidos está reagindo a isso é quase como um tiro no pé. Porque tem uma interpenetração muito grande entre a Huawei e outras empresas e porque o governo chinês resolve acelerar o processo de endogenização em algumas poucas áreas onde eles são ainda dependentes de tecnologia externa, como semicondutores.
Só para ter uma ideia, a Google, que é proibida de funcionar na China, você não pode usar a Google ali, mas esta empresa tem um centro de P&D na China porque ela tem que se aproximar do avanço tecnológico de fronteira que é feito por aquele país.
Quanto às tecnologias da Indústria 4.0, no Ocidente está se utilizando muitas tecnologias tipo inteligência artificial, robotização, dentro da mesma lógica do capitalismo dominado pelas finanças. Isto é, as empresas estão adquirindo estas tecnologias visando minimizar custos, o que tem levado ao aumento do nível de desemprego. Na China, e temos evidências de pesquisa que realizamos com parceiros chineses na área de saúde e que mostram como naquele país acontece é exatamente o contrário. As novas tecnologias digitais estão sendo usadas, fundamentalmente, para desobstruir gargalos e desenvolver áreas novas, produtos novos, portanto criando capacidade, criando empregos em coisas que não existiam antes.
Do meu modo de ver, a China tem usado nesta área da Indústria 4.0 dois grandes programas nacionais, são políticas nacionais muito fortes, que são o programa de Smart Cities, de cidades e prédios inteligentes, onde o Estado está por detrás de tudo: está por detrás da organização, está por detrás do investimento, está por detrás do financiamento, está na coordenação de como a Tencent, a Baidu e outras grandes empresas chinesas trabalham nessas áreas. E desenvolvendo coisas absolutamente inovadoras no programa de Smart Cities.
Outro programa é o Belt and Road Initiative, o grande programa internacional chinês, que tem um lado físico – construção de estradas, etc –, mas que tem um lado digital também, que é a interligação de todos os países asiáticos e tentando avançar em direção à Europa, do ponto de vista das novas tecnologias ligadas à indústria 4.0.
O Estado está muito por trás na organização, na concertação. As empresas estatais são um número relativamente pequeno, mas controlam uma série de atividades que são fundamentais. Mesmo as empresas privadas como Huawei e outras são vinculadas ao Estado.
Eu lembro que na última viagem que fiz à China descobri uma coisa que não tinha lido antes: que mesmo as empresas subsidiárias das transnacionais são obrigadas por lei a ter uma célula do Partido Comunista dentro da empresa, que todo dia organizam uma abertura com exercícios físicos e a celebração do hino nacional chinês em toda a unidade produtiva de grande empresa, inclusive transnacional.
Aí a gente chega evidentemente na grande diferença que a gente tem no quadro atual entre a relação Estado, governo e setor privado, do ponto de vista da organização das atividades produtivas e das atividades tecnológicas e de inovação.
Se na China ocorre isso, no Ocidente, controlado e capitaneado pelas finanças, o que a gente viu nos últimos 20 anos é exatamente o contrário. A gente vê cada vez mais o Estado, inclusive e particularmente na pandemia, sendo capturado pelos interesses do grande capital especulativo e do grande capital mesmo produtivo, que é subjugado à lógica das finanças.
E o impacto que isso traz na organização produtiva e na inovação é enorme e isso tem causado problemas inclusive do ponto de vista de tecnologia militar. Só para dar um exemplo temos o caso da Boeing, que nos últimos dez anos teve três ou quatro grandes acidentes onde ficou patente a perda do dinamismo tecnológico e de inovação.
* É Coordenador da RedeSist /Professor Adjunto IE-UFRJ; Pós-Doutorado na Université Pierre Mendés France, UPMF, França; Doutorado em Economia – Universidade de Sussex, U.SUSSEX, Grã-Bretanha; Mestrado em Economia – Universidade de Sussex, U.SUSSEX, Grã-Bretanha e Graduação em Economia na Universidade de São Paulo, USP,
Uma aula. Depois de ler textos como esses, confesso pensar em suicídio ao ouvir certas asneiras sobre a atuação da China na pandemia. Dessas que a gente tá cansado de ouvir por aí. Estaria a burrice no patamar de uma ciência no ocidente. A ver…
Tá aí o decano PhD para liderar um novo ministério e enfrentar o negacionismo mal caráter, mal intencionado.