CARLOS LOPES
(HP 02/11/2007)
A manobra era totalmente irregular: Fischer não havia participado do Campeonato dos EUA de 1969, que era ao mesmo tempo o torneio zonal que escolhia os participantes americanos no Interzonal de Palma de Mallorca. Portanto, não podia ir ao torneio e não podia estar entre os possíveis candidatos ao título mundial. No campeonato norte-americano, três jogadores haviam se classificado para o Interzonal: Reshevsky, Addison e Benko – naturalizado americano depois que, em 1958, abandonou a equipe da Hungria no Campeonato Mundial Estudantil por Equipes, na Islândia.
Pela desistência da vaga no Interzonal, Benko recebeu a módica quantia de US$ 2.000,00 da Federação de Xadrez dos EUA (USCF). É quase inevitável o pensamento de que os desertores do Leste europeu eram muito baratos…
Benko, a julgar pelo incidente de 1962, no Interzonal de Curaçao, onde esmurrou seu colega de delegação, não era exatamente um amigo de Fischer. (Depois, Benko tentou fazer esse papel, e talvez realmente tenha melhorado suas relações com Fischer. Porém, falar a verdade jamais foi um mandamento para ele: Benko demorou cinco anos para desmentir que tivesse recebido dinheiro para desistir do Interzonal, o que fez em julho de 1975 na “Chess Life & Review”, onde afirmou que os US$ 2.000 eram referentes a serviços como “segundo” de Reshevsky e Addison. O que não impediu o presidente da USFC na época do pagamento, Leroy Dubeck, assim como um ex-diretor-executivo da entidade – o tesoureiro de facto – de reafirmarem, posteriormente, que o dinheiro foi em troca da desistência de Benko).
EDMONSON
Ainda não é totalmente claro como foram as articulações para colocar Fischer no Interzonal. O fato é que desde antes do Campeonato dos EUA (novembro de 1969), o manda-chuva da USCF, coronel Ed Edmonson, fazia gestões para ter Fischer como candidato ao título, o que não havia feito no Interzonal de Sousse nem quando o jogador norte-americano, apesar de estar à frente dos concorrentes, ameaçou abandonar o torneio – e, depois, cumpriu a ameaça.
Porém, dessa vez Edmonson, um “oficial de inteligência” da Força Aérea, tentou convencer Fischer – a correspondência entre os dois é hoje pública – a participar do campeonato americano, onde seria, certamente, classificado para o Interzonal: desde 1957, Fischer somente não havia sido campeão dos EUA nos anos em que não participou do campeonato.
Antes que apareçam acusações de que estamos possuídos por uma “visão conspirativa da história” (como se as conspirações, as verdadeiras, não existissem na luta política, e, portanto, na História), esclarecemos que o coronel Edmonson realmente interessava-se por xadrez. É verdade que a única partida que conhecemos dele é medíocre, mais ainda considerando as condições em que foi jogada: numa simultânea contra Koltanowsky, em que este, “às cegas” (ou seja, sem tabuleiro, apenas com a memória), enfrentou 56 jogadores. Mas, dirigentes de entidades, sejam de xadrez ou de futebol, não necessitam ser bons jogadores – senão, o Duailibe e o Eurico Miranda não poderiam chegar a presidentes do Corinthians e do Vasco.
No entanto, parece que havia alguma razão, além das enxadrísticas, para que um “oficial de inteligência”, um coronel aposentado da Força Aérea, tenha se tornado presidente da USCF, e, depois de encerrado o seu mandato, tenha assumido um cargo criado especialmente para ele – o de “diretor-executivo” – com poderes reais acima da autoridade formal do presidente.
Não se trata de uma especulação, ou de mera opinião. Vejamos o que diz um dos sucessores de Edmonson na “diretoria-executiva” da USCF, Al Lawrence, em artigo publicado na edição de setembro último da revista da entidade, “Chess Life Magazine”.
Lawrence lembra que, pelas regras, era “irremediável” (sic) que Fischer não podia participar do Interzonal de Palma de Mallorca. E, continua: “O mais importante é que não havia dispositivo algum do estatuto da USFC que permitisse substituir por Fischer um dos legitimamente classificados. Dubeck e Edmonson tiveram que engendrar a criação de uma regra que permitisse isso. Eles, então, pagaram US$ 2.000 ao GM Pal Benko para sair fora. Além disso, tiveram que fazer uma artimanha política na FIDE para ganhar o controle da diretoria (….). Dubeck é rápido em dar todo o crédito às bem sucedidas estratégias fora do tabuleiro de Edmonson, um coronel aposentado da Força Aérea” (cf., Al Lawrence, “Fischer: fame to fallout“, Chess Life Magazine, setembro/2007, grifos nossos).
A “artimanha” para controlar a diretoria da FIDE foi um encontro clandestino de Edmonson e Dubeck com um delegado soviético. Segundo o depoimento de Dubeck a Lawrence, esse delegado queria “fazer um acordo com Edmonson”. Por que com Edmonson e não com Dubeck, que era o presidente da USFC?
Não era apenas porque todos sabiam que quem mandava na USFC era Edmonson. A questão é que este era quem tinha as ligações subterrâneas, ou seja, com os órgãos de espionagem norte-americanos. Caso contrário, não poderia saber – como Dubeck, até então, não sabia – que havia um delegado soviético querendo “fazer um acordo”.
É o que explica que Dubeck acrescente que o obstáculo para realizar o acordo era a KGB. Segundo ele, o intérprete do delegado soviético era um agente da KGB (no original, “um reputado assassino da KGB” – para certos norte-americanos, isso é a mesma coisa que “um agente da KGB”; que diabo estaria fazendo nessa história um “assassino”? Que utilidade teria? Essa questão não parece ter ocorrido a Dubeck; mas Edmonson sabia, como veremos, que esse “assassino” servia apenas para contemplar a fantasia e os escrúpulos de Dubeck – cobrindo um ato de corrupção com uma capa de ato heróico).
“Edmondson treinou Dubeck sobre o que fazer“. Quando se encontraram com o delegado soviético e seu intérprete, no ponto marcado pelo primeiro, “Dubeck subitamente puxou o perplexo agente para dentro de uma loja de roupas, insistindo em obter o conselho do russo sobre uma compra. Não se preocupe, Edmonson havia dito a Dubeck, é improvável que ele se arrisque a matar o presidente da USCF. ‘E funcionou’, disse Dubeck a Lawrence, “eu tirei o agente da KGB do caminho e Ed fez o acordo. Ele foi eleito para a diretoria da FIDE, e, desde que devia sua posição a nós, seu voto estaria à disposição mais tarde’”. (Al Lawrence, art. cit.).
O que há de verdade nessa história, não sabemos. O ilustrativo nesse relato é o papel de Edmonson. Qualquer semelhança com um agente da CIA, NSA ou agências semelhantes não parece ser mera coincidência.
Dubeck não parece um mentiroso. Pelo contrário, o que conta é muito comprometedor, inclusive para ele, e sempre relata os acontecimentos da maneira que se esperaria, isto é, naquele estilo algo elíptico que se tornou uma característica do fariseu norte-americano, e que alguns ingênuos, por mimese, também acabaram por adotar. Por exemplo, sobre os telegramas que enviou a Max Euwe (o ex-campeão substituíra Rogard como presidente da FIDE) a respeito da participação de Fischer: “Alguns deles não eram, devemos dizer, completamente honestos“.
Não há como saber, com os dados disponíveis, se era realmente o suposto soviético “da KGB” que Edmonson queria afastar, para que pudesse fazer o acordo. Pois, se há algo estranho no relato de Dubeck é um soviético que – em linguagem sem rebuços – queria trair, comparecer a um encontro clandestino com dois americanos, levando, ou sendo acompanhado ostensivamente, por um agente da KGB.
Quase tão estranho é os dois americanos comparecerem a esse encontro. Será que o suposto “agente da KGB” era mesmo quem Edmonson queria afastar do encontro com o delegado soviético? Ou era Dubeck quem ele queria que não tomasse conhecimento do acordo? Pois o presidente da USCF somente soube do acordo através de Edmonson. Não estava presente quando foi fechado, pois estava ocupado em impedir que o suposto “assassino”, que mais parecia um dos Três Patetas do que um agente da KGB, continuasse grudado no delegado soviético… Mas, com esse ato indômito, para o qual tinha sido “treinado” por Edmonson, também Dubeck ficou fora do encontro.
Nos parece difícil que um delegado soviético na FIDE votasse contra a posição da Federação de Xadrez da URSS, assim como qualquer delegado em relação à posição de sua federação nacional. Mas talvez não fosse necessário: a postura dos soviéticos já era demasiado conciliadora. Dubeck está se referindo, nesse caso, a impedir que alguma atitude inusitada de Fischer provocasse sua desclassificação pela FIDE.
Assim, o suborno de um delegado soviético seria uma tentativa de conseguir uma garantia a mais de que o plano para derrotar a URSS não viesse por água abaixo devido a alguma atitude antiesportiva do seu próprio jogador. Além do que, é bom lembrar, os membros da diretoria da FIDE não teriam tempo de consultar sua federação a respeito de quaisquer questiúnculas levantadas por Fischer. Sobretudo numa época em que as comunicações de longa distância eram feitas pelo antigo telefone e pelo telégrafo, eles teriam alguma autonomia para decidir as várias – e foram inúmeras – questões levantadas.
Sobre isso, é interessante uma observação de Dubeck, em seu depoimento para Al Lawrence, sobre a atitude do presidente da FIDE: “Ele devia ter desclassificado Fischer, mas não o fez“.
PERCEPÇÃO
Em resumo, o xadrez não parece ter sido, desde cedo, uma área negligenciada pelo establishment dos EUA no confronto com a URSS.
O que não se sabe – ou, melhor, nós não sabemos – é até que ponto a ação de Edmonson, no início, estava articulada com escalões mais altos do governo e dos órgãos de “inteligência” americanos. É possível que tenha sido ele o primeiro a perceber que os norte-americanos, diante da entressafra que acometia o xadrez soviético, tinham, afinal, uma chance de golpear o prestígio da URSS numa área onde ele jamais fora abalado, apesar de todas as renitentes tentativas anteriores.
Mas também é possível que essa situação tenha sido avaliada primeiramente em nível mais alto. Afinal, entre os 200 mil funcionários que, segundo o Congresso dos EUA, havia na CIA e órgãos congêneres nessa época, devia haver algum, ou alguns, que estavam dedicados a analisar a situação no xadrez soviético e podiam perceber o que estava acontecendo: Botvinnik já havia se retirado das competições; Keres, Petrosian, Smyslov e Geller não tinham, até pela idade, condições de se opor a Fischer; Tahl apresentava uma saúde demasiado frágil; e Korchnoi, cada vez mais histérico, não era um competidor sério.
Porém, havia à disposição dos norte-americanos algo ainda mais concreto do que essa avaliação geral.
O Campeonato Soviético de 1969 ocorreu em Moscou, entre 6 de setembro e 12 de outubro daquele ano. Já o campeonato dos EUA aconteceu em Nova Iorque, de 30 de novembro a 17 de dezembro. Ambos valiam como torneios zonais, ou seja, classificavam jogadores do país para o Interzonal de Palma de Mallorca que, por sua vez, decidiria seis dos candidatos a desafiante de Spassky, além de Petrosian e de Korchnoi, que já estavam classificados, o último por ter sido finalista nos matches entre candidatos do campeonato anterior).
Portanto, quando o coronel Edmonson deu a partida para o campeonato norte-americano, já sabia quem eram os jogadores soviéticos qualificados para o Interzonal: Smyslov, Polugayevsky, Taimanov e Geller.
O primeiro, pela idade e pelo retrospecto desfavorável (5 derrotas, 5 empates e apenas uma vitória contra Fischer), não era páreo, sobretudo num match longo, quanto mais em três matches longos – pois esta era a forma de decidir, após a abolição do Torneio de Candidatos, quem seria o desafiante do campeão mundial; o segundo, jamais havia enfrentado Fischer (no Interzonal de Palma de Mallorca, eles empataram) e, apesar de excelente jogador, dificilmente alguém pensaria em colocá-lo no mesmo nível do norte-americano; o terceiro, já era considerado um veterano no final da década de 50 – pelo menos assim o chamou, naquela época, Vasily Panov, em seu famoso livro sobre as aberturas do xadrez; restava Geller, um dos três jogadores soviéticos com retrospecto favorável diante de Fischer (ou outros eram Tahl e o próprio campeão, Boris Spassky). Mas Geller já estava a caminho dos 50 anos, enquanto Fischer nem havia completado 30. Num match longo, para não falar em três, essa é uma diferença fatal.
Além dessa avaliação sobre os que concorriam com Fischer, dificilmente os problemas específicos de Spassky deixaram de merecer atenção nos EUA. Era público o desconforto de Spassky com a política soviética, sobretudo após os acontecimentos na Tcheco-eslováquia em 1968, e, desgraçadamente, não porque fosse partidário de outro caminho para o socialismo. Como outros, apenas esmagava-se diante da campanha que pintava a URSS como uma tirania e os EUA como uma democracia, assim como a área de influência do último – aquela coleção de ditaduras que tão bem conhecemos – como “mundo livre”.
No momento em que, para enfrentar Fischer, era necessário acreditar que valia a pena defender a URSS, pois a luta enxadrística havia se transformado numa guerra política, o melhor jogador soviético, para usar uma expressão moderada, não tinha certeza sobre isso.
BOBBY
No entanto, o problema de Edmonson e do establishment norte-americano era Fischer. Apesar da FIDE, depois de suas acusações aos soviéticos em 1962, haver mudado a forma de disputa do título – e exatamente no sentido que Fischer havia proposto – ele não disputara mais o campeonato mundial. Não comparecera ao Interzonal de Amsterdã, em 1964, apesar de estar classificado (foi campeão dos EUA no ano anterior) e abandonara o Interzonal de Sousse, em 1967 – um escândalo que rendeu não poucas páginas às revistas de xadrez, causado pela perplexidade: Fischer estava em primeiro lugar, com um resultado impressionante (em 10 partidas havia ganho sete e empatado três), quando se retirara, mesmo com a FIDE cedendo às exigências de que sua agenda de jogos – e, portanto, também a de seus oponentes – estivesse submetida aos dogmas da Igreja Mundial de Deus.
Edmonson não conseguira que Fischer disputasse o Campeonato dos EUA de 1969. Mas, então, providenciou a esquisita interpretação para inclui-lo no Interzonal de Palma de Mallorca: se um dos três americanos classificados para o Interzonal desistisse e os outros jogadores que participaram da final do Campeonato dos EUA – portanto, suplentes dos classificados – concordassem, isto é, também desistissem de substituir o desistente, Fischer poderia jogar em Palma de Mallorca.
Restava apenas convencer Fischer. É nesse momento que a Casa Branca, isto é, Nixon e, sobretudo, Kissinger, na época Conselheiro de Segurança Nacional, parecem ter saído dos bastidores e entrado em cena.
(continua)