CARLOS LOPES
(HP 26/10/2007)
Há um aspecto da personalidade e da vida de Fischer que foi muito pouco abordado no que se escreveu sobre ele: sua primeira tendência não foi a de antagonizar os jogadores soviéticos, mas a de tentar ser aceito por eles. O que é, aliás, coerente com seu estilo de jogo, desenvolvido a partir das pesquisas enxadrísticas soviéticas das décadas de 30, 40 e 50. No entanto, essas tentativas de aproximação não obtiveram sucesso – ou, para ser exato, compreensão. Mas que ele, ao seu jeito, tentou, não nos parece haver dúvida.
No principal livro de Fischer, uma coleção de análises das suas partidas “memoráveis” até o fim da década de 60, há uma breve menção a um episódio significativo: comentando seu jogo com Arthur Bisguier no campeonato americano de 1963, ele conta que havia conversado anteriormente com David Bronstein (logo quem!) sobre a 17ª jogada, uma novidade em relação ao que o seu interlocutor havia jogado em 1953 contra Samuel Reshevsky, no Torneio de Candidatos, em Zurique: “Quando eu disse a Bronstein (em Mar del Plata, 1960) que a jogada era um tremendo [tremendous] melhoramento em relação à sua partida com Reshevsky, ele respondeu: ‘Claro. Depois de sete anos alguém iria achar um melhoramento’” (Fischer, “My 60 Memorable Games”, Simon and Schuster, NY, 1969, pág. 293).
Parece razoável a resposta, diante da atrevida palavra “tremendo”, usada por Fischer. No entanto, em 1960, Fischer era um desajeitado (e haja desajeitado nisso) jovem de 17 anos e Bronstein, com 36, era, desde 1950, um dos maiores jogadores do mundo. Nos parece evidente que Fischer queria a aprovação de Bronstein – e recebeu um corte brusco. O fato de que em 1969, quando publicou seu livro, tenha sentido necessidade de reproduzir, ou não tenha conseguido omitir, uma réplica de nove anos antes que o reduzia a “alguém”, ou seja, um qualquer, somente nos parece enfatizar o que acabamos de dizer – e o ressentimento que acumulou com a rejeição dos soviéticos.
Infelizmente, não foi apenas Bronstein que tratou mal as tentativas de aproximação do jovem Fischer. O próprio Botvinnik repete tanto a palavra “arrogante”, sempre que se refere a Fischer, que torna-se nítido que jamais se deteve a pensar no que essa arrogância significava em termos de insegurança, necessidade de aceitação – e medo à rejeição. Quanto a Tahl, um dos poucos soviéticos que não parece irritado com Fischer, a princípio se divertiu bastante com o ridículo do colega, o único mais jovem que ele entre os Grandes Mestres da época… Mas isso também não ajudou muito.
MEMORIAL
Devido às implicações políticas do match Fischer-Spassky, em 1972, da interferência de Kissinger, e da quase incrível defensiva dos soviéticos, tem-se a tendência a ver o Fischer das décadas de 60 e 70 apenas como um direitista maluco, instrumento inconsciente do establishment norte-americano na “guerra fria” – para o que contribuiu, não pouco, o seu artigo de 1962 na “Sports Illustrated”.
No entanto, a realidade é (ou foi) mais complexa. Basta ver a sua atitude em relação a Cuba, precisamente o único país que, no início da década de 60, irritava mais a casta dominante nos EUA do que a URSS.
Em 1965, Fischer estava inscrito no Torneio Memorial Capablanca, em Havana. Como aconteceria 27 anos depois em relação à Iugoslávia, o governo norte-americano proibiu que ele fosse a Cuba. Para o establishment, a participação do maior jogador de xadrez dos EUA num evento em Havana estava longe de ser um acontecimento alvissareiro. Por outro lado, considerando o seu temperamento, proibi-lo de viajar era uma temeridade, até porque as condições políticas para puni-lo não eram as que surgiriam quase trinta anos depois: Johnson não era Bush (pai ou filho); o Partido Democrata na Casa Branca não era – e não é – a mesma coisa que o Partido Republicano na Casa Branca; o movimento pelos direitos civis estava na rua; e já se começava a gestar a rebelião contra a Guerra do Vietnã; em síntese, os EUA, saídos do breve governo Kennedy, não eram os EUA de 1992, após 11 anos de Reagan/Bush.
Foi nesse momento que entrou em ação o indefectível (nessas horas) “The New York Times”, com uma suposta notícia em que Fidel Castro capitalizava politicamente o Memorial.
A “notícia” era uma fraude, as declarações de Fidel, falsas. Mas Fischer dirigiu ao líder cubano o seguinte telegrama:
“Primeiro-ministro Fidel Castro,
“Oponho-me às suas manifestações, publicadas hoje no ‘New York Times’, proclamando uma vitória propagandística, e, por este ato, me retiro do Torneio Capablanca. Somente voltarei a entrar no torneio se me enviar um telegrama assegurando-me que você e seu governo não buscam benefícios políticos de minha participação, e que não se produzirão no futuro mais comentários políticos de sua parte a respeito da minha participação.
“Bobby Fischer.”
A resposta de Fidel não se fez esperar:
“Bobby Fischer, New York, USA.
“Acabo de receber seu telegrama. Surpreende-me que você me atribua algum tipo de manifestação referente à sua participação no torneio. A este respeito não disse nem falei uma palavra com ninguém. Só tenho sobre isso notícias que li em despachos de agências norte-americanas. Nosso país não tem necessidade de tão efêmera propaganda. É seu o problema de participar ou não no mencionado torneio. Suas palavras são, portanto, injustas. Se você se assustou e arrependeu-se de sua decisão inicial, seria melhor que imaginasse outro pretexto e tivesse o valor de ser honesto.
“Dr. Fidel Castro, primeiro-ministro do Governo Revolucionário.”
Surpreendentemente, logo depois de receber a mensagem de Fidel, Fischer confirmou sua participação no Memorial Capablanca e anunciou que, se não podia ir a Havana, jogaria por teletipo, de Nova Iorque. Em suma, reconhecera a razão de Fidel – e percebera, de alguma forma e em algum grau, que esse templo da imprensa americana, o “The New York Times”, tinha algum parentesco com um lupanar.
MARSHALL CLUB
Há um elemento psicológico importante, revelado por Fischer nesse episódio.
Ele não conheceu o pai – e não porque este houvesse falecido, mas porque foi afastado dele, e já veremos como e por quê. O pai, falando de forma geral e algo esquemática, para as crianças é o representante do limite entre a fantasia e a realidade. Se a mãe é o objeto das fantasias mais primitivas da criança, o pai é aquele que estabelece o limite dessas fantasias – ou seja, a existência da realidade. Na troca de mensagens entre Fischer e Fidel, é claro quem estabeleceu esse limite – nesse caso, entre a falsidade da mídia imperialista, isto é, a fantasia fabricada por interesses político-ideológicos, e a realidade. O significativo é que Fischer haja reagido tão bem a este limite “paterno”.
Jogando por teletipo, Fischer conquistou o segundo lugar no Memorial Capablanca (15 pontos em 21 possíveis), empatado com o iugoslavo Ivkov e com o soviético Geller, a meio ponto do primeiro colocado, Smyslov. Por teletipo, instalado no Marshall Club, de Nova Iorque, ele havia furado um bloqueio promovido pelo governo dos EUA – e, como se sabe, não seria a última vez.
Porém, houve coisa pior para o establishment: um ano depois, Fischer estaria, em pessoa, na capital cubana – e amistosamente ao lado de Fidel.
Ele havia conhecido Havana aos 13 anos, em 1956, quando fazia parte da equipe do Log Cabin Chess Club, de West Orange, Nova Jersey. Mas, naquela oportunidade, foi acompanhado pela mãe, e Havana era, então, uma cidade diferente: a capital de um país oprimido pela ditadura de Batista, pelas multinacionais e bancos norte-americanos – e pela Máfia.
Já em 1966, com 23 anos, Fischer era o primeiro-tabuleiro da equipe norte-americana na 17ª Olimpíada de Xadrez. No dia da abertura da Olimpíada, 25 de outubro, Fidel entrou na sala de jogos, no hotel Habana Libre. Ele e Fischer apertaram as mãos e, em seguida, o norte-americano fez algumas piadas sobre a troca de mensagens do ano anterior, o que foi correspondido com bom humor pelo líder cubano.
Fischer presenteou Fidel com um de seus livros, devidamente autografado, e, em seguida, disputaram uma partida “em consulta”, ou seja, em dupla. Fidel fez parceria com o campeão mundial Tigran Petrosian contra a dupla formada pelo mestre mexicano Filiberto Terrazas e Fischer. O líder cubano e o campeão mundial venceram a partida.
Note-se que esses acontecimentos se passaram três e quatro anos após a publicação do artigo em que acusava os soviéticos de trapaça (v. Barreras Merino, “Fischer y su vinculación a la Habana”, ext. de “Recorrido del Mundo del Tablero”, em “Ajedrez en Cuba”, vol. II-11, nº21, 06/1998. O autor foi diretor técnico da Olimpíada de Havana).
URSS-EUA
A equipe dos EUA foi a segunda colocada em Havana, graças a Fischer, que venceu 14 partidas, empatou 2 e perdeu apenas uma – para o GM romeno Florin Gheorghiu. Um aproveitamento de 88,2% (15 pontos em 17 possíveis).
A primeira colocada, pela 8ª vez consecutiva, foi a equipe soviética (desde 1952, em 21 Olimpíadas, a URSS venceu 19; somente não venceu em 1976, quando não foi a Israel, e em 1978, quando não enviou a melhor equipe a Buenos Aires – e perdeu da Hungria).
Em Havana, o primeiro-tabuleiro soviético, Tigran Petrosian, foi o único com resultado relativo melhor que Fischer: fez 11,5 pontos em 13 partidas – 10 vitórias, 3 empates e nenhuma derrota (aproveitamento de 88,5%). Fischer fez 15 pontos, mas em 17 partidas. A diferença no número de partidas é devido a que, nas olimpíadas de xadrez, há tabuleiros-reserva, ou seja, jogadores no banco, que podem jogar em determinados matches no lugar dos titulares.
Porém, apesar das relações amistosas entre Fidel e Fischer, a luta política não amainou.
Os EUA, ao invés de boicotarem a Olimpíada de Havana – como fez, por exemplo, a Alemanha Ocidental – resolveram enviar seus melhores jogadores. Mas Fischer havia se convertido a uma seita evangélica que tinha entre seus dogmas um retiro espiritual que começava às 18 h de sexta-feira e ia até as 18 h de sábado. No match com a Dinamarca, os norte-americanos reivindicaram que as partidas começassem às 12 h, ao invés das 16 h, para que Fischer participasse. Os dinamarqueses recusaram – e também o árbitro-chefe da Olimpíada, Jaroslav Sajtar. Os norte-americanos tiveram que substituir Fischer pelo segundo-tabuleiro, Robert Byrne, na partida contra o primeiro-tabuleiro dinamarquês, Bent Larsen.
Porém, contra a URSS os norte-americanos não se comportaram com o mesmo respeito às regras. Repetia-se agora a comédia da Olimpiada de Munique, com uma diferença: Botvinnik não era mais o primeiro-tabuleiro soviético.
Em suma, os EUA ameaçaram retirar-se da Olimpíada se o match com a URSS não fosse reagendado. A resposta do árbitro foi: “de forma alguma”. A equipe dos EUA não apareceu na hora do match com a URSS, mas não foi embora. O presidente da FIDE, aquele Folke Rogard que já vimos em ação na parte 6 deste artigo, propôs que o match que os EUA haviam perdido por W.O. fosse considerado empatado em 2 a 2. Rogard já passara à fase do vale-tudo contra os soviéticos – seria o desbravador de uma trilha que levaria ao esfacelamento do xadrez mundial.
O leitor que vem acompanhando esta série não terá muita dificuldade em adivinhar o que houve em seguida: os soviéticos concordaram em disputar outra vez o match. No xadrez, não havia mais obstáculo – Botvinnik já não estava lá – à política de apaziguamento, que, no final, conduziria à rendição.
A MÃE
Fischer tinha motivos, não somente enxadrísticos, mas inclusive familiares, para suas tentativas iniciais de aproximação com os soviéticos. Teremos de expô-los brevemente, pois Fischer, de todos os grandes jogadores, é o único que não pode ser descrito sem esse pano de fundo familiar.
Sua mãe, Regina, esteve entre aqueles norte-americanos que mudaram-se para a URSS na década de 30 – a maioria, buscando trabalho e oportunidade de estudar. Foi na URSS que Regina, depois de entrar para a Faculdade de Medicina, casou-se com Hans Gehardt Fischer, um biofísico alemão. Em Moscou, nasceu a primeira filha do casal, Joan, a irmã que depois ensinaria o movimento das peças de xadrez a Bobby.
Sobre algumas polêmicas a respeito da paternidade de Fischer, entraremos apenas em uma questão, porque ela extrapola o plano meramente pessoal. Mas, antes, reproduziremos a única declaração sobre seu pai que conhecemos de Fischer: “Meu pai deixou minha mãe quando eu tinha dois anos de idade. Eu nunca o vi. Minha mãe somente me disse que seu nome era Gerhardt e que ele era de origem alemã” (cf., Frank Brady, “In Defense of Bobby Fischer’s Family: House of Cards in the World of Chess”, ChessCafe, 04/06/2002 – este artigo, do primeiro biógrafo de Fischer, é resposta a um tardio e debilóide panfleto macartista, “A mãe de Fischer era uma espiã comunista?”, de um certo Frank Dudley Berry, Jr).
Mas, nos relatórios do FBI, surgiu o nome de Paul Felix Nemenyi, um físico de origem iugoslava falecido em 1952, como provável pai de Fischer. Sobre isso, nos parece que o FBI tinha demasiado interesse em que Nemenyi fosse o pai do filho caçula de Regina. Nessa época, J. Edgard Hoover (algumas das ordens para vigiar os Fischer vieram diretamente de seu gabinete) tentava provar que Regina era uma espiã soviética, apesar da mãe de Fischer trabalhar, modestamente, como enfermeira. No entanto, Nemenyi, com quem teria se relacionado, fez parte do Projeto Manhattan, que construiu a primeira bomba atômica. Para o FBI, não seria uma montagem muito diferente da que fez com o casal Rosenberg – por sinal, como Regina, de origem judaica e politicamente à esquerda.
Ao que parece, o biofísico Hans Gehardt Fischer foi impedido, por razões políticas, de viver com a mulher nos EUA. Ele jamais conseguiu entrar no país, segundo um relatório do FBI (Peter Nicholas e Clea Benson, “Files reveal how FBI hounded chess king”, Philadelphia Inquirer, 17/11/2002).
Radicado no Chile, Hans Gehardt foi visitado pelo filho (então com 16 anos) em 1959, de acordo com testemunho do mestre chileno Eugenio Larrain, que foi seu cicerone nesta visita (v. Hélder Câmara, “Bobby ‘Ahasverus’ Fischer” – em comunicação pessoal, o autor relatou-nos que a visita de Fischer ao pai foi-lhe confirmada por outro mestre chileno, Pedro Donoso, homem de integridade indiscutível). Evidentemente, esse relato é discrepante com a declaração de Fischer transcrita acima. Mas isso não seria surpresa em quem sempre defendeu tenazmente a sua vida pessoal da espionagem midiática.
Rapidamente, para que não tenhamos de voltar aos aspectos familiares de Fischer: sua mãe interrompeu seus estudos de medicina em 1938; ao voltar para os EUA, sem o marido, aceitou vários empregos, e, por fim, tornou-se enfermeira, sustentando a família dessa forma. Não há indício de que tenha sido uma mãe relapsa. Pelo contrário: não apenas sempre foi uma incentivadora de Bobby, como, em 1973, com ele já campeão mundial mas vivendo em Los Angeles quase em penúria, ela enviou seus cheques da Seguridade Social para ajudá-lo. Em seu testamento, estabelece que seja entregue “a meu filho Robert, quaisquer itens que ele possa pedir”.
Como disse Frank Brady, não apenas biógrafo, mas amigo na adolescência de Fischer, “o coração de Regina sempre esteve, realmente, do lado esquerdo”. Mais do que isso: ela jamais achou que devia alguma satisfação ao establishment. Em 1957, por exemplo, ela escreveu diretamente ao primeiro-secretário do PCUS, Nikita Kruschev, pedindo que convidasse Bobby para o Festival Mundial da Juventude. Kruschev respondeu, enviando o convite – que chegou tarde demais para que Bobby viajasse (cf. Bill Wall, “Robert James (Bobby) Fischer”).
Porém, um ano depois, ele seria convidado a ir a Moscou, onde esteve com Petrosian – mas queixou-se de que não conseguiu encontrar-se com outros mestres soviéticos. Foi depois dessa viagem que o FBI suspeitou que ele fosse um espião recrutado pelos soviéticos. Fischer tinha 15 anos…
Regina teve uma vida difícil, perdendo empregos devido às entrevistas que o FBI promovia sobre ela com vizinhos, colegas e patrões. Mas dedicou-se sempre às causas em que acreditava. A última anotação, em 1973, nos papéis já conhecidos do FBI, é sobre sua oposição à Guerra do Vietnã. Nessa época, Fischer já era campeão do mundo. Mas sua mãe já não era mais enfermeira. Havia, em 1968, realizado o sonho de sua juventude: formou-se, aos 55 anos, em medicina – pela Universidade Friederich Schiller, na Alemanha Oriental. Depois, exerceu sua profissão na América Central. Morreu em 1997, aos 84 anos. Quatro anos antes, aos 85, Hans Gehardt havia falecido em Berlim.
Agora, voltemos ao match Petrosian-Botvinnik e aos seus desdobramentos posteriores.
(continua)